1.
Preocupados com o caso de Júlio, no dia imediato indagamos do orientador
sobre a planificação do serviço reencarnatório, ao que Clarêncio informou,
conciso:
2 — O problema é doloroso,
mas é simples. Trata-se tão somente de ligeira prova necessária. Júlio
sofrerá o aflitivo desejo de permanecer na Terra, com o empréstimo do
corpo físico a prazo longo, entretanto, suicida que foi, com duas tentativas
de autoaniquilamento, por duas vezes deverá experimentar a frustração
para valorizar com mais segurança a bênção da vida terrestre. 3
Depois de estagiar por muitos anos nas regiões inferiores de nosso Plano,
confiando-se inutilmente à revolta e à inércia, já passou pelo afogamento
e agora enfrentará a intoxicação. Tudo isso é lastimável, no entanto…
4 E mostrando significativa
expressão fisionômica, ajuntou:
— Quem aprenderá sem a cooperação do sofrimento?
5 — Penso, contudo, no martírio
dos pais… — Considerou Hilário, hesitante.
— Meus amigos, — falou o Ministro, generoso, — a justiça é inalienável. Não
podemos iludi-la. Com o desequilíbrio emocional de Amaro e Zulmira,
no pretérito, Júlio arrojou-se a escuro despenhadeiro de compromissos
morais e, na atualidade, reabilitar-se-á com a cooperação deles. Ontem,
o casal, por esquecê-lo, inclinou-o à queda, hoje, por amá-lo, garantir-lhe-á
o soerguimento.
2. A palestra esmoreceu, talvez porque o assunto nos compelisse a severa meditação.
Hilário e eu, refletindo na absoluta harmonia da Lei, calamo-nos cismarentos,
à espera da noite, quando integraríamos a caravana da amizade que restituiria
a criança enferma ao ninho antigo.
2 Com efeito, avizinhava-se
a madrugada, quando alcançamos a residência do ferroviário, envolvida
em sombra.
Odila trazia nos braços o filho irrequieto e gemente, enquanto o Ministro, Irmã Clara, Blandina, Mariana, Hilário e eu rodeávamos ambos, em silêncio.
3 Penetramos a sala humilde.
Qual se houvera sorvido invisível anestésico, o menino emudeceu.
Junto de nós, o orientador, solícito, explicou:
— O doentinho encontra grande alívio em contato com os fluidos domésticos.
O reequilíbrio da alma no ambiente que lhe é familiar no mundo, constitui
base firme para o êxito da reencarnação.
4 Não prosseguiu, contudo.
Irmã Clara fez-lhe expressivo aceno e o nosso instrutor penetrou, sozinho, a câmara conjugal, sem dúvida para certificar-se quanto à conveniência de confiarmos o pequenino à sua futura mãe.
5 Transcorridos alguns minutos,
Clarêncio veio ao nosso encontro, convidando-nos a entrar.
Enternecedor espetáculo desdobrou-se à nossa vista.
6 Zulmira em Espírito estendeu-nos
braços fraternos. Estava bela, radiante de alegria… E, quando recebeu
Júlio, conchegando-o ao próprio peito, pareceu-me sublimada madona,
aureolada por maternidade vitoriosa.
Odila chorava.
7 Clarêncio ergueu os olhos
para o Alto e orou, em voz comovedora:
— Senhor, abençoa-nos!… De almas entrelaçadas na esperança em teu infinito
amor e no júbilo que nasce da obediência aos teus desígnios, aqui nos
achamos, acompanhando um amigo que volta à recapitulação! Dá-lhe forças
para submeter-se resignado à cruz que lhe será a salvação!… 8
Ó Pai, sustenta-nos na grande estrada redentora em que o obstáculo e
a dor devem ser nossos guias, fortalece-nos o bom ânimo e a serenidade
e modera-nos o coração para que saibamos servir-te em qualquer circunstância!…
9 Sobretudo, Senhor,
rogamos-te auxilies a nossa irmã que investe sagradas aspirações femininas
no apostolado maternal! Santifica-lhe os anseios, multiplica-lhe as
energias para que ela se honre contigo na divina tarefa de criar!…
10 A palavra do Ministro, saturada
de paternal amor, desse amor que nos atinge o espírito até à fonte oculta
das lágrimas, levara-nos à comoção.
11 Zulmira, todavia, sensibilizou-nos
ainda mais. Atraída pelo poder magnético da oração, avançou com o menino
colado ao regaço até junto de nosso orientador, e ajoelhou-se.
12 Aquela humildade ingênua
lembrava-me a narração evangélica da viúva de Naim com o filho morto
aos pés do Cristo ( † )
e não pude conter o pranto que me vertia do coração.
13 Igualmente tocado por aquele
gesto espontâneo de confiança e fé, o Ministro voltou-se para ela e
afagou-lhe a cabeça, transfigurado.
Algo de sublime devia ter acontecido na alma daquele missionário da abnegação que me habituara a querer com extremado carinho.
Jorro estelar descia da Altura, inflamando-lhe a fronte e da destra que acariciava a irmã genuflexa projetavam-se raios de safirina luz…
14 Maravilhosos instantes de
expectação correram sobre nós.
Em seguida, sustentando-a nos braços, Clarêncio reergueu-a, conduzindo-a ao leito com a criança.
15 Zulmira, desde então, afigurou-se-nos
integralmente concentrada no filhinho, que se enlaçou a ela, instintivamente,
à maneira de um molusco a acomodar-se na própria concha.
Júlio dormira placidamente, enfim.
Abraçado ao colo materno, parecia fundir-se nele.
16 De outras vezes, acompanhara
trabalhos preparatórios de reencarnação, que exigiam concurso ativo
de técnicos do assunto e de benfeitores da vida superior, mas ali o
fenômeno era demasiado simples. O corpo sutil do menino como que se
justapunha aos delicados tecidos do perispírito maternal, adelgaçando-se
gradativamente aos nossos olhos.
17 Irmã Clara e as companheiras
oscularam a futura mãezinha, que tentava recuperar o corpo denso, conduzindo
consigo o pequeno confortado e desfalecente e retiramo-nos, tomados
da alegria que nasce, pura, da obrigação bem cumprida.
18 Odila encarregou-se da assistência
a Zulmira, e Clarêncio prometeu seguir, de perto, os serviços naturais
daquela gravidez incipiente.
3.
Quando nos vimos, de novo, a sós, as indagações surgiram, imperiosas.
2 O Ministro, com a paciência
admirável de todos os dias, tomou a palavra e esclareceu:
— A reencarnação no caso de Júlio não reclama de nossa Esfera cuidados
especiais. É uma descida experimental ao campo da matéria densa, com
interesse tão somente para ele mesmo e para os familiares que o cercam.
3 Todavia, se a existência
do filho de Amaro estivesse destinada, no momento, a influenciar a comunidade,
se ele fosse detentor de méritos indiscutíveis, com responsabilidades
justas nos caminhos alheios, o problema seria efetivamente outro. Forças
de ordem superior seriam fatalmente mobilizadas para a interferência
nos cromossomos, garantindo-se o embrião do veículo físico de maneira
adequada à missão que lhe coubesse…
4 — E se o reencarnante
fosse um homem de larga intelectualidade? — Inquiriu Hilário, estudioso.
— Merecer-nos-ia cautelosa atenção na estrutura cerebral, para que lhe não faltasse um instrumento à altura de seus deveres na materialização do pensamento.
5 — E se fosse um
médico? Um grande cirurgião por exemplo? — Perguntei por minha vez.
— Receberia assistência aprimorada na formação do sistema nervoso, assegurando-se-lhe pleno domínio das emoções.
6 Porque não mais indagássemos
especificamente, o instrutor continuou:
— Contudo, em milhares de renascimentos, na Terra, os princípios embriogênicos
funcionam automáticos, cada dia. 7
A lei de causa e efeito executa-se sem necessidade de fiscalização da
nossa parte. 8 Na reencarnação,
basta o magnetismo dos pais, aliado ao forte desejo daquele que regressa
ao campo das formas físicas. 9
De retorno ao corpo físico, estamos invariavelmente animados de um propósito
firme… Seja o anseio de alijar a dor que nos atormenta, a aspiração
de conquistas espirituais que nos facilitem o acesso à Vida Superior,
o voto de recapitular serviços mal feitos ou o ideal de realizar grandes
tarefas de amor entre aqueles a quem nos afeiçoamos no mundo. 10
De modo geral, a maioria das almas que reencarnam satisfazem à fome
inquietante de recomeço. Quem não atendeu com exatidão ao trabalho que
a vida lhe delegou, depressa se rende ao impositivo de repetição da
experiência e o ressurgimento na luta física aparece por bênção salvadora.
11 Milhões de destinos
se reestruturam dessa forma, qual se refaz uma grande floresta. A sementeira
cresce, estimulada pelo magnetismo do solo; a existência corpórea germina
de novo, incentivada pelo magnetismo da carne…
4. Ante a pausa ligeira do Ministro, Hilário perguntou, respeitoso:
— O seio maternal, desse modo…
2 Nosso mentor completou-lhe
a definição, respondendo:
— É um vaso anímico de elevado poder magnético ou um molde vivo destinado
à fundição e refundição das formas, ao sopro criador da Bondade Divina,
que, em toda a parte, nos oferece recursos ao desenvolvimento para a
Sabedoria e para o Amor. 3
Esse vaso atrai a alma sequiosa de renascimento e que lhe é afim, reproduzindo-lhe
o corpo denso, no tempo e no espaço, como a terra engole a semente para
doar-lhe nova germinação, consoante os princípios que encerra. 4
Maternidade é sagrado serviço espiritual em que a alma se demora séculos,
na maioria das vezes, aperfeiçoando qualidades do sentimento.
5 A palestra prosseguia valiosa,
mas o tempo nos convocava a outros misteres e, em razão disso, fomos
constrangidos a interromper o nosso entendimento, em torno do que havíamos
visto.
André Luiz