1.
O pequeno Júlio desenvolvia-se como flor de esperança no jardim do lar,
todavia, sempre mirrado, enfermiço.
2 Desvelavam-se os pais por
assisti-lo convenientemente, contudo, por mais adequados se categorizassem
os tratamentos recalcificantes, trazia doloroso estigma na garganta.
3 Extensa ferida na glote
dificultava-lhe a nutrição.
Farinhas suculentas concorriam com o leite materno para robustecê-lo, mas em vão.
4 Entretanto, apesar dos cuidados
que exigia, era uma bênção de felicidade para os genitores e para a
irmãzinha, que sentiam em seu rostinho tenro um ponto vivo de entrelaçamento
espiritual.
5 Muitas vezes, conchegamo-lo
ao coração, rememorando os trabalhos que lhe haviam precedido o regresso
ao mundo, assinalando a ternura otimista com que Odila, transformada
em generosa protetora da família, lhe acompanhava o desabrochar.
6 O pequerrucho já começava
a falar por monossílabos, em vésperas do primeiro ano de renascimento,
quando nova luta surgiu.
O inverno chegara rigoroso e vasto surto de gripe espalhara-se ameaçador.
7 A tosse e a influenza compareciam
pertinazes, em todos os recantos, quando, num dia de grande trabalho
para nós, eis que a genitora de Evelina veio, novamente, ao nosso encontro.
Dantes, procurava assistência para Zulmira, agora demandava auxílio para Júlio.
O menino, assaltado por teimosa amidalite, jazia prostrado, febril.
8 Dirigimo-nos incontinenti
para o lar do ferroviário.
Com efeito, o vento soprava, úmido, sobre o largo espelho da Guanabara. As ruas, pela vestimenta pesada dos transeuntes, davam ao Rio o aspecto de uma cidade fria.
9 Alcançamos, sem detença,
o domicílio de Amaro.
O quadro, à nossa vista, era indubitavelmente constrangedor.
10 Penetramos o aposento em
que a criança gemia semi-asfixiada, no instante preciso em que o médico
da família efetuava meticuloso exame.
11 Clarêncio passou a reparar-lhe
todos os movimentos.
A garganta minúscula apresentava extensa placa branquicenta e a respiração se fazia angustiada, sibilante.
12 O instrutor meneou a cabeça,
como se fora defrontado por insolúvel enigma, e colocou a destra na
fronte do facultativo, compelindo-o a refletir com a maior atenção.
Zulmira e Evelina, sem perceber-nos a presença, fitavam o médico, preocupadas.
13 Após longo silêncio, o clínico
voltou-se para a dona da casa, afirmando:
— Creio devamos procurar um colega imediatamente. Enquanto a senhora telefona para o marido, chamando-o da oficina, trarei comigo um pediatra.
14 A torturada mãezinha conteve
a custo as lágrimas que lhe borbulhavam dos olhos.
O médico tornou, cismarento, à via pública, e, enquanto Evelina, rápida, corria até o armazém próximo para dar ciência ao genitor de quanto ocorria, Zulmira, presumindo-se a sós, abraçou-se ao doentinho e, chorando livremente, ciciou:
15 — Ó meu Deus, com tanto
amor recebi o filho que me enviaste!… Não me deixes agora sem ele, Senhor!…
O pranto que lhe corria na face queimava-me o coração.
16 Nada pude indagar, em vista
da emotividade que me tomara o espírito, mas o nosso orientador, sereno
como sempre, exclamou, compadecido:
— A difteria está perfeitamente caracterizada. A deficiência congenial da glote favoreceu a implantação dos bacilos. É imprescindível o socorro urgente.
17 O instrutor começou a mobilizar
recursos assistenciais de maior expressão, quando o ferroviário, desolado,
ingressou no aposento.
Conversando com a mulher, tentava reanimá-la, quando o pediatra, conduzido pelo colega, deu entrada na humilde residência.
18 Ambos os médicos submeteram
o petiz a prolongado exame, permutando impressões em voz baixa.
O especialista, apreensivo, após manifestar a suspeita de crupe, reclamou a análise de laboratório, decidindo transportar consigo mesmo o material necessário à inspeção.
19 Ao sair, prometeu opinar,
dentro de algumas horas. Notificou ao pai agoniado que tudo lhe fazia
crer tratar-se de garrotilho. Entretanto, reservava o diagnóstico definitivo
para depois. Se a hipótese se confirmasse, enviaria um enfermeiro de
confiança para a aplicação do soro adequado.
2. Mantendo vigilância junto ao doentinho, o Ministro recomendou-nos, a Hilário e a mim, acompanhar o pediatra, de modo a prestar-lhe a colaboração possível ao nosso alcance.
2 Seguimo-lo sem hesitar.
O crepúsculo, encharcado de uma garoa fina, caía rápido.
3 Em minutos breves, atravessávamos
o pórtico de vasto hospital, onde o nosso amigo procurou a sala em que
certamente se recolhia para os trabalhos que lhe diziam respeito.
4 Chegados a estreito recinto,
fomos defrontados por uma surpresa que nos impunha verdadeira estupefação.
Mário Silva, em seu traje branco, palestrava com dona Antonina que acomodava ao colo a pequena Lisbela, pálida e ofegante.
5 A jovem senhora, que não
mais víramos, aguardava o especialista, trazendo a filhinha à consulta.
Amparadas por Silva, francamente atraído para a simpática visitante,
ambas tiveram acesso a gabinete particular, onde o facultativo diagnosticou
uma pneumonia.
6 Antonina foi aconselhada
a voltar, de imediato, ao ambiente doméstico, para a medicação da filha.
A penicilina devia ser administrada sem qualquer dilação.
Mário, demonstrando imenso carinho pela criança, prontificou-se a assisti-la.
Traria um automóvel e atenderia ao caso pessoalmente.
7 O chefe passeou o olhar
pelo mostrador do relógio e aquiesceu, ressalvando:
— Bem, você pode cooperar com as nossas clientes, mas preciso de seu concurso em bairro distante, às vinte e duas horas.
8 O rapaz assumiu o compromisso
de regressar a tempo e um táxi recolheu o trio, rolando na direção da
casinha que visitáramos, certa vez.
9 Ante o inesperado daquele
encontro, sentimos necessidade de um entendimento seguro com o nosso
orientador.
Tornando ao quarto, onde o pequeno Júlio piorava sempre, fizemos breve relato do acontecido. Clarêncio escutou com interesse e ponderou, preocupado:
10 — Não podemos perder tempo.
Dirijamo-nos à casa de Antonina. A lei está reaproximando os nossos
amigos uns dos outros e Mário precisa fortalecer-se para exercitar o
perdão. Os raios de ódio da parte dele podem apressar aqui o serviço
inevitável da morte.
3. Corremos ao domicílio da valorosa mulher.
2 Com efeito, depois de haver
iniciado o tratamento providencial da menina, agora acamada, Silva fixava
a dona da casa, perguntando a si mesmo onde vira aquele torturado perfil
de madona… Guardava a nítida impressão de haver conhecido Antonina em
algum lugar…
3 Agradavelmente surpreendido,
sentia-se ali como se fora em sua própria casa.
E a simpatia não se patenteava tão somente no coração dele. A senhora e os filhos cercavam-no de atenções.
4 Intimamente deslumbrado,
o enfermeiro declarava de viva voz estar experimentando uma paz que
há muito não conhecia, com o que Antonina se regozijava, sorrindo.
5 Percebendo que Haroldo e
Henrique se mostravam apaixonados pelas disputas esportivas, deu curso
a animada conversação em torno do futebol, conquistando-lhes o carinho.
6 A mãezinha, preparando o
café, ingressava no alegre entendimento, de quando em quando, a fim
de podar o entusiasmo dos meninos, quando a palavra deles se evidenciava
menos construtiva.
7 Somente no decurso da afetuosa
palestra, viemos a saber que nossa amiga se enviuvara. O esposo, segundo
notícias recebidas de metrópole distante, havia falecido num desastre,
vitimado pela própria imprudência.
8 Lemos no olhar de Silva
o contentamento com que obtinha semelhante informe.
Começava a registar insopitável interesse pela vida naquele ninho agasalhante que se lhe afigurava pertencer-lhe.
9 Às oito em ponto, Antonina,
sem afetação, convidou com simplicidade:
— Sr. Mário, hoje temos nosso culto evangélico. Quer ter a bondade de partilhá-lo?
10 Incompreensivelmente feliz,
o rapaz concordou, de pronto.
A reunião, nessa noite, foi efetuada ao redor do leito de Lisbela, que não desejava perder o benefício das orações.
Um copo de água pura foi colocado junto à cabeceira da pequenina.
11 E, de Novo Testamento em
punho, acomodados os companheiros, Antonina recomendou a Henrique fizesse
a rogativa inicial.
O menino recitou o “Pai Nosso” e, em seguida, pediu a Jesus a saúde da irmãzinha doente, com enternecedora súplica.
12 Vimos o nosso orientador
acercar-se do recipiente de água cristalina, magnetizando-a, em favor
da enferma que parecia expressivamente confortada, ante a oração ouvida,
e, logo após, abeirar-se de Silva, que lhe recebeu as irradiações.
13 — Quem abrirá hoje o Livro?
— Perguntou Haroldo, com graciosa malícia, fitando o hóspede inesperado.
— Certamente nosso amigo nos fará essa honra, — disse a genitora, indicando
o enfermeiro.
14 Mário, ignorando como expressar
a felicidade que lhe fluía do coração, acolheu o pequeno volume, sob
a atenção de Clarêncio, que lhe tocava o busto e as mãos, influenciando-o
para a descoberta do texto adequado.
15 O moço, algo trêmulo na
participação de um serviço espiritual inteiramente novo para ele, sem
perceber o amparo que o envolvia, abriu em determinada passagem, qual
se agisse a esmo, passando o livro a Antonina, que leu em voz pausada
o versículo vinte e cinco do capítulo cinco das anotações do Apóstolo
Mateus: — “Concilia-te depressa com o teu adversário, enquanto te encontras
a caminho com ele, para que não aconteça que o adversário te entregue
ao juiz e o juiz te entregue ao oficial para que sejas encerrado na
prisão.” ( † )
16 A dirigente do culto, que,
naquela noite, se revelava mais retraída, pediu a interpretação dos
meninos que, de modo ingênuo, se reportaram às experiências da escola,
afirmando que sempre adquiriam a paz, buscando desculpar as faltas dos
companheiros. Haroldo asseverava que a professora sempre sorria contente,
quando lhe via a boa vontade e Henrique salientou haver aprendido no
culto do lar que era muito mais agradável o esforço de viver em harmonia
com todos.
17 A palestra parecia ameaçada
de esmorecimento, mas o nosso orientador aproximou-se de Antonina e,
impondo-lhe a destra sobre a fronte, como que a impelia ao comentário
justo.
— Haroldo, — indagou a genitora, de olhos brilhantes, — como devemos interpretar
um inimigo em nossa vida?
18 O menino replicou, sem pestanejar:
— Mãezinha, a senhora nos ensinou que conservar um inimigo em nosso caminho é o mesmo que manter uma ferida perigosa em nosso corpo.
19 — A definição
foi bem lembrada, — falou a viúva com espontaneidade encantadora; —
sem a compreensão fraterna que nos garante o culto da gentileza, sem
o perdão que olvida todo mal, a existência na Terra seria uma aventura
intolerável. 20 Além
disso, quando Jesus nos ditou a lição que recordamos hoje, indubitavelmente
considerava que a razão nunca vive inteira ao nosso lado. 21
Se fomos ofendidos, em verdade também ofendemos por nossa vez. Precisamos
desculpar os outros para que os outros nos desculpem. 22
Quando abraçamos o ideal do bem, compete-nos tentar, por todos os meios
ao nosso alcance, a justa conciliação com todos os que se encontrem
conosco em desarmonia, prestando-lhes serviço para que renovem a conceituação
a nosso respeito. 23
Mais vale para nós o acordo pacífico que a demanda mais preciosa, porque
a vida não termina neste mundo e é possível que, buscando a justiça
em nosso favor, estejamos cristalizando a cegueira do egoísmo em nosso
próprio coração, caminhando para a morte com aflitivos problemas. 24
Coração que conserva rancor é coração doente. Alimentar ódio ou despeito
é estender inomináveis padecimentos morais no próprio Espírito.
25 Silva estava pálido.
Aquelas conclusões feriam-lhe, fundo, o modo de ser.
Tão desajustado se revelou escutando aqueles apontamentos que Antonina, em lhe registando a estranheza, ponderou, sorrindo:
26 — O senhor decerto nunca
teve inimigos… Um enfermeiro diligente será, sem qualquer dúvida, o
irmão de todos…
— Sim… sim, não tenho adversários… — gaguejou o moço, constrangido.
27 Mas, na tela mental, sem
que ele pudesse controlar a eclosão das próprias reminiscências, apareceram
Amaro e Zulmira, como os desafetos que ele, no âmago do espírito, não
conseguia desculpar.
28 Odiava-os, sim,
odiava-os, — pensou de si para consigo, — jamais suportaria um acordo
com semelhantes adversários. Entretanto, a sinceridade da interlocutora
encantava-o. 29 Aquela
viúva jovem, cercada de três filhinhos, superando talvez obstáculos
dos mais inquietantes para viver, constituía um exemplo de quanto podia
edificar o espírito de sacrifício. Em nenhum ambiente encontrara antes
aquele calor de fé pura necessário às grandes construções de ordem moral.
30 Além de tudo, laços
de vigorosa afinidade impeliam-no para aquela mulher, com quem se simpatizara
à primeira vista. Por mais vasculhasse as próprias lembranças, não conseguia
recordar onde, como e quando a conhecera. Sentia, porém, que a palavra
dela lhe impunha indefinível bem-estar…
31 Fitando-a, com enternecimento,
perguntou:
— A senhora julga que devemos procurar a conciliação com qualquer espécie de inimigos?
— Sim! — Respondeu a interpelada sem hesitar.
32 — E quando os adversários
são de tal modo inconvenientes que a simples aproximação deles nos causa
angústia?
33 Antonina compreendeu que
algo doloroso vinha à tona daquela consciência que lhe ouvira a dissertação,
ocultando-se, e obtemperou:
— Entendo que há sofrimentos morais quase intoleráveis, entretanto,
a oração é o remédio eficaz de nossas moléstias íntimas. 34
Se temos a infelicidade de possuir inimigos, cuja presença nos perturba,
é importante recorrer à prece, rogando a Deus nos conceda forças para
que o desequilíbrio desapareça, porque, então, um caminho de reajuste
surgirá para nossa alma. Todos necessitamos da alheia tolerância em
determinados aspectos de nossa vida.
35 Os olhos de Mário cintilaram.
— E quando o ódio nos avassala, ainda mesmo quando não desejemos? — Inquiriu,
preocupado.
— Não há ódio que resista aos dissolventes da compreensão e da boa vontade. Quem procura conhecer a si mesmo, desculpa facilmente…
36 Silva empalidecera.
Antonina percebeu que o tema lhe fustigava o coração e, amparada por nosso instrutor que a enlaçava, paternal, rematou considerando:
— Um homem, porém, na sua tarefa, é um missionário do amor fraterno. Quem socorre os doentes, penetra a natureza humana e entra na posse da grande compaixão. As mãos que curam não podem odiar…
37 Em seguida, o primogênito
da casa fez a prece de encerramento.
A viúva serviu o café reconfortante, acompanhado de um bolo humilde.
38 A conversação prosseguia
animada, todavia, o hóspede consultou o relógio e reparou que o tempo
lhe exigia a retirada.
39 Deu instruções a Antonina,
quanto à medicação da doentinha, e pediu, respeitoso, para voltar no
dia imediato, não somente para rever Lisbela, mas também para palestrar
com os amigos.
40 A senhora e as crianças
aquiesceram, felizes, afirmando-lhe que seria sempre bem-vindo, e Mário,
com um sentimento novo a lhe brilhar nos olhos, seguiu dentro da noite,
como quem caminhava tangido por abençoada esperança, ao encontro de
novo destino.
André Luiz