1.
Na noite imediata às experiências que descrevemos, o Ministro convidou-nos
a visitar a Irmã Clara, a quem pediria socorro em favor do esclarecimento
de Odila.
2 Eu me sentia cada vez mais
atraído para o romance vivo daquele grupo de almas que o destino enleara
em suas teias.
3 Se me fosse permitido, voltaria
de imediato para junto de Mário Silva rebelado, ou para junto de Amaro
paciente, a fim de observar o desdobramento da história, cujos capítulos
jaziam gravados nas páginas vivas de seus corações.
Todavia, era necessário esperar.
4 Enquanto buscávamos a intimidade
de Clara, descia o luar em prateados jorros sobre a paisagem que se
tapizava de flores.
Com o cérebro preso às preocupações resultantes do trabalho que nos exigia a atenção, algo indaguei de Clarêncio quanto à cooperação que pretendíamos solicitar.
5 Por que motivo rogaria
ele o concurso de outrem, quando se dirigira com tanto êxito à mente
de Esteves e Armando, reencarnados? Não lhes favorecera o retrocesso
da memória, até os recuados dias da luta no Paraguai? Porque não conseguiria
doutrinar também a desditosa irmã enferma?
6 O Ministro ouviu-me, tolerante,
e redarguiu:
— Iludes-te. Nem sempre doutrinar será transformar. Efetivamente, guardo
alguma força magnética suficientemente desenvolvida, capaz de operar
sobre a mente de nossos companheiros em recuperação; no entanto, ainda
não disponho de sentimento sublimado, suscetível de garantir a renovação
da alma. 7 Sem dúvida,
dentro de minhas limitações, estou habilitado a falar à inteligência,
mas não me sinto à altura de redimir corações. 8
Para esse fim, para decifrar os complicados labirintos do sofrimento
moral, é imprescindível haver atingido mais elevados degraus na humana
compreensão.
2. Dispunha-me a desfechar novo interrogatório, contudo, nosso orientador indicou-nos bela edificação próxima.
2 Cercada de arvoredo, que
servia de enfeite a espaçosos canteiros de flores, a residência de Clara
figurou-se-nos pequeno colégio ou gracioso internato para moças.
Até certo ponto, não nos enganáramos.
3 A nossa anfitriã não morava
num estabelecimento de ensino, entretanto, mantinha em casa um verdadeiro
educandário, tão grandes e luzidas eram as assembleias instrutivas que
sabia organizar.
4 Recebeu-nos em extenso salão,
onde era atenciosamente ouvida por quatro dezenas de alunos de variadas
condições, que se instalavam à vontade, em grupos diversos, sem qualquer
ideia de escola assinalando o ambiente em sua feição exterior.
5 De olhos rasgados e lúcidos
a lhe marcarem magnificamente o semblante com os traços aristocráticos
do rosto emoldurados pela basta cabeleira, Clara parecia uma jovem madona,
detida entre os melhores dons da mocidade e da madureza. Estendeu-nos
as mãos pequenas e finas, respondendo-nos às saudações com alegria sincera.
6 Nosso orientador rogou excusas,
pela nossa interferência no trabalho.
3.
— Não se incomodem, — acentuou a interlocutora, encantadoramente natural,
— achamo-nos num curso rápido, acerca da importância da voz a serviço
da palavra. Podem partilhá-lo conosco. Nossa aula é uma simples conversação…
2 Fitando bondosamente o Ministro,
rematou:
— Sentem-se. Sou eu quem pede perdão por faze-los esperar mais um pouco. Em breves instantes, todavia, entraremos em nosso entendimento mais íntimo.
3 E, voltando à poltrona que
nada tinha de cátedra, sem qualquer atitude professoral, tão grande
era o doce ambiente de maternidade que sabia irradiar de si, começou
a dizer para os aprendizes:
4 — Conforme estudamos
na noite de hoje, a palavra, qualquer que ela seja, surge invariavelmente
dotada de energias elétricas específicas, libertando raios de natureza
dinâmica. 5 A mente,
como não ignoramos, é o incessante gerador de força, através dos fios
positivos e negativos do sentimento e do pensamento, produzindo o verbo
que é sempre uma descarga eletromagnética, regulada pela voz. 6
Por isso mesmo, em todos os nossos campos de atividade, a voz nos tonaliza
a exteriorização, reclamando apuro de vida interior, 7
de vez que a palavra, depois do impulso mental, vive na base da criação;
é por ela que os homens se aproximam e se ajustam para o serviço que
lhes compete 8 e, pela
voz, o trabalho pode ser favorecido ou retardado, no espaço e no tempo.
4.
Dentro da pausa ligeira que se fizera espontânea, simpática senhora
interrogou:
2 — Mas, para que tenhamos
a solução do problema, é indispensável jamais nos encolerizarmos?
3 — Sim; — elucidou a instrutora,
calma, — indiscutivelmente, a cólera não aproveita a ninguém, não passa
de perigoso curto-circuito de nossas forças mentais, por defeito na
instalação de nosso mundo emotivo, arremessando raios destruidores,
ao redor de nossos passos…
4 Sorrindo bem humorada, acrescentou:
— Em tais ocasiões, se não encontramos, junto de nós, alguém com o material
isolante da oração ou da paciência, o súbito desequilíbrio de nossas
energias estabelece os mais altos prejuízos à nossa vida, porque os
pensamentos desvairados, em se interiorizando, provocam a temporária
cegueira de nossa mente, arrojando-a em sensações de remoto pretérito,
nas quais como que descemos quase sem perceber a infelizes experiências
da animalidade inferior. 5
A cólera, segundo reconhecemos, não pode e nem deve comparecer em nossas
observações, relativas à voz. A criatura enfurecida é um dínamo em descontrole,
cujo contato pode gerar as mais estranhas perturbações.
5. Um moço, com evidente interesse nas lições, argumentou:
2 — E se substituíssemos o
termo “cólera” pelo termo “indignação”?
Irmã Clara pensou alguns instantes e redarguiu:
— Efetivamente, não poderíamos completar os nossos apontamentos, sem
analisar a indignação como estado dalma, por vezes necessário. 3
Naturalmente é imprescindível fugir aos excessos. Contrariar-se alguém
a propósito de bagatelas e a todos os instantes do dia será baratear
os dons da vida, desperdiçando-os, de modo inconsequente, sem o mínimo
proveito para si mesmo ou para os outros. 4
Imaginemos a indignação por subida de tensão na usina de nossos recursos
orgânicos, criando efeitos especiais à eficiência de nossas tarefas.
Nos casos de exceção, em que semelhante diferença de potencial ocorre
em nossa vida íntima, não podemos esquecer o controle da inflexão vocal.
5 Assim como a administração
da energia elétrica reclama atenção para a voltagem, precisamos vigiar
a nossa indignação principalmente quando seja imperioso vertê-la através
da palavra, carregando a nossa voz tão somente com a força suscetível
de ser aproveitada por aqueles a quem endereçamos a carga de nossos
sentimentos. É indispensável modular a expressão da frase, como se gradua
a emissão elétrica…
6 E, ante a assembleia que
lhe registava os ensinamentos com justificável respeito, prosseguiu,
depois de ligeiro intervalo:
— Nossa vida pode ser comparada a grande curso educativo, em cujas
classes inumeráveis damos e recebemos, ajudamos e somos ajudados. 7
A serenidade, em todas as circunstâncias, será sempre a nossa melhor
conselheira, mas, em alguns aspectos de nossa luta, a indignação é necessária
para marcar a nossa repulsa contra os atos deliberados de rebelião ante
as Leis do Senhor. 8
Essa elevada tensão de espírito, porém, nunca deve arrojar-se à violência
e jamais deve perder a dignidade de que fomos investidos, recebendo
da Divina Confiança a graça do conhecimento superior. 9
Basta, dentro dela, a nossa abstenção dos atos que intimamente reprovamos,
porque a nossa atitude é uma corrente de indução magnética. 10
Em torno de nós, quem simpatiza conosco geralmente faz aquilo que nos
vê fazer. Nosso exemplo, em razão disso, é um fulcro de atração. 11
Precisamos, assim, de muita cautela com a palavra, nos momentos de tensão
alta do nosso mundo emotivo, a fim de que a nossa voz não se desmande
em gritos selvagens ou em considerações cruéis que não passam de choques
mortíferos que infligimos aos outros, semeando espinheiros de antipatia
e revolta que nos prejudicarão a própria tarefa.
6. Um amigo que acompanhava os ensinamentos, com interesse invulgar, perguntou, respeitoso:
2 — Irmã Clara, como devemos
interpretar as perturbações da voz, como, por exemplo, a gaguez e a
diplofonia?
3 — Sem dúvida, —
informou a instrutora, solícita, — os órgãos vocais experimentam igualmente
lutas e provações quando reclamam reajuste. 4
Por intermédio da voz, praticamos vários delitos de tirania mental e,
através dela, nos cabe reparar os débitos contraídos. 5
As enfermidades dessa ordem compelem-nos ao trabalho de recuperação
no silêncio, de vez que, sofrendo a alheia observação, aprendemos pouco
a pouco a governar os próprios impulsos, afeiçoando-os ao bem.
6 A orientadora, que falava
com absoluta simplicidade e à maneira de um anjo maternal dirigindo-se
aos filhinhos, comentou, ainda por alguns minutos, o tema singular com
surpreendente primor de definição.
7 Depois, finda a aula, permaneceram
no belo domicílio tão somente algumas jovens que encontravam em nossa
anfitriã desvelada benfeitora.
7.
Clara convidou-nos a pequena peça contígua e o Ministro deu-lhe a conhecer
o objetivo de nossa visitação. Alguém na Terra precisava ouvi-la, a
fim de modificar-se.
2 A interlocutora
perguntou, com carinho, quanto às particularidades do serviço que pretendíamos
realizar.
Clarêncio resumiu o drama que nos empolgava a atenção.
3 Quando se inteirou de que
amargurada mulher devia renunciar ao companheiro que permanecia na Terra,
vimos imensa compaixão se lhe estampar no rosto. Seus olhos enevoaram-se
de lágrimas que não chegaram a cair…
4 Compreendi que a nobre instrutora,
aureolada de soberanos valores morais, trazia consigo profundas mágoas
imanifestas. Certamente, buscávamos reconforto para um coração infeliz
num coração que talvez estivesse padecendo ainda mais…
5 — Pobre criatura! — Disse
a orientadora, comovida.
E, afirmando-se com tempo bastante para ausentar-se, acolheu-nos o apelo e dispôs-se a seguir-nos generosamente.
André Luiz