1.
Decorrido um mês sobre os esponsais de Silva, certa noite, por solicitação
de Odila, fomos em busca de Zulmira e Antonina para uma reunião íntima,
no Lar da Bênção.
2 Ambas, alegres, revelavam-se
enlevadas fora do corpo denso.
Enlaçadas e felizes, contemplavam a Terra e o Céu, tocadas de sublime esperança.
3 Reduzida assembleia de amigos
aguardava-nos no domicílio de Blandina, em meio de cativantes manifestações
de carinho e de apreço.
Dentre todas as afeições presentes, sobrelevava-se Irmã Clara, que viera igualmente ter conosco.
4 As duas excursionistas,
ao contato daquele ambiente de genuína fraternidade, rendiam-se ao êxtase
da paz e da alegria.
Afigurava-se-lhes haver encontrado o paraíso, tão pura se lhes desenhava no semblante a exaltação interior.
No recinto amplo que Blandina adornara de flores, permutavam-se frases amigas e consoladoras impressões.
5 Multiplicadas notas de beleza
enriqueciam a conversação, quando Antonina, mais lúcida que a companheira,
indagou pela razão do favor de que se viam aquinhoadas.
O reconhecimento transbordava-lhes do coração, à maneira do perfume a evadir-se do frasco.
6 Clara afagou-a, de leve,
e explicou, maternalmente:
— Filhas, em nossa romagem na vida, atravessamos épocas de sementeira e fases de colheita. Na missão da mulher, até agora, vocês receberam do tempo os choques e os enigmas plantados a distância. Com a humildade e a fé, com o bom ânimo e o valor moral, venceram árduos conflitos que lhes fustigavam as melhores aspirações. Foram dias obscuros do pretérito refletidos no presente, contudo, agora, asserenou-se-lhes a estrada. A paciência a que se devotaram evitou a formação de nuvens da revolta e o céu se fez, de novo, claro e alentador. É como se o dia renascesse, resplendente de luz. O campo da existência exige mais trabalho e o tempo de semear ressurge alvissareiro.
7 A palestra em torno cessara
de repente.
Os circunstantes buscavam ouvir a benfeitora, significando, com o silêncio, que nela se encarnava para nós a sabedoria.
8 Depois de ligeiro intervalo,
nossa amiga continuou:
— Agora, que a oportunidade favorece a renovação, é preciso saber reconstruir
o destino. Não olvidemos. A vida reduz-se a triste montão de trevas,
quando não se faz plena de trabalho. 9
Fujamos à velha feira da lamentação onde a inércia vende os seus frutos
amargosos! Para levantar, porém, a escada de nossa ascensão, é imprescindível
banhar o espírito, cada dia, na fonte viva do amor, do amor que recompensa
a si mesmo com a alegria de dar! 10
O Pai Celeste é onipresente, através do amor de que satura o Universo.
O sentimento divino é a corrente invisível em que se equilibram os mundos
e os seres. Do Trono Excelso nasce o eterno manancial que sustenta o
anjo na altura e alimenta o verme no abismo. 11
A mulher é uma taça em que o Todo-Sábio deita a água milagrosa do amor
com mais intensidade, para que a vida se engrandeça. Irmãs, sejamos
fiéis ao mandato recebido. Em muitas ocasiões, quando nos prendemos
à lama do egoísmo ou ao visco do ódio, poluímos o líquido sagrado, transformando-o
em veneno destruidor. Guardemos cautela. 12
O preço da verdadeira paz reside no sacrifício de nossas existências.
Não há sublimação sem renúncia no castelo da alma, como não há purificação
no cadinho, sem o concurso do fogo que acrisola os metais!…
13 Clara fitou Antonina, de
modo particular, e aduziu:
— Filha, nossa Zulmira compreende hoje, sem necessidade de maior incursão no passado, o santo dever de asilar o pequeno Júlio no santuário materno…
Percebemos que a instrutora, registando o imperativo do descanso mental
para a segunda esposa do ferroviário, que vinha de terminar longas refregas
na preservação da própria saúde, buscava poupar-lhe exercícios mnemônicos.
— Nossa amiga, — prosseguiu, indicando Zulmira com o olhar, — está
consciente de que a maternidade a espera de novo, em tempo breve… E
você?
14 Com a irradiante bondade
que habitualmente lhe marcava a expressão fisionômica, acentuou:
— Recorda-se das experiências antigas e permanece atenta às razões que lhe inspiraram o segundo matrimônio?
Ante a surpresa que se estampou no semblante da interpelada, a orientadora, num gesto que nos era conhecido, nas operações magnéticas de Clarêncio, acariciou-lhe a fronte, de leve, e repetiu:
— Lembre-se! Lembre-se!…
15 Bafejada pelo poder de Irmã
Clara, em determinados centros da memória, Antonina fez-se pálida e
exclamou, controlando a própria emoção:
— Sim, sou eu a cantora! Revejo, dentro de mim, os quadros que se foram!… Os
conflitos no Paraguai!… Uma chácara em Luque!… A família ao abandono!…
José Esteves, hoje Mário… Sim, percebo o sentido de minhas segundas
núpcias!…
16 Denotando aflição no olhar,
acrescentou:
— E Leonardo? Onde está Leonardo, o infeliz?
— Não precisa dilatar reminiscências, — disse Clara, bondosa; — não nos achamos
num gabinete de experimentos e sim numa reunião fraternal.
Fitando-a significativamente, ajuntou:
— Basta que você se recorde.
17 Em seguida, repartindo
a atenção entre as duas, prosseguiu:
— Brevemente vocês serão chamadas a novo esforço, no apostolado materno.
Zulmira recolherá o nosso Júlio na concha do coração e você, Antonina,
restituirá a Leonardo Pires, seu avô e associado de destino, o tesouro
do corpo terrestre. 18
No santuário doméstico, as afeições transviadas se recompõem, a fim
de que possamos demandar o futuro, ao clarão da felicidade. 19
Filhas, ninguém avança sem saldar as próprias contas com o passado.
Paguemos, desse modo, os débitos que nos aprisionam aos Círculos inferiores
da vida, aproveitando o tempo de detenção no resgate, em maior aprimoramento
de nós mesmas. 20
Amemos, aperfeiçoando-nos! Identifiquemos no lar humano o caminho de
nossa regeneração! A família consanguínea na Terra é o microcosmo de
obrigações salvadoras em que nos habilitamos para o serviço à família
maior que se constitui da Humanidade inteira. 21
O parente necessitado de tolerância e carinho representa o ponto difícil
que nos cabe vencer, valendo-nos dele para melhorar-nos em humildade
e compreensão. Um pai incompreensivo, um esposo áspero ou um filho de
condução inquietante, simbolizam linhas de luta benéfica, em que podemos
exercitar a paciência, a doçura e o devotamento até ao sacrifício!…
Especialmente, no tocante aos filhos, não nos esqueçamos de que pertencem
a Deus e à vida, acima de tudo!… 22
Na Esfera carnal, a Providência Divina nos sela a memória, no favor
do renascimento, envolvendo-nos com o sopro renovador de abençoada esperança!
Por isso mesmo, não nos cabe olvidar que os filhos são sempre laços
preciosos da existência, requisitando-nos equilíbrio e discernimento
em todas as decisões… 23
Para desobrigar-nos da grande tarefa que a maternidade nos impõe, é
imprescindível entender-lhes o psiquismo diferente do nosso, a exigir,
muitas vezes, um tipo de felicidade que não se harmoniza com o nosso
modo de ser. Saibamos, assim, prepará-los, sem egoísmo, para o destino
que lhes compete! 24
O carinho escravizante assemelha-se a um mel envenenado, enredando-nos
na sombra. Conservemos nosso espírito arejado pela justiça, para que
a nossa afetividade seja uma bênção com a possibilidade de educar os
que nos cercam, na escola do trabalho salutar!…
25 Na pausa que surgiu, espontânea,
Zulmira indagou com simplicidade:
— Abnegada benfeitora, como agir para solucionar os problemas com segurança?
— Vocês superaram dias alarmantes de crise espiritual, — informou a
orientadora, prestimosa, — e conquistaram o ensejo de reestruturação
do próprio destino. 26
Agora, repitamos, é tempo de semear. Valorizemos a oportunidade de reaproximação.
São vocês dois núcleos de força, suscetíveis de operar valiosas transformações
nos grupos domésticos a que se ajustam. 27
Façamos da amizade o entendimento fraterno que tudo compreende e tolera,
movimenta e ajuda, na extensão do Sumo Bem. A vizinhança e a convivência,
no fundo, são dons que o Senhor nos concede a benefício de nosso próprio
reajuste.
28 Porque Zulmira e Antonina
ensaiassem perguntas novas, Clara acentuou:
— Não temam. A prece é o fio invisível de nossa comunhão com o Plano
Divino e, à luz da oração, viveremos todos juntos. Em todas as dúvidas,
prefiramos para nós a renunciação construtiva. Situar a responsabilidade
de nosso lado é facilitar a solução dos problemas.
Sorridente, rematou:
— Não nos esqueçamos do privilégio de servir.
29 Logo após, o
pequeno Júlio foi trazido ao recinto por vasto cortejo de gárrulas crianças.
Risos e lágrimas se misturaram no louvor à Bondade Divina.
30 Depois de algumas horas
consagradas ao reconforto, escoltamos, de novo, as duas mães, reconduzindo-as
ao campo físico para o sublime labor no lar terrestre.
André Luiz