1.
Odila, sob o patrocínio da irmã Clara, foi internada numa instituição
de tratamento por alguns dias, e durante sete noites consecutivas visitamos
Zulmira, em companhia de nosso orientador, a fim de auxiliar o soerguimento
dela.
2 A segunda esposa de Amaro
mostrava-se melhor. Mais silenciosa. Mais calma.
Não saíra, porém, da inércia a que se recolhera.
Alijara a excitação de que se via objeto, mas prosseguia entregue a extrema prostração.
Subnutrida, apática, sustentava-se no mais absoluto desânimo.
3 Atendendo-nos à inquirição
habitual, Clarêncio observou, prestimoso:
— Acha-se agora liberta, contudo, reclama estímulo para subtrair-se à exaustão. Falta-lhe a vontade de lutar e viver. Confiemos, no entanto. A própria Odila favorecer-lhe-á a recuperação. À medida que se lhe restaure a visão espiritual, a primeira esposa de Amaro aceitará o imperativo de renúncia e fraternidade para construir o futuro que lhe interessa.
4 Zulmira, com efeito, continuava
livre e tranquila.
As peças do corpo funcionavam com irrepreensível harmonia, mas, efetivamente, algo prosseguia faltando…
A máquina mostrava-se reequilibrada, entretanto, mantinha-se preguiçosa, exigindo adequadas providências.
2. Transcorrida uma semana, Irmã Clara convidou-nos a breve entendimento.
2 Comunicou-nos que Odila
revelava grande transformação.
Submetida à assistência magnética, a fim de sondar o passado, reconhecera
o impositivo de sua colaboração com o marido para alcançarem ambos a
vitória real nos Planos do Espírito.
3 Suspirava pelo reencontro
com o filhinho, dispunha-se a tudo fazer para ser útil ao esposo e à
filhinha…
E, para tanto, combateria a repulsa espontânea que experimentava por Zulmira, a quem auxiliaria como irmã, reajustando-se devidamente para fortalecê-la e ampará-la.
A benfeitora mostrava-se satisfeita.
4 Recomendava-nos trouxéssemos
Amaro, tão logo pudesse ele ausentar-se do veículo físico, na noite
próxima, até à casa espiritual de refazimento em que Odila se encontrava.
Do entendimento entre ambos, resultariam decerto os melhores efeitos.
A mãezinha de Evelina estava reformada e daria provas do reajuste, efetuando o primeiro esforço para a reconciliação.
5 A solicitação de Clara foi
alegremente atendida.
Depois de meia-noite, quando o ferroviário se rendeu à branda influência do sono, guiamo-lo ao sítio indicado.
No aposento claro e florido do santuário de recuperação em que Odila se localizava, aguardava-nos a instrutora junto dela.
6 O pai de Júlio, que seguia
menos consciente ao nosso lado, em reconhecendo a presença da mulher
que amava, ajoelhou-se, cobrou a lucidez que lhe era possível em tais
circunstâncias, e exclamou, enlevado:
— Odila!… Odila!…
7 — Amaro! — Respondeu a antiga
companheira, então completamente transfigurada. — Sou eu! Sou eu quem
te pede coragem e fé, serenidade e valor na tarefa a realizar!…
— Estou farto, farto… — Clamou ele, agora em lágrimas a lhe verterem, copiosas.
8 Odila, sustentada pela venerável
amiga, levantou-se com alguma dificuldade e, alisando-lhe os cabelos,
perguntou, em voz comovida:
— Farto de quê?
— Sinto-me entediado da vida… Casei-me, de novo, como deves saber, acreditando garantir a segurança de nossos filhos para o futuro, entretanto, a mulher que desposei nem de longe chega a teus pés… Fui ludibriado! Em lugar da felicidade, encontrei o desapontamento que não sei disfarçar!…
9 E, fitando-a com enternecedora
expressão, comentou, triste:
— Nosso Júlio morreu num desastre, quando encerrava para mim as melhores aspirações, nossa filha se estiola num quarto sem alegria e a madrasta que lhes impus apodrece num leito!… Ah! Odila, poderás compreender o que sofro? Tenho rogado a morte ao Céu para que nos reunamos na eternidade, mas a morte não vem…
10 A esposa, compreensivelmente
mais bela pelos pensamentos redentores que agora lhe manavam do ser,
com os olhos enevoados de pranto, falou-lhe com inflexão inesquecível:
— Sim, Amaro, compreendo! Também eu padeci muito, no entanto, hoje
reconheço que a nossa dor é agravada por nós mesmos… Por que havemos
de converter a distância em rebelião e a saudade em venenoso fel? Por que
não reconhecer a Majestade Suprema de Deus, na orientação de nossos
destinos? 11 Não
temos sabido cultivar o amor que é sacrifício na Terra para a edificação
de nosso paraíso espiritual… Temos exigido quando devemos dar, dilacerado
quando nos cabe recompor!… Amaro, é preciso acalmar o coração para que
a vida nos auxilie a entendê-la, é indispensável ceder de nós, a fim
de receber dos outros o concurso de que necessitamos… 12
Na aspereza de meus sentimentos deseducados, vinha eu adubando o espinheiro
do ciúme, atormentando-te o pensamento e perturbando a nossa casa! Mas,
em alguns dias rápidos, adquiri mais ampla penetração em nossos problemas,
usando a chave da boa vontade!… Quero melhorar-me, progredir, reviver…
13 O ferroviário contemplou-a,
carinhoso e reverente, e acentuou, desalentado:
— Isso não impede a terrível realidade. Achamo-nos em dois mundos diferentes… Infortunado que sou! Sinto-me desarvorado e infeliz!…
— Achava-me igualmente assim, contudo, procurei no silêncio e na oração
o roteiro renovador.
14 — Que fazer de Zulmira,
colocada entre nós como empecilho à nossa verdadeira união?
— Não raciocines desse modo! Ela não permaneceria em tua estrada sem motivo justo.
15 Nesse instante,
Clarêncio abeirou-se do ferroviário e, tocando-lhe a fronte com a destra,
ofereceu-lhe ao campo mental o retorno imediato às recordações das
dívidas por ele contraídas no Paraguai.
16 Amaro estremeceu e continuou
escutando.
— Se Zulmira foi situada no templo de nosso amor, — prosseguiu Odila, admiravelmente
inspirada, — é que nosso amor lhe deve a bênção da felicidade de que
nos sentimos possuídos…
— Sim… sim… — Aprovava agora o interlocutor, de posse das reminiscências fragmentárias
que lhe assomavam do coração.
17 — Interpretemo-la por nossa
filha, por irmã de Evelina, cujos passos nos compete encaminhar para
o bem. O lar não é apenas o domicílio dos corpos… É o ninho das almas,
em cujo doce aconchego desenvolvemos as asas que nos transportarão aos
cumes da glória eterna. Aceitemos a provação e a dor, como abençoadas
instrutoras de nossa romagem para Deus…
— Todavia, — ponderou o moço, triste, — sabes quanto te amo!…
18 — Não ignoras,
por tua vez, que o teu coração constitui para mim o tesouro maior da
vida, entretanto, hoje vejo o horizonte mais largo… Valeria realmente
o brilho dos oásis fechados? Serviria a construção de um palácio, em
pleno deserto, onde estaríamos humilhando com a nossa saciedade os viajores
que passassem por nós, mortificados de sede e fome? Como categorizar
o carinho que se pervertesse no isolamento, a pretexto de conservar
a ventura só para si? Renovemo-nos, Amaro! Nunca é tarde para recomeçar
o bem!… Trabalhemos, valorizando o tempo e a vida!…
19 Tocado talvez
nas fibras mais íntimas, o pai de Evelina chorava convulsivamente, infundindo
piedade.
Odila enlaçou-o com mais ternura e Clara convidou-nos a excursão através do grande jardim próximo.
20 A breves instantes, achávamo-nos
em plena contemplação do céu…
Os dois cônjuges instalaram-se em perfumado recanto para a conversação a sós.
Notamos que a orientadora se preocupava em deixá-los entregues um ao outro, para mais seguro ajuste espiritual. E, enquanto ambos se recolhiam a confortadoras confidências, distanciamo-nos, de algum modo, admirando a beleza da noite.
21 Maravilhoso, o firmamento
cintilava.
Longínquas constelações como que nos acenavam, indicando glorioso futuro…
Virações suaves deslizavam, de leve, quais se fossem cariciosas e intangíveis mãos do vento, amimando-nos a cabeça.
Flores de rara beleza vertiam do cálice raios de claridade diurna, como pequeninos e graciosos reservatórios do esplendor solar.
22 Irmã Clara fascinava-nos
com a sua palavra brilhante. Com simplicidade encantadora, comentava
suas viagens a outras Esferas de trabalho e realização, exaltando em
cada narrativa o amor e a sabedoria do Pai Celestial.
Por largo tempo, embevecidos, permutamos impressões acerca da excelsitude da vida que se nos revela sempre mais surpreendente e mais bela, em cada Plano da Criação.
23 Avizinhava-se o novo dia…
Tornamos à presença do casal para devolver o companheiro ao lar terrestre. Ambos, ao término do grande entendimento, apresentavam o rosto pacificado e radiante.
24 Irmã Clara guardou a pupila
nos braços e as duas seguiram-nos a romagem de volta.
Em casa, Amaro despediu-se de nós, risonho e calmo.
Dispúnhamo-nos à retirada, quando a instrutora nos advertiu:
— Esperemos. Odila retomará hoje a tarefa.
25 O relógio marcava seis da
manhã.
À maneira de colegial em dia de prova, a transfigurada mãezinha de Júlio fitava-nos com extrema expectação…
Amaro recuperou o corpo físico, descerrando os olhos com excelentes disposições.
26 Não conseguira relacionar
os aspectos particulares da excursão, mas conservava no cérebro a indefinível
certeza de que estivera com a primeira esposa em “algum lugar” e que
a vira reanimada e feliz.
Distendeu os braços com a deliciosa tranquilidade de quem encontra
o fim de longa e aflitiva tensão nervosa.
27 Levantou-se, reparando
que o dia começava alegre e lindo, sem dar conta de que a alegria e
a beleza haviam renascido nele próprio.
Sentia vontade de rir e cantar…
28 E, depois de
ausentar-se do banheiro, onde cantarolou baixinho uma canção que lhe
recordava o tempo em que se consorciara pela primeira vez, tornou, sorridente,
ao quarto de dormir.
Foi então que Odila o enlaçou carinhosamente e exclamou:
— Vamos, querido! Estendamos a nossa felicidade! Zulmira espera por nosso amor…
André Luiz