1.
— Júlio! Júlio! Comparece, covarde!… — Bramia o enfermeiro, possesso.
2 E percebendo talvez a simpatia
que Amaro nos conquistara, à face da serenidade com que suportava a
situação, prosseguiu, invocando, revel:
— Comparece para desmascarar o patife que procura comover-nos! Júlio, odeio-te! Mas é necessário apareças! Acusa teu desalmado assassino!…
3 O Ministro procurava contê-lo,
bondoso, mas Silva, como potro indomesticado, gesticulava a esmo e continuava,
conclamando:
— Júlio!… Júlio!…
4 Sim, Júlio não respondeu
à chamada, entretanto, alguém surgiu, surpreendendo-nos a atenção. A
irmã Blandina, em pessoa, qual se fora nominalmente intimada, estacou
junto de nós. Envolvidos na doce luz que nos banhou, de improviso, aquietamo-nos,
perplexos, à exceção de Clarêncio que se mantinha calmo, como se aguardasse
semelhante visita.
5 Depois de saudar-nos, Blandina
rogou, humilde:
— Irmãos, por amor a Jesus, atendei!… Temos Júlio, sob a nossa guarda. Acha-se doente, aflito… Vossos apelos individuais alteram-lhe o modo de ser… Poderia colocar-se mentalmente ao vosso encontro, contudo, atravessa agora difíceis provas de reajuste… Venho implorar-vos caridade!… Compadecei-vos de quem hoje se esforça por olvidar o que foi ontem para regenerar-se amanhã, com eficiência!…
6 Havia tanta aflição e tanta
ternura naquela rogativa que a vibração do ambiente modificou-se, de
súbito.
Comecei a entender com mais clareza a trama obscura do romance vivo que abordávamos. Júlio, o menino doente, era o companheiro que voltava na condição de filho do amigo com quem outrora se desaviera…
2.
Não pude, porém, alongar divagações, porque Silva, provavelmente revoltado
contra a emoção que nos senhoreava o espírito, passou a reclamar, de
novo:
2 — Anjo ou mulher,
não lutarei contra o sortilégio! Não lutarei! Mas preciso arrojar este
bandido ao despenhadeiro que merece por suas deslavadas mentiras!… Que
Júlio permaneça no Céu ou no inferno, sob a custódia dos arcanjos ou
dos demônios, todavia, exijo que a verdade surja, inteira!… 3
Recorro ao testemunho de Lina! Que Lina compareça! Que ela deponha!
Se nos achamos aqui, convocados pelo destino que nos algema uns aos
outros, que a pérfida mulher seja ouvida igualmente…
4 Nosso instrutor, assumindo
a chefia espiritual do grupo, convidou com energia e brandura:
— Lina encontra-se não longe de nós. Entremos.
A determinação foi obedecida.
5 Na penumbra do quarto que
já conhecíamos, a segunda esposa de Amaro jazia subjugada pela outra.
Enquanto Odila se nos afigurava mais rancorosa e mais dura, Zulmira revelava-se mais abatida.
6 Clarêncio enlaçou Mário,
como um pai que recolhe um filho, carinhosamente, e, apontando a enferma,
esclareceu, generoso:
— Amigo, acalma-te! Lina Flores, atualmente, padece na forja da luta e do sacrifício, a fim de recuperar-se. Apaga a labareda de ódio que te requeima o coração! Deixa que nova compreensão te beneficie a alma ulcerada!… Não nos cabe prejudicar o caminho de quem procura a regeneração que lhe é necessária!…
7 Ante o olhar de Mário, espantadiço
e agoniado, o Ministro considerou:
— Lina, hoje, com imensas dificuldades, tenta alcançar a altura do casamento digno e, superando tremendos obstáculos, constrói os alicerces da missão de maternidade para a qual se encaminha… Ajudemo-la com as nossas vibrações de compreensão e carinho. Quando amamos realmente, antes de tudo é a felicidade da criatura amada que nos interessa…
8 Nosso grupo avançou
algo mais. Junto de nós, Blandina mantinha-se em prece.
O orientador abeirou-se da doente, com atenção respeitosa, e mostrou-lhe o rosto ossudo e triste ao enfermeiro que, ao reconhecê-la, bradou, aterrado:
— Zulmira! Zulmira, então, é Lina que volta?
9 O Ministro acariciou-lhe
a cabeça e informou, conciso:
— Sim, regressou em companhia de Armando, em dolorosas reparações.
O consórcio para eles não foi o castelo de flores de laranjeira, mas
sim uma associação de interesses espirituais para o trabalho regenerativo.
Armando, em luta, no Plano da vida real, para reerguer-se, aceitou o
compromisso de reconduzi-la à dignidade feminina, amparando-lhe as angústias
silenciosas…
3. Estupefato, Silva exclamou, cambaleante:
2 — Quer dizer então que Zulmira
me traiu duas vezes?
— Não te refiras à traição, — corrigiu Clarêncio, sem alterar-se, —
é imprescindível compreender! 3
Armando, ontem, escutou apelos inferiores, incompatíveis com as responsabilidades
de que se via depositário. Hoje, é compelido a responder, embora constrangido,
a requisições de natureza edificante, às quais, em verdade, não lhe
será lícito fugir. 4
Lina Flores reclama alguém que a recambie ao serviço renovador, a fim
de que se habilite a auxiliar Júlio, devidamente. Todos somos devedores
uns dos outros. As almas aprimoram-se, grupo a grupo, à maneira de pequenas
constelações, gravitando em torno do Sol Magno, Jesus-Cristo!… 5
Como um astro que se distancia do núcleo em que se integra, abandonaste
a órbita de velhos companheiros de evolução, caindo, pelas vibrações
de afetividade e ódio, no centro de forças em que Leonardo Pires e Lola
Ibarruri aguardam-te a precisa cooperação, de modo a se liberarem perante
a Lei. 6 Amaro, noutro
tempo, separou Zulmira e Júlio, estabelecendo espinheiros dilacerantes
entre os dois… Agora, cabe-lhe reuni-los no carinho familiar, para que
na posição de mãe e filho se reajustem na afeição santificadora… 7
Antigamente, isolaste Leonardo da afetuosa assistência de Lola, criando
embaraços asfixiantes à própria marcha… Prepara-te na fé para congregá-los,
de novo, no templo doméstico, igualmente na condição de filho e mãe,
de maneira a se redimirem para a bênção do amor puro… 8
Nossas ações são pesadas na Justiça Divina… Não podemos enganar o Supremo
Senhor. Nossos débitos, por isso mesmo, devem ser resgatados, ceitil
a ceitil…
9 A ligeira preleção trouxera-nos
enorme proveito.
Amaro dobrara a cerviz, revelando-se disposto a obedecer aos ditames de natureza superior, fossem como fossem.
Silva, no entanto, não parecia desperto para as verdades que Clarêncio pronunciara.
4. Hipnotizado na contemplação da mulher querida, demonstrava-se indiferente.
2 Depois de fitá-la, absorto,
entre o carinho e a aversão, quebrou a quietude que envolvera o recinto,
rugindo, desesperado:
— Não posso modificar-me, desgraçado de mim!… Odiarei! Odiarei a infame que voltou!… Somente a vingança me convém, não quero perdoar! Não quero perdoar!…
3 Novamente enraivecido e
inquieto, como fera solta, erguia os punhos cerrados contra a desditosa
mulher que jazia no leito, em lastimável prostração. Seu veículo espiritual
rodeava-se agora de um halo cinzento-escuro, que despedia raios desagradáveis
e perturbantes.
4 Nosso orientador libertou-o
da influência magnética com que lhe tolhia as energias.
Tão logo se reconheceu sem o controle que lhe sofreava os movimentos, Silva retrocedeu, exclamando:
— Não suporto mais! Não suporto mais!…
E correu para o seio da noite.
5 Clarêncio recomendou-nos
seguir-lhe o passo, enquanto prestaria assistência ao ferroviário e
à esposa, em colaboração com Blandina. O enfermeiro, decerto, — informou
o Ministro prestimoso, — retomaria o corpo denso em aflitivas condições
de saúde. Passes anestesiantes deviam favorecê-lo. Não podia lembrar
a experiência grave daquela hora. A aventura provocada pela insistência
mental dele mesmo era suscetível de perigosas consequências.
6 Num átimo, Hilário e eu
achamo-nos ao lado de Silva, que aderia ao envoltório de carne com o
automatismo da molécula de ferro, atraída pelo ímã.
Examinamo-lo, atentamente.
O peito arfava-lhe, sibilante.
O coração acusava-se desgovernado, sob o império de insopitável arritmia…
7 De imediato, entramos em
ação, sossegando-lhe o campo mental, quanto possível, através de sedativos
magnéticos.
Ainda assim, apesar dos passes, pelos quais foi completamente envolvido de energias revigoradoras, o moço acordou agoniado, hesitante e trêmulo, como se estivesse fugindo de medonhas tempestades no mundo íntimo.
8 Semi-inconsciente, despendeu
vários minutos para identificar-se.
O pensamento surgia-lhe atormentado, nebuloso…
Tentou locomover-se, mas não conseguiu. Sentia-se chumbado à cama, quase na situação de um cadáver repentinamente desperto.
9 Buscou alinhar recordações,
contudo, não pôde.
Sabia tão somente que atravessara grande pesadelo cujas dimensões lhe não cabiam na memória.
Suarento, aflito, sentia-se morrer…
10 Instintivamente orou, suplicando
a Proteção Divina.
Bastou essa atitude dalma para ligar-se, com mais facilidade, aos fluidos restauradores que lhe administrávamos.
11 Pouco a pouco, readquiriu
os movimentos livres e levantou-se, ingerindo uma pílula calmante. Amedrontado,
sentou-se no leito e, mergulhando a cabeça nas mãos, falou, sem palavras,
de si para consigo: — “Estou evidentemente conturbado. Amanhã, consultarei
um psiquiatra. É a minha única solução”.
12 Sim, — concordei
comigo mesmo, — o ódio gera a loucura. Quem se debate contra o bem,
cai nas garras da perturbação e da morte.
Com semelhante raciocínio, afastei-me.
Clarêncio aguardava-nos.
Era preciso continuar na lição.
André Luiz