1.
Quatro semanas correram céleres, quando fomos realmente procurados por
Odila, no Templo do Socorro, para um entendimento particular.
2 Clarêncio, Hilário e eu
recebemo-la quase sem surpresa.
Vinha algo triste e preocupada.
Com respeitosa delicadeza, contou-nos a experiência inquietante que atravessava.
3 Júlio prosseguia apresentando
na fenda glótica a mesma ferida. Instalara-se com ele em aposentos adequados
na Escola das Mães e ao filhinho dispensava todo o cuidado suscetível
de reerguer-lhe as energias, entretanto, a luta continuava… Recursos
medicamentosos e passes magnéticos não faltavam, contudo, não surtiam
efeito.
4 Daria tudo para vê-lo forte
e feliz.
Esperava a descoberta de algum milagre, capaz de atender-lhe o anseio de mãe, no entanto, visitara em companhia de Blandina outros setores de assistência à infância torturada; vira inúmeras crianças infelizes, portadoras de problemas talvez mais dolorosos que aqueles do filhinho bem-amado.
5 Apavorara-se.
Jamais supusera a existência de tantas enfermidades depois da morte.
6 Tentara obter os bons ofícios
de vários amigos, para esclarecer-se convenientemente, e todos, à uma,
repetiam sempre que os compromissos morais adquiridos conscientemente
na carne somente na carne deveriam ser resolvidos, e que, por isso mesmo,
a reencarnação para Júlio era o único caminho a seguir.
O corpo físico funcionaria como abafador da moléstia da alma, sanando-a,
pouco a pouco…
7 Que fizera o menino no pretérito
para receber semelhante punição?
A pobre senhora enxugava as lágrimas que lhe caíam espontâneas.
8 Clarêncio, profundo conhecedor
do sofrimento humano, falou como sacerdote:
— Odila, o passado agora não é o remédio próprio. Atendamos à hora que passa. Temos Júlio extremamente necessitado à nossa frente e o alívio dele é o nosso objetivo mais imediato.
9 A mãezinha resignada concordou
num gesto silencioso.
— Também creio, — prosseguiu o nosso instrutor, imperturbável, — que
a reencarnação do pequeno é urgente medida se desejamos observá-lo no
caminho da própria recuperação.
10 — Irmã Clara recomendou-me
viesse rogar-lhe o concurso. Ajude-me, abnegado amigo!…
— Somos todos irmãos, — ajuntou Clarêncio generoso, — e achamo-nos uns à frente
dos outros para a prestação do serviço mútuo. 11
Nosso Júlio não é uma criatura comum e, por esse motivo, não seria justo
renascer no mundo a esmo, como planta inculta germinando à toa, no mato
da vida inferior. Assim sendo, analisemos o quadro de tuas relações
afetivas…
2. Depois de ligeira pausa, acrescentou:
— Tens grande plantio de amizades puras na Terra? Em questões de auxílio,
não podemos perder os nossos sentimentos de vista. 2
Tanto para entrar no reino do Espírito, como para entrar no reino da
carne, em melhores condições, não podemos prescindir da cooperação de
amigos sinceros que nos conheçam e nos amem..
3 — Ah! Sim, compreendo… —
Exclamou a interlocutora com algum desapontamento. — Sempre ocupada
com a nossa casa e com a nossa família, nunca pude efetivamente cultivar
tantas afeições, como seria de desejar. Amaro, porém…
4 — Perfeitamente,
— atalhou o Ministro, completando-lhe a frase, — estou certo de que
Amaro continuará sendo para o menino um admirável companheiro, entretanto,
não podemos dispensar no cometimento o concurso de Zulmira. Precisamos
dela no trabalho maternal. Para isso, é imprescindível te faças mais
devotada, mais amiga… Um esforço pede outro. Sem o lubrificante da cooperação,
a máquina da vida não funciona.
5 Os olhos de Odila faiscaram
de esperança.
— Tudo farei por ajudá-la, auxiliando a mim mesma, — disse, comovida,
— entendo mesmo nesse imperativo de fraternidade a doce determinação
do Senhor, constrangendo-me a operosa boa vontade para com ela. 6
Realmente, — acentuou, sorrindo, — reparo quão sublime é a Infinita
Bondade do Céu. A princípio lutei contra Zulmira, desejando ser amada
de meu esposo, agora devo lutar em favor de nossa irmã por amar o meu
filho. 7 Muito erramos,
disputando o amor dos outros, entretanto, corrigimo-nos e acertamos
o passo, quando procuramos amar…
— Sem dúvida, as tuas conclusões são luminoso ensinamento, — concordou
o Ministro, bem humorado; — em tudo vemos a Eterna Sabedoria.
8 — Devo buscar alguma regra
específica?
— Creio, — ponderou o nosso orientador que as tuas visitas afetuosas ao antigo
lar, consolidando-lhe a harmonia, são a providência básica para que
Júlio encontre um clima de confiança. 9
Admito que o nosso pequeno reclama especiais atenções, considerando-se-lhe
a posição de enfermo, para quem a reencarnação apresenta obstáculos
justos.
10 O entendimento alongou-se
por mais tempo, entre os conselhos paternais do Ministro e a sincera
humildade da visitante.
Quando Odila se despediu, desfechamos sobre o instrutor algumas perguntas que nos fustigavam a cabeça.
11 A reencarnação
como lei exigia o concurso da amizade para cumprir-se? Os desafetos
da vida influíam em nosso futuro? O trabalho reencarnatório não seria
uma imposição natural?
12 Clarêncio ouviu, atencioso,
as indagações e respondeu, satisfeito:
— A lei é sempre a lei. Cabe-nos tão somente respeitá-la e cumpri-la.
Nossa atitude, porém, pode favorecer-lhe ou contrariar-lhe o curso,
em favor ou em prejuízo de nós mesmos. 13
O renascimento na carne funciona em condições idênticas para todos,
contudo, à medida que se nos desenvolvem o conhecimento e o amor, conseguimos
colaborar em todos os serviços do aperfeiçoamento moral em nossas recapitulações.
14 A alma, como a
planta, pode ressurgir em qualquer trato de solo, mas não seria justo
relegar sementes selecionadas a terrenos incultos. 15 A reencarnação, por si, tanto quanto ocorre nos reinos inferiores à
evolução humana, obedece a princípios embriogênicos automáticos, com
bases na sintonia magnética; contudo, em se tratando de criaturas com
alguns passos à frente da multidão comum, é possível ajustar providências
que favoreçam a execução da tarefa a cumprir. Nesses casos, a plantação
de simpatia é fator decisivo na obtenção dos recursos de que necessitamos…
16 Quem cultiva a
amizade somente na família consanguínea, dificilmente encontra meios
para desempenhar certas missões fora dela. Quanto mais extenso o nosso
raio de trabalho e de amor, mais ampla se faz a colaboração alheia em
nosso benefício.
3.
— E quando, desprevenidos, deixamos que a antipatia cresça em derredor
de nós? — Inquiriu Hilário, com interesse.
— Toda antipatia conservada é perda de tempo, em muitas ocasiões acrescida de lamentáveis compromissos. O espinheiro da aversão exige longos trabalhos de reajuste. Em várias circunstâncias, para curar as chagas de um desafeto, gastamos muitos anos, perdendo o contato com admiráveis companheiros de nossa jornada espiritual para a Grande Luz.
4. A palavra de Clarêncio impunha-nos graves reflexões e talvez por isso a quietação baixou sobre nós.
2 Soubemos, mais tarde, que
a genitora de Evelina passou a dispensar envolvente carinho ao ferroviário
e à companheira doente, que, à custa de muito esforço dela, restabeleceu
afinal a saúde orgânica.
3 Preparando o retorno do
filhinho, Odila associou-se, de coração, à tarefa de restaurar-lhes
a harmonia conjugal e o contentamento de viver.
4 Foi assim que, transcorridas
algumas semanas, recebemos um convite da Irmã Clara para uma visita
ao Lar da Bênção.
5 Em noite próxima, Odila
conduziria a segunda esposa de Amaro ao encontro de Júlio, como derradeira
preliminar do trabalho reencarnatório.
6 No momento aprazado,
achávamo-nos a postos.
Blandina, Mariana, Clarêncio, Hilário e eu, palestrando animadamente em aposentos reservados na Escola das Mães, cercávamos o alvo berço em que o doentinho gemia de quando em quando.
7 Assistida por irmã Clara,
Odila demandara o antigo ninho doméstico, no propósito de acompanhar
Zulmira até nós.
Decorrido algum tempo de expectação, as três chegaram, envolvidas em luminosa onda de paz.
8 Enlaçada pelos braços das
duas protetoras, a ex-obsidiada parecia feliz, não obstante a impressão
de medo e insegurança que lhe transparecia do olhar.
9 Respondeu-nos as saudações
com a estranheza de quase todos os encarnados que alcançam as Esferas
superiores da vida espiritual, antes da morte física, e, logo após,
sustentada pelas companheiras, aproximou-se do pequeno enfermo, identificando-o,
espantada.
— Será Júlio, meu Deus?
10 — É verdadeiramente Júlio!
— Confirmou Odila, fraternal, — para ele te rogamos socorro! Nosso pequeno
precisa renascer, Zulmira! Poderás auxiliá-lo, oferecendo-lhe o regaço
de mãe?
Vimos a interpelada em lágrimas de alegria.
11 Inclinou-se sobre o menino,
afagando-o com intraduzível ternura, e falou em voz quase sufocada pela
comoção:
— Estou pronta! Devo a Júlio cuidados que lhe neguei… Louvo reconhecidamente a Deus por esta graça! Sinto que assim nunca mais serei assaltada pelo remorso de não haver feito por ele quanto me competia!… Será meu filho, sim!… Conchegá-lo-ei de encontro ao peito! Ó Senhor, ampara-me!…
12 Abraçou o menino enfermo
e afigurou-se-nos, desde então, incapaz de qualquer sintonia conosco.
Talvez religada, de súbito, a inquietantes recordações da fixação mental
que atravessara, pareceu-nos cega e surda, sob o império de inesperada
introversão.
13 O Ministro, atendendo ao
apelo de Clara, abeirou-se dela e amparou-a, recomendando:
— Convém seja nossa irmã restituída ao lar terrestre. O choque repetido será prejuízo grave. Amanhã, reconduziremos nosso pequeno ao santuário doméstico de onde veio, confiando-o, enfim, à tarefa do recomeço.
14 A sugestão foi obedecida.
E enquanto Zulmira voltava ao templo familiar, arquivávamos nossa expectação, à espera do dia seguinte.
André Luiz