1.
Quando os amigos se afastaram, Clarêncio cercou Zulmira de cuidados
especiais, aplicando-lhe passes de reconforto.
2 A injeção de sangue renovador
lhe fizera grande bem.
Pouco a pouco, acomodaram-se-lhe os centros de força.
Desde a desencarnação do filhinho, a pobre criatura não desfrutava
tão acentuado repouso, quanto naquela hora.
3 Nosso instrutor recomendou
a Odila preparasse o pequeno Júlio para o reencontro com a mãezinha.
Zulmira vê-lo-ia, buscando energias novas.
4 E enquanto nossa irmã se
distanciava para o desempenho da missão que lhe fora cometida, o orientador
falou, otimista:
— Um sonho reconfortante é uma bênção de saúde e alegria para os nossos irmãos encarnados.
5 Íamos responder, mas a doente,
à semelhança das pessoas na hipnose profunda, levantou-se em Espírito,
contemplando-nos, surpresa.
O olhar dela, admiravelmente lúcido, falava-nos de sua ansiedade maternal.
6 Clarêncio afagou-a, como
se o fizesse a uma filha, rogando-lhe calma e fé.
Desdobrava-se-lhe a preleção carinhosa, quando partimos.
Amparada em nossos braços, Zulmira volitou sem perceber.
7 Observei que o espetáculo
magnificente da Natureza não lhe feria a atenção. Introvertida, apenas
a imagem da criancinha morta lhe ocupava a tela mental.
8 O Lar da Bênção mostrava-se
maravilhoso.
Flores de rara beleza coloriam a estrada e embalsamavam-na de suave perfume.
Aqui e ali, doces melodias vibravam no ar.
9 A glória fulgurante do céu
induzia-nos à oração de reverência e louvor ao Pai Celestial, mas a
pobre mulher que seguia conosco parecia insensível à excelsitude do
ambiente, à face da tortura interior de que se via possuída, obrigando-me
a reconhecer, mais uma vez, que o paraíso da alma, em verdade, reside
onde se lhe situa o amor.
10 Reparei que para
a devoção afetuosa de Zulmira não importava o rumo. Qualquer indagação,
perante aquela ternura atormentada, resultaria inútil.
Creio que, se, ao invés da refulgente luz do Lar da Bênção, apenas víssemos
trevas, para aquele Espírito agoniado de mãe o quadro seria de verdadeiro
paraíso, desde que pudesse reter nos braços o filhinho inesquecível.
11 Quem poderá definir com
exatidão os indevassáveis segredos que Deus colocou nos corações que
amam?
Quando penetramos o berçário, onde o menino repousava, sob a abnegada vigilância de Odila e Blandina, a sofredora mãezinha tentou arrojar-se sobre a criança sonolenta, sendo delicadamente advertida por nosso orientador, que a sustentou, paternal, asseverando:
— Zulmira, não perturbes o pequenino se o amas.
12 — É meu filho! — Bradou,
semidesvairada.
— Não ignoramos que Júlio se asilou na Terra em teu regaço e, por isso, fomos teus companheiros na presente viagem para que amenizes a tua dor. Entretanto, não admitas que o egoísmo te ensombre a alma!… Certamente, o carinho materno é um tesouro inapreciável, contudo não devemos olvidar que todos somos filhos de Deus, nosso Eterno Pai! Acalma-te! Pede ao Senhor os recursos necessários para que o teu devotamento seja um auxílio positivo ao pequenino necessitado!…
13 Tocada por essas palavras,
Zulmira desfez-se em pranto.
Enlaçada afetuosamente por Odila, que tentava soerguer-lhe o ânimo, reconheceu a primeira esposa de Amaro e recordou a luta que haviam atravessado, quando do afogamento do pequeno irmão de Evelina.
14 O remorso voltou a refletir-se-lhe
na mente e, atribulada, exclamou:
— Odila! Perdoa-me, perdoa-me!… Agora vejo o inferno que te impus, despreocupando-me de teu filhinho… Hoje, pago com lágrimas minha deplorável displicência! Ajuda-me, querida irmã!… Sê para o meu Júlio a guardiã que não fui para o teu!
15 A interpelada acariciou-a,
compadecidamente, e ajuntou:
— Tem paciência! A aflição é um incêndio que nos consome… Paguemos à vida o tributo da conformação na dor, para que sejamos efetivamente dignas do socorro celestial…
16 E, beijando-a nos olhos,
aduziu:
— Enxuga as lágrimas que te fustigam inutilmente. A serenidade é o nosso caminho de reestruturação espiritual. Não te reportes ao passado… Vivamos o presente, fazendo o melhor ao nosso alcance.
— Agora, porém, que sofro as agruras de minha prova, — acentuou Zulmira, em
tom amargo, — penso em teu anjinho…
17 Odila, conchegando-a de
encontro ao peito, conduziu-a para mais perto do menino adormecido e,
indicando-o, aclarou, satisfeita:
— Ouve! Meu filhinho é também o teu. Júlio de hoje é o nosso Júlio de ontem. Pesados compromissos com o pretérito obrigaram-no a aceitar as dificuldades do momento… Em nosso aprendizado de agora, teve a existência frustrada por duas vezes, a fim de valorizar, com segurança, a bênção da escola terrestre.
18 Ante a companheira perplexa,
acrescentou, convincente:
— O corpo de carne é uma veste que o nosso Júlio usou de dois modos
diferentes, por nosso intermédio. E sorrindo: — Como vemos, somos duas
mães, partilhando o mesmo amor.
19 Notávamos que Zulmira, admirada,
estimaria algo perguntar, mas o choque da revelação como que lhe imobilizara
a garganta.
No imo dalma, decerto algo lhe alterara o campo emotivo.
20 Secaram-se-lhe as lágrimas,
ao passo que o olhar se lhe fazia mais brilhante. Afigurava-se-nos uma
estátua viva de intraduzível expectação.
Sem resistência, deixou-se conduzir pelos braços de Odila até um leito próximo, para ajustar-se ao repouso preciso.
21 Agora sim, — pensava, surpreendida,
— começava a compreender… Júlio prematuramente expulso da experiência
material pelo afogamento, ao mundo tornara em nova tentativa que redundara
em frustração…
Porquê? Porquê?
22 O pensamento
dolorido intentava penetrar os segredos do tempo, arrastando-a ao passado
remoto, mas o cérebro doía-lhe, dilacerado… Realmente, não lhe seria
possível naquelas circunstâncias qualquer incursão no domínio das reminiscências,
mas percebia, enfim, a Bondade Eterna que reúne as almas nos mesmos
laços de trabalho e esperança do caminho redentor… 23
Lembrou a animosidade fria que experimentara por Júlio, logo após seus
esponsais, e o imanifesto ciúme que nutria, diante das atenções que
Amaro lhe dispensava, e reconheceu que a Providência Divina, ligando-o
ao seu coração de mãe, lhe sublimara os sentimentos…
24 Agora sentia por ele inexpressável
carinho e iluminado amor…
De espírito assim transformado, via em Odila não mais a rival, mas a benfeitora que, sem dúvida, lhe seguira de perto a transfiguração.
Enlaçou-se a ela, em pranto silencioso, qual se lhe fora filha a ocultar-se
nos braços maternais.
25 A primeira esposa de
Amaro, imensamente comovida, correspondia-lhe as manifestações afetivas,
afagando-lhe os cabelos.
— Convém-lhe o repouso, — afirmou Clarêncio, amigo, — qualquer recordação agora
lhe agravaria o conflito mental.
Odila, desembaraçou-se da companheira, deixando-a a sós no descanso
justo, e seguiu-nos.
26 Despedindo-nos, o instrutor
aconselhou fosse Zulmira mantida no berçário mais algumas horas. Desse
modo, o corpo denso seria mais amplamente beneficiado pelo sono reparador.
27 Voltaríamos para reconduzi-la
à residência terrestre, de maneira a garantir-lhe, tanto quanto possível,
as melhoras gerais.
Afastamo-nos, assim, para regressar em breve. Com efeito, transcorrido o tempo que o nosso instrutor julgou indispensável, tornamos ao Lar da Bênção para restituir nossa amiga ao ninho distante.
28 O relógio marcava nove da
manhã, quando a enferma, sob a nossa vigilância, despertou no corpo
físico.
Zulmira, retomando o equipamento cerebral mais denso, não conseguiu articular a lembrança da excursão que se lhe afigurou, então, delicioso sonho.
29 Guardava a impressão nítida
de que revira o filhinho em “alguma parte” e semelhante certeza lhe
restaurara a calma e a confiança.
Sentia-se mais leve, quase feliz.
30 Evelina, atendendo-lhe o
chamado, identificou-lhe as melhoras, rendendo graças a Deus.
A jovem, contente, trouxe Antonina e Lisbela ao quarto. A viúva chegara cedo com a filhinha, com o melhor desejo de cooperar.
31 A doente saudou-as, satisfeita.
Recordava-se, de modo impreciso, da noite anterior e agradeceu o cuidado
de que se via objeto. Aceitou o café substancioso que lhe foi trazido
e tão reanimada se sentia que, sem qualquer cerimônia, confiou a Antonina
as impressões renovadoras de que se via dominada.
32 Permanecia convicta
de que vira Júlio e abraçara-o… Onde e como? Não saberia dizer. Mas
o contentamento que a felicitava era bem o testemunho de que recolhera
naquela noite benefícios reais.
33 — Felizmente, a transfusão
de sangue foi coroada de pleno êxito! — Exclamou Evelina, encantada.
— Sim, — disse Antonina, concordando, — a providência terá sido das mais proveitosas,
no entanto, estou certa de que dona Zulmira terá reencontrado o filhinho
no Plano espiritual, readquirindo novo ânimo para a luta.
34 Aquela asserção confiante
foi registada pela enferma com sincera alegria.
— A senhora julga então possível? — Indagou a dona da casa, de olhos faiscantes.
— Como não? — Aduziu Antonina, confortada, — a morte não existe como
a entendemos. Do Além, nossos amados que partiram estendem-nos os braços.
Tenho igualmente um filho na Vida Maior que vem sendo para mim precioso
sustentáculo.
35 A enferma demonstrou invulgar
interesse na conversação.
Há momentos na vida em que somos castigados pela fome de fé e Antonina era uma fonte irradiante de otimismo e firmeza moral.
36 Evelina e Lisbela retiraram-se
para o interior da casa, atentas à limpeza doméstica e as duas amigas
passaram a mais íntimo entendimento.
A colaboração de Antonina fora realmente providencial, porque, ao deixarmos o domicílio do ferroviário, reparamos que Zulmira, de alma restaurada, ao toque de novas esperanças, mostrava no rosto a tranquilidade segura de abençoada convalescença.
André Luiz