Da maledicência
A meada n
1 A conversação entre as duas jovens senhoras se desenvolvia no ônibus.
— Você não pode imaginar o meu amor por ele…
— Não posso concordar com você.
— Decerto que não me entende.
2 — Mas, Dulce, você chega a querer o Dionísio, tanto quanto ao marido?
— Não tanto, mas não consigo passar sem os dois.
— Meu Deus! Isso é coisa de casal sem filhos!…
— É possível…
3 — Você não acha isso estranho, inadmissível?
— Acho natural.
— Noto você demasiadamente apegada, não é justo…
— Sei que você não me compreende…
— Simplesmente não concordo.
— Mas Dionísio…
— Isso é uma psicose…
4 Dona Dulce e a amiga, no entanto, ignoravam que Dona Lequinha, vizinha de ambas, sentara-se perto e estava de ouvido atento, sem perder palavra.
5 De parada em parada, cada uma volveu ao lar suburbano, mas Dona Lequinha, ao chegar em casa, começou a fantasiar… Bem que notara Dona Dulce acompanhada por um moço ao tomar o elétrico, aliás, pessoa de cativante presença. Recordava-lhe as palavras derradeiras: “Vá tranquila, amanhã telefonarei…”
6 Cabeça quente, vasculhando novidades no ar, aguardou o esposo, colega de serviço do marido de Dona Dulce, e tão logo à mesa, a sós com ele para o jantar, surgiu novo diálogo:
— Você não imagina o que vi hoje…
— Diga, mulher…
7 — Dona Dulce, calcule você!… Dona Dulce, que sempre nos pareceu uma santa, está de aventuras…
— O quê?!…
8 — Vi com meus olhos… Um rapagão a seguia mostrando gestos de apaixonado e, por fim, no ônibus, ela própria se confessou a Dona Cecília… Chegou a dizer que não consegue viver sem o marido e sem o outro… Uma calamidade!…
— Ah! Mas isso não fica assim, não! Júlio é meu colega e Júlio vai saber!…
9 A conversa transitou através de comentários escusos e, no dia imediato, pela manhã, na oficina, o amigo ouve do amigo o desabafo em tom sigiloso:
— Júlio, você me entende… Somos companheiros e não posso enganá-lo… O que vou dizer representa um sacrifício para mim, mas falo para seu bem… Seu nome é limpo demais para ser desrespeitado, como estou vendo… Não posso ficar calado por mais tempo… Sua mulher…
10 E o esposo escutou a denúncia, longamente cochichada, qual se lhe enterrassem afiada lâmina, no peito.
Agradeceu, pálido…
Em seguida, pediu licença ao chefe para ir a casa, alegando um pretexto qualquer. No fundo, porém, ansiava por um entendimento com a esposa, aconselhá-la, saber o que havia de certo.
11 Deixou o serviço, no rumo do lar e, aí chegando, penetrou a sala, agoniado..
Estacou, de improviso.
A companheira falava, despreocupadamente, ao telefone, no quarto de dormir: “Ah! sim!…”, “Não há problema”, “Hoje mesmo.” “As três horas”… “Meu marido não pode saber…”
12 Júlio retrocedeu, à maneira de cão espantado. Sob enorme excitação, tornou à rua. Logo após, notificou na oficina que se achava doente e pretendia medicar-se. Retornou a casa e tentou o almoço, em companhia da mulher que, em vão, procurou faze-lo sorrir.
13 Acabrunhado, voltou a perambular pelas vias públicas e, poucos minutos depois das três da tarde, entrou sutilmente no lar… Aflito, mentalmente descontrolado, entreabriu devagarinho a porta do quarto e viu, agora positivamente aterrado, um rapaz em mangas de camisa, a inclinar-se sobre o seu próprio leito. De imaginação envenenada, concebeu a pior interpretação…
14 O pobre operário recuou em delírio e, à noite, foi encontrado morto num pequeno galpão dos fundos. Enforcara-se em desespero…
Só então, ao choro de Dona Dulce, o mexerico foi destrinçado.
15 Dionísio era apenas o belo gatinho angorá que a desolada senhora criava com estimação imensa; o moço que a seguira até o ônibus era o veterinário, a cujos cuidados profissionais confiara ela o animal doente; o telefonema era baseado na encomenda que Dona Dulce fizera de um colchão de molas, ao gosto moderno, para uma afetuosa surpresa ao marido, e o rapaz que se achava no aposento íntimo do casal era, nem mais nem menos, o empregado da casa de móveis que viera ajustar o colchão referido ao leito de grandes proporções.
16 A tragédia, porém, estava consumada e Dona Lequinha, diante do suicida exposto à visitação, comentou, baixinho, para a amiga de lado:
— Que homem precipitado!… Morrer por uma bobagem! A gente fala certas coisas, só por falar!…
Irmão X
(Humberto de Campos)
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Do mal que se pensa e diz,
Cala as notícias que levas.
Conversação infeliz
É pasto à força das trevas. ( † )
Lulu Parola
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Olhar de alguém, quando é bom,
Além da sombra se apruma,
Vê serviço em qualquer parte,
Não vê mal em parte alguma. ( † )
Augusto de Oliveira
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Não basta que sua boca esteja perfumada. É imprescindível que permaneça incapaz de ferir. ( † )
André Luiz
[1] Esta mensagem foi publicada originalmente em 1969 pela FEB e é a 10ª lição do
livro “Estante da vida.”