1.
A tempestade de sentimentos, no grupo de almas sob nossa observação,
amainou, pouco a pouco…
2 Júlio, na vida espiritual,
aguardava sem sofrimento a ocasião oportuna de regresso ao campo físico,
e Zulmira, sob a influência benéfica de Antonina, renovara-se para a
alegria de viver.
3 Mário Silva, transformado
pela orientação da jovem viúva, afeiçoara-se a ela profundamente, habituando-se-lhe
ao convívio.
4 Sólida amizade fizera-se
entre as personagens de nossa história.
Semanalmente se visitavam, com intraduzível contentamento para Evelina, que se convertera em pupila de Antonina, tão grande a afinidade que lhes caracterizava as predileções e tendências.
5 O templo doméstico de Amaro
transfigurara-se.
O otimismo infiltrara-se, ali, consolidando moradia nos corações.
6 Passeios domingueiros começavam
a surgir, e Silva, agora unido a todos, parecia voltar à juventude nascente.
A camaradagem social modificara-lhe a feição.
Perdera a taciturnidade em que se mergulha a maioria dos solteirões.
7 Lisbela apegara-se a ele
com extremado carinho e os irmãos Haroldo e Henrique dele fizeram o
confidente de todas as realizações infantis.
8 Várias vezes Amaro e a esposa
acompanharam com amoroso respeito o culto evangélico na residência de
Antonina, retirando-se, edificados e felizes. Aquela moça, viúva e digna,
cada vez crescia mais na admiração deles e, dentro de suas limitadas
possibilidades, o ferroviário começou a fazer pela educação inicial
dos meninos quanto lhe era possível, associando o enfermeiro em todos
os seus empreendimentos em semelhante direção.
9 Certa manhã de claro domingo,
achávamo-nos de passagem no domicílio de Amaro, ainda em serviço da
saúde de Zulmira, quando Silva veio ao encontro do amigo para aguardar
a chegada de Antonina com as crianças. Todo o grupo familiar combinara
um almoço, ao ar livre, em parque próximo.
10 O Ministro, manifestando
um olhar de satisfação, comentou:
— Graças a Jesus, vemos nosso enfermeiro efetivamente modificado. Mais alegre, acessível, bem disposto…
— Dir-se-ia que uma revolução explodiu dentro dele, — asseverei, concordando.
— O amor é assim, — acentuou nosso instrutor, imperturbável, — uma força que
transforma o destino.
11 Talvez porque Hilário ensaiasse
malicioso sorriso, o orientador acrescentou:
— Pude consultar o programa traçado para a reencarnação de Antonina, quando em nossas atividades de socorro ao irmão Leonardo Pires, e sei que ela se comprometeu a colaborar, maternalmente, para que ele obtenha novo corpo na Terra. Na condição de Lola Ibarruri, foi a causa do envenenamento que lhe exterminou a paz íntima, falta essa que nossa irmã, na atualidade, espera ressarcir. Acariciará por filho do coração quem lhe foi outrora companheiro de aventuras, encaminhando-lhe a educação de ordem superior…
O apontamento nos comovia.
12 Admirado, Hilário obtemperou:
— Silva, desse modo…
Clarêncio, contudo, interrompeu-lhe a frase, completando:
— Silva e Leonardo enlaçaram-se em complicadas dívidas um para com o outro. Desde muito tempo, cultivam o espinheiro da aversão recíproca. Induzidos agora às teias da consanguinidade, esperamos se reeduquem. Da Lei ninguém foge…
13 Como se a mente do ferroviário
nos sorvesse a conversação, ligando-se a nós pelos fios invisíveis do
pensamento, vimos Amaro bater, de leve, nos ombros do companheiro, dizendo-lhe,
conselheiral:
— Escuta, Mário. Não me assiste o direito de qualquer interferência em tua vida, entretanto, sentindo-te por meu irmão, venho refletindo acerca do futuro… Não te parece que Antonina seja a mulher digna do teu ideal de homem de bem?
14 O interpelado corou, encabulando-se,
e porque nada respondesse, o amigo prosseguiu:
— Desde o teu regresso à nossa amizade, observo com respeito crescente a distinção
dessa mulher, cuja aproximação tem sido uma bênção em nossa casa. Moça
ainda, pode fazer a felicidade de um lar que seria um santuário para
as tuas experiências. 15
Comove-me anotar-lhe os sacrifícios de mãe jovem, quando, com a tua
aliança, preservaria a própria saúde, indiscutivelmente tão preciosa
a tanta gente. Já me inteirei da posição dela na fábrica em que trabalha.
É querida de todos. Para muitas colegas, tem sido a enfermeira e a irmã
abnegada de sempre. Seus chefes veneram-lhe a conduta irrepreensível.
Isso é admirável numa viúva de apenas trinta e dois anos. Além disso,
reparo-lhe os filhinhos unidos ao teu coração, como se te pertencessem.
Não te dói vê-la enfrentar sozinha a batalha em que se consome?
16 O enfermeiro, alga refeito
da estupefação que lhe assomara do íntimo, replicou, humilde:
— Compreendo… Tenho examinado essa possibilidade, no entanto, não sou mais uma criança…
— Por isso mesmo, — revidou o amigo, encorajado, — a hora presente exige método,
reconforto, proteção… Um pouso doméstico é investimento dos mais preciosos
para o futuro.
17 — No entanto, considero
que o coração no meu peito assemelha-se a um pássaro entorpecido. Sinto-me
francamente incapaz de uma paixão…
— Que tolice! — Ajuntou o interlocutor, bem humorado, — a felicidade é quase impraticável nas afeições impulsivas que estouram do sentimento à maneira de champanha ilusória…
18 E, sorrindo, acentuou:
— O amor dos namorados, com noventa graus à sombra, por vezes é simples fogo
de palha, deixando apenas cinza. À medida que se me alonga a experiência
no tempo, reconheço que o matrimônio, acima de tudo, é união de alma
com alma. Falo com o discernimento do homem que se consorciou por duas
vezes. A paixão, meu caro, é responsável por todas as casas de boneca
que oferecem por aí espetáculos dos mais tristes. 19
A amizade pura é a verdadeira garantia da ventura conjugal. Sem os alicerces
da comunhão fraterna e do respeito mútuo, o casamento cedo se transforma
em pesada algema de forçados do cárcere social.
20 Mário ouvia as reflexões
do companheiro, entre enlevado e surpreso.
— Sim, — pensava, — desde que se aproximara de Antonina, pela primeira
vez, nela sentira a mulher ideal, capaz de entender-lhe o coração.
Devotara-se a ela e aos três pequeninos com imenso carinho e inexcedível confiança.
Aquele lar generoso e singelo incorporara-se-lhe à existência.
Se fosse compelido à separação, por qualquer circunstância, indubitavelmente se sentiria lesado em suas mais caras alegrias…
21 Enquanto Amaro se confiava
às considerações do minuto rápido, Silva ia memorando, memorando…
A figura de Antonina penetrava-lhe agora os recessos do coração. O valor e a humildade com que a nobre criatura afrontava os mais difíceis problemas tocavam-lhe as fibras recônditas do ser. O sacrifício permanente pelos filhos, realizado com sincera alegria, o desprendimento natural das futilidades que costumam cegar o sentimento feminino, a solidariedade humana com que sabia pautar as relações com o próximo e, sobretudo, o caráter cristalino de que dava provas em todos os lances da vida comum, apareciam, naquele instante, em sua imaginação, de modo diferente…
22 Absorto, parecia contemplar
as roseiras lá fora, indiferente ao mundo exterior.
Longos momentos passou, assim, revivendo e meditando o passado.
Em seguida, como se despertasse de longa fuga mental, encarou o amigo frente a frente e concordou:
— Amaro, tens razão. Não posso desobedecer ao comando da vida.
23 Não puderam, contudo, prosseguir.
A viúva e os filhinhos chegaram, felizes, provocando a presença de Zulmira e Evelina que vieram à recepção, alegremente.
24 Deixamos nossos amigos na
doce algazarra da intimidade doméstica e voltamos ao nosso templo de
serviço.
Muitas indagações assaltavam-nos o pensamento, todavia, Clarêncio limitou-se a dizer:
— O tempo é como a onda. Flui e reflui. Da nossa sementeira havemos de colher.
25 Transcorridos alguns dias,
amigos espirituais de Antonina trouxeram-nos as boas novas do contrato
promissor.
Mário e a jovem viúva esperavam efetuar o matrimônio em breves dias.
Visitamos o futuro casal, diversas vezes, antes do enlace, que todos nós aguardávamos, contentes.
26 Amaro e Zulmira, reconhecidos
aos gestos de amizade e carinho que recebiam constantemente dos noivos,
ofereceram o lar para a cerimônia que, no dia marcado, se realizou com
o ato civil, na mais acentuada simplicidade.
27 Muitos companheiros de nosso
Plano acorreram à residência do ferroviário, inclusive as freiras desencarnadas
que consagravam ao enfermeiro particular estima.
A casa de Zulmira, enfeitada de rosas, regurgitava de gente amiga.
A felicidade transparecia de todos os semblantes.
28 À noite, na casinha singela
de Antonina, reuniram-se quase todos os convidados, novamente.
Os recém-casados queriam orar, em companhia dos laços afetivos, agradecendo ao Senhor a ventura daquele dia inolvidável.
29 O telheiro humilde jazia
repleto de entidades afetuosas e iluminadas, inspirando entusiasmo e
esperança, júbilo e paz.
Quem pudesse ver o pequeno lar, em toda a sua expressão de espiritualidade superior, afirmaria estar contemplando um risonho pombal de alegria e de luz.
30 Na salinha estreita e lotada,
um velho tio da noiva levantou-se e dispôs-se à oração.
Clarêncio abeirou-se dele e afagou-lhe a cabeça que os anos haviam encanecido, e seus engelhados lábios, no abençoado calor da inspiração com que o nosso orientador lhe envolvia a alma, pronunciaram comovente rogativa a Jesus, suplicando-lhe que os auxiliasse a todos na obediência aos seus divinos desígnios.
Lágrimas serenas velavam-nos o olhar.
31 Terminada a prece, Haroldo,
Henrique e Lisbela, vestidos de branco, distribuíram licores e guloseimas.
Emocionados, acercamo-nos dos nubentes para as despedidas.
Abraçando-os, vimos junto deles que Evelina, no fulgor de sua primavera juvenil, aceitava a proteção carinhosa de um rapaz que a fitava, enamorado.
32 O Ministro sorriu e explicou-nos:
— Este é Lucas, irmão de Antonina, atualmente futuroso gráfico na capital paulista, cuja bela formação espiritual associar-se-á, em breve, com a primogênita de Amaro, para a execução das tarefas que a esperam no mundo.
33 Cortando-nos a possibilidade
de excessivas inquirições, o instrutor acrescentou:
— Tudo é amor no caminho da vida. Aprendamos a usá-lo na glorificação do bem, com o nosso próprio trabalho, e tudo será bênção.
34 Retiramo-nos, satisfeitos.
E porque o dever nos convocava a distância, seguimos à frente, tentando assimilar com o nosso abnegado orientador a preciosa conjugação do verbo servir.
André Luiz