1.
A paisagem doméstica, na residência de Amaro, não mostrava qualquer
alteração.
2 Zulmira, atormentada
por Odila, que realmente lhe vampirizava as forças, jazia no leito,
apática e desolada, como estátua viva de angústia e medo, escutando
o vento que zunia lá fora…
Mais magra e mais abatida, exibia comovedoramente a própria exaustão.
3 Irmã Clara, depois de expressivo
entendimento com o nosso orientador, solicitou que nos mantivéssemos
a pequena distância, e, abeirando-se da genitora de Evelina, que tanto
quanto a enferma não nos percebia a presença, alongou os braços em prece.
4 Sob forte emoção, acompanhei
o formoso quadro que se desdobrou, divino, ao nosso olhar. Gradativamente,
o recinto foi invadido por vasto círculo de luz, do qual se fizera a
instrutora o núcleo irradiante. Assemelhava-se nossa amiga a uma estrela
repentinamente trazida à Terra, com os dois braços distendidos em forma
de asas, prestes a desferir excelso voo…
5 Cercava-a enorme halo de
dourado esplendor, como se ouro eterizado e luminescente lhe emoldurasse
a forma leve e sublime… Dos revérberos dessa natureza, passavam as irradiações
a tonalidades diferentes, em círculos fechados sobre si mesmos, caminhando
dos reflexos de ouro e opala ao róseo vivo, do róseo vivo ao azul celeste,
do azul celeste ao verde claro e do verde claro ao violeta suave, que
se transfundia em outros aspectos a me escaparem da apreciação…
6 Tive a ideia de que a irmã
Clara se convertera no centro de milagroso arco-íris, cuja existência
nunca pudera vislumbrar.
Fizera-se a casa excessivamente estreita para aquela abençoada fonte de raios balsamizantes e indefiníveis.
Reparei que a própria Odila se aquietara como que dominada por branda
coação.
7 Extático, mal consegui articular
alguns monossílabos, procurando esclarecimento em nosso instrutor.
— Irmã Clara, — informou o Ministro, igualmente enlevado, — já atingiu
o total equilíbrio dos centros
de força que irradiam ondulações luminosas e distintas. 8
Em oração, ao influxo da mente enaltecida, emite as vibrações do seu
sentimento purificado, que constituem projeções de harmonia e beleza
a lhe fluírem do ser. 9
Se partilhássemos com ela a mesma posição evolutiva, entraríamos agora
em relação imediata com o elevado Plano de consciência em que se exterioriza
e, então, em vez de somente observarmos este deslumbramento de luz e
cor, perceberíamos a mensagem glorificada que lhe nasce do coração,
de vez que as irradiações sob nossos olhos são música e linguagem, sabedoria
e amor do pensamento a expressar-se maravilhoso e vivo… 10
A sintonia espiritual perfeita, porém, só é possível entre aqueles que
se confundem na afinidade completa…
2. A mensageira transfigurada parecia mais bela.
2 Avançou para a primeira
esposa de Amaro e cobriu-lhe os olhos com a destra lirial.
— Reparem, — disse Clarêncio, feliz, — ela guarda o poder de ampliar
a visão. Odila identificar-lhe-á a presença, assim como a vemos.
3 Com efeito, vimos que a
genitora de Evelina, tocada por aqueles dedos celestes, proferiu um
grito de encantamento selvagem e caiu de joelhos.
4 Naturalmente ofuscada pelo
brilho de que se envolvia a visitante inesperada, começou a chorar,
suplicando:
— Anjo de Deus, socorre-me! Socorre-me!…
5 — Odila, que fazes? — Interrogou
a emissária com inesquecível inflexão de ternura.
— Estou aqui, vingando-me por amor…
— Haverá, porém, algum ponto de contato entre amor e vingança?
6 Indicando timidamente a
triste companheira que jazia acorrentada ao leito, Odila tentou conservar
a atitude que lhe era característica, exclamando, cruel:
— Devo alijar a intrusa que me assaltou a casa! Esta miserável mulher tomou-me o marido e assassinou-me o filhinho!… Quem ama faz justiça pelas próprias mãos!…
7 — Pobre filha! —
Revidou Clara, abraçando-a. — Quem ama semeia a vida e a alegria, combatendo
o sofrimento e a morte… 8
Quando nosso culto afetivo se converte em flagelação para os que seguem
ao nosso lado, não abrigamos outro sentimento que não seja aquele do
desvairado apego a nós mesmos, na centralização do egoísmo aviltante.
Achamo-nos à frente de infortunada irmã, arrojada a dolorosa prova.
Não te dói vê-la derrotada e infeliz?
9 — Ela desposou o homem que
amo!… — Soluçou Odila, mais dominada pela influência magnética da mensageira
que impressionada por suas belas palavras.
— Não seria mais justo, — ponderou Clara sem afetação, — considerar
que ele a desposou?
10 E, acariciando-lhe
a cabeça agora trêmula, a instrutora aduziu:
— Odila, o ciúme que não destruímos, enquanto dispomos da oportunidade
de trabalhar no corpo denso, transforma-se em aflitiva fogueira a calcinar-nos
o coração, depois da morte. 11
Acalma-te! A mulher de carne, que eras, precisa agora oferecer lugar
à mulher de luz que deves ser. A porta do lar terrestre, onde te supunhas
rainha de pequeno império sem fim, cerrou-se com os teus olhos materiais!
12 A passagem na Terra
é um dia na escola… Todos os bens que desfrutávamos no mundo de onde
viemos constituíam recursos do Senhor que no-los concedia a título precário.
Por lá, raramente nos lembramos de que o tesouro do carinho doméstico
é algo semelhante a sementeira preciosa, cujos valores devemos estender…
13 Começamos a obra
de amor no lar, mas é necessário desenvolvê-la no rumo da Humanidade
inteira. Temos um só Pai que é o Senhor da Bondade Infinita, que nos
centraliza as esperanças… Somos, assim, todos irmãos, partes integrantes
de uma família só… 14
Já te imaginaste no lugar de Zulmira, experimentando-lhe as dificuldades
e aflições? Já te colocaste na condição do esposo que asseveras amar?
Se te visses no mundo, sem a companhia dele, com os filhinhos necessitados
de consolo e sustentação, não sentirias reconhecimento por alguém que
te auxiliasse a protegê-los? 15
Consideras somente os teus problemas… Entretanto, o homem amado permanece
no cárcere de escuros padecimentos íntimos a debater-se com enigmas
inquietantes, sem que te disponhas a socorrê-lo…
16 — Não me fales
assim! — Imprecou a interpelada, com evidentes sinais de angústia, —
odeio a infame que nos roubou a felicidade…
— Odila, reflete! Esqueces-te de que a mulher sempre é mãe? 17
O túmulo não te restituirá o corpo que a Terra consumiu, e, se desejas
recuperar a ternura e a confiança do companheiro que deixaste na retaguarda,
é preciso saber amá-lo com o espírito. 18
Modifica os impulsos do coração! Não suponhas Amaro capaz de querer-te,
transtornada qual te encontras, entre as farpas envenenadas do despeito,
caso chegasse, de repente, até nós…
19 — Ela, porém, matou meu
filho!…
— Como podes provar semelhante acusação?
— A intrusa invejava-lhe a posição no carinho de Amaro.
— Sim, — concordou Clara, afetuosa, — admito que Zulmira assim se conduzisse.
É inexperiente ainda e a ignorância enquanto nos demoramos na Terra
pode impedir-nos a visão, mas não seria justo, tão somente por isso,
atribuir-lhe a morte do pequenino… 20
Medita! A verdadeira fraternidade ajudar-te-á a sentir naquela que te
sucedeu no lar uma filha suscetível de recolher-te o afeto e a orientação…
Em lugar de forjares uma inimiga na sinistra bigorna da crueldade, edificarás
uma dedicação nobre e leal para enriquecer-te a vida. 21
Retirando a luz do teu amor das chamas comburentes do inferno de ciúme
em que padeces pela própria vontade, serás realmente para o homem querido
e para a filha que clama por tua assistência uma inspiração e uma bênção!…
22 Talvez porque Odila, quase
vencida, simplesmente chorasse, a mensageira afagava-lhe os cabelos,
acrescentando:
— Sei que sofres igualmente como mãe atormentada… Recorda, contudo, que nossos filhos pertencem a Deus… E se a morte colheu a criança que estremeces, separando-a dos braços paternais, é que a Vontade Divina determinou o afastamento…
23 A mensageira amimava-lhe
a fronte, dando-nos a impressão de que a submetia a suaves operações
magnéticas.
Depois de alguns instantes em que apenas ouvíamos os soluços de Odila transformada, a venerável amiga acentuou:
— Porque não te dispões a clarear o próprio caminho, a fim de reencontrares o teu anjo e embalá-lo, de novo, em teus braços, ao invés de te consagrares inutilmente à vingança que te cega os olhos e enregela o coração?
24 Clara, certo, alcançara
o ponto sensível daquela alma atribulada, porque a infortunada genitora
de Evelina, qual se arrojasse para fora de si mesma todos os pesares
que lhe senhoreavam os sentimentos gritou, como fera jugulada pela dor:
— Meu filho!… Meu filho!…
E seu pranto convulsivo se fez mais angustiado, mais comovente.
25 A emissária do bem abraçou-a
com maternal carícia e falou-lhe aos ouvidos:
— Rejubila-te, irmã querida! Grande é a tua felicidade! Podes ajudar e isso
representa a ventura maior! Nada te impede auxiliar o companheiro da
humana experiência, ao alcance de tuas mãos, e basta uma prece de amor
puro, com o testemunho de tua compreensão e de tua piedade, para que
venças a reduzida distância entre o teu sofrimento e o filhinho idolatrado!…
26 Há vinte e dois séculos
espero por um minuto igual a este para o meu saudoso e agoniado coração,
de vez que os meus amados ainda não se inclinaram para mim!…
A voz de Clara parecia mesclada de lágrimas que não chegavam a surgir.
27 Dominada pelas vibrações
da mensageira celeste, Odila agarrou-se a ela, prosseguindo em choro
convulso, enquanto a instrutora repetia com desvelos de mãe:
— Vamos, filha! Vamos à procura de nossa renovação com Jesus!…
Amparando-a, Clara conduziu-a para fora, colada ao próprio peito.
28 Junto de nós, Clarêncio
informou:
— Agora, Zulmira poderá recuperar-se. A adversária retirou-se sem a violência que lhe prejudicaria o campo mental.
29 E, acompanhando o nosso
orientador, afastamo-nos por nossa vez, embora conservando a atenção
presa à continuação de nossa edificante aventura.
André Luiz