1.
Depois do nosso esforço de autocondensação, para o necessário ajuste
vibratório, Clarêncio abeirou-se dos dois amigos, com o amoroso poder
que lhe era característico e, em nos reconhecendo, Mário associou-nos
a presença ao pesadelo da véspera e passou a clamar:
2 — Meu caso não é com a polícia!…
Não precisamos de qualquer delegado aqui!…
— Acalma-te, amigo! — Respondeu o Ministro, atencioso. — Não somos quem julgas. Estamos aqui para que te lembres… É indispensável te recordes.
3 E, situando a destra na
fronte do enfermeiro, reparamos que Mário Silva aquietava-se, de repente.
O semblante dele acusou estranha metamorfose.
Afigurou-se-nos mais elegante, mais jovem.
4 Abriu desmesuradamente os
olhos, depois de alguns momentos, e exclamou, semi-aterrado:
— Ah! Agora!… Agora me lembro!… Meu agressor de ontem é Leonardo Pires…
Como poderia esquecê-lo assim tão infantilmente? Como não rememorar?
Disputávamos a mesma mulher… Achávamo-nos em Luque, quando conheci a
cantora e bailarina admirável… Lola Ibarruri! Quem senão ela poderia
oferecer-me o bálsamo do esquecimento?! Realmente fiz tudo para separá-los…
Ele não era o tipo de homem capaz de fazê-la feliz! Lola trazia consigo
a beleza, a juventude e a arte reunidas e eu carregava no peito o esquife
dos sonhos mortos… Deu-me o repouso de que minhalma necessitava… Restaurou-me.
5 Mas… Que domingo
terrível aquele da praça embandeirada, em Piraju!… Deslocavam-se as
forças para a caça ao inimigo… Imaginava, porém, a melhor maneira de
reencontrar a mulher querida e, naquela manhã de terrível memória, consegui
a simpatia de Frei Fidélis, antes da missa… O caridoso capuchinho auxiliar-me-ia,
advogando-me a causa… Lola não deveria movimentar-se, entretanto, poderia,
por minha vez, tornar à retaguarda!… Os maiorais eram meus amigos!…
Obteria, por isso, o favor do Príncipe!… 6
Arquitetava meus planos, quando encontrei Leonardo… Não supunha conhecesse
ele a deserção da companheira e procurei agradá-lo, aceitando-lhe a
companhia… O suculento repasto exigia algum trago de vinho e Pires não
hesitou, ministrando-me o veneno que trazia às ocultas!… Ah! Bandido!
Bandido!…
7 Mário levou as mãos à garganta,
como se aí registasse enorme sofrimento e caiu, desamparado, gemendo
de dor.
O Ministro, paciente, aplicou-lhe recursos magnéticos balsamizantes e o rapaz levantou-se, aturdido.
8 Amaro, que se mostrava igualmente
transtornado, acompanhava a cena com manifesta aflição.
2. Clarêncio ajudou o enfermeiro a firmar-se de novo sobre os pés e perguntou, concitando-o a relembrar:
— Por que razão te afeiçoaste à cantora, com tamanho desvario? Porque não atendeste
aos avisos da consciência, que, decerto, te rogava não despertasses
o ódio naquele que te aniquilaria o corpo físico?
2 Apresentando a expressão
de um louco, Mário desferiu desconcertante gargalhada e bradou:
— Porque amei Lola Ibarruri? Porque não tive escrúpulos em arrebatá-la ao companheiro
que a retinha nos braços?
3 Nosso instrutor afagava-lhe
a cabeça com o evidente intuito de reavivar-lhe a memória.
— Ah! Sim!… — Prosseguiu Mário Silva, alarmado, — ausentei-me de Assunção com
o espírito irremediavelmente desiludido…
4 De olhar vagueante, como
se surpreendesse o passado ao longe, nos recôncavos da noite, continuou:
— Nos arredores da formosa capital paraguaia, construíra minha casa
e era feliz!… Lina era o tesouro de meu coração… Minha amiga e minha
esposa, minha esperança e minha razão de ser… Descendente de uma das
famílias de Mato Grosso aprisionadas pelo inimigo, na invasão de dezembro
de 1864, encontrei-a sem parentes, asilada por respeitável família,
que a adotara por filha estremecida!… Ah! Quando lhe fitava os olhos
claros e doces, sentia-me transportado a céus imensos… Era tudo o que
a mocidade ideara de mais lindo para o meu coração… Nela encontrava
a divina novidade de cada dia e, apesar das vicissitudes da guerra,
mergulhávamo-nos ambos na rósea corrente dos mais belos sonhos… 5
O próprio Marquês de Caxias conheceu-a e animou-nos a união… Foi assim
que, em janeiro de 1869, quando a trégua nos atingira, um sacerdote
consagrou-nos o casamento… O Conselheiro Paranhos prometeu ajudar-nos,
tão logo regressássemos ao Brasil, para que o nosso consórcio fosse
devidamente festejado… Vivíamos tranquilos, como duas aves entrelaçadas
no mesmo ninho, quando tive a desgraça de levar ao nosso templo doméstico
dois companheiros de trabalho e de ideal… 6
Armando e Júlio… Sim, seriam eles amigos ou abutres? Sei apenas que
Lina e eles se fizeram íntimos em pouco tempo… Com a desculpa de aliviarem
os sofrimentos da campanha, os dois passaram a gastar, em nosso pequeno
santuário de ventura, todo o tempo que lhes era disponível. Descansava
minhalma na confiança sincera, até que um dia…
7 O semblante do narrador
alterou-se, de súbito.
Esgares de amargura modificaram-lhe a feição.
Imprimindo à voz lúgubre acento, continuou, atormentado:
— Até que, um dia, encontrei Lina e Júlio abraçados um ao outro, como se o tálamo conjugal lhes pertencesse.
8 Cravou em nós o olhar agora
coruscante e terrível e acrescentou:
— Compreenderão, acaso, a dor do homem que se vê irremissivelmente
atraiçoado pela mulher em que se apoia para viver? Entenderão o incêndio
que lavra no espírito flagelado de quem, num minuto, vê destruídas as
esperanças da vida inteira?… Tudo é treva para quem carrega consigo
mesmo o carvão dos enganos mortos! 9
Não quis acreditar no que via e interpelei a mulher amada… Lina, porém,
atirou-me em rosto o mais frio desprezo… Afirmou, rudemente, que não
podia amar-me, senão como irmã que se compadece de um companheiro necessitado;
que me desposara simplesmente para fugir às humilhações que experimentava
numa terra estrangeira e que eu, efetivamente, deveria desaparecer…
10 Envergonhado,
invoquei a proteção de superiores amigos e fugi de Assunção… Eu era,
contudo, um homem diferente… A segurança de caráter que cultivava, brioso,
fora abalada nos alicerces… Viciei-me… Confiei-me ao álcool e ao jogo…
Do militar responsável, desci à condição de aventureiro infeliz… Foi
assim que encontrei Lola e Leonardo e não hesitei em exterminar-lhes
a felicidade… É muito difícil albergar respeito aos outros, quando fomos
pelos outros desrespeitado.
11 Valendo-se da pausa que
se evidenciava, espontânea, Clarêncio indagou:
— E nunca recebeste notícias da esposa?
12 Mário Silva, reconduzido
à personalidade de Esteves pela influência magnética, exibiu sarcástico
sorriso e informou:
— Lina, que passei a odiar, era demasiado cruel. Achava-me não longe
de Assunção, depois de três meses sobre a mágoa terrível que me fora
assacada, quando vim a saber que Júlio fora igualmente escarnecido por
ela. 13 Certo dia,
de volta ao lar, encontrou-a nos braços de Armando, o outro amigo que
parecia consagrar-nos estima fraternal. Menos forte que eu mesmo, Júlio
esqueceu-se do revés com que me dilacerara, semanas antes, e, cego de
absorvente afeição, ingeriu grande dose de corrosivo… 14
Socorrido a tempo, na caserna, conseguiu sobreviver, mas, incapaz de
suportar os males corpóreos decorrentes da intoxicação, depois de alguns
dias embebedou-se deliberadamente e arrojou-se às águas do Paraguai,
aniquilando-se, enfim… 15
Depois disso, nada mais soube. A morte aguardava-me em Piraju… O destino
marcara-me, impiedoso…
16 Mário fixou desagradável
carantonha e acentuou:
— Sou um poço de fel. Não posso modificar-me… Haverá paz sem justiça e haverá justiça sem vingança?
17 Nosso orientador ergueu
a voz calmante e considerou, generoso:
— É necessário esquecer o mal, meu amigo. Sem aquela atitude de perdão, recomendada pelo Cristo, seremos viajores perdidos no cipoal das trevas de nós mesmos. Sem amor no coração, não teremos olhos para a luz.
3.
Silva dispunha-se a responder, entretanto, Amaro fizera ligeiro movimento
e mostrou-se-nos singularmente renovado. 2
Seu veículo espiritual parecia haver regredido no tempo. Revelava-se
mais leve e mais ágil e sua face impressionava pelos traços juvenis.
3 Buscou aproximar-se do enfermeiro
num gesto natural de cordialidade, todavia, em lhe observando o rosto
metamorfoseado, o antagonista bradou entre o ódio e a angústia:
— Armando! Armando!… Pois és tu? O Amaro que hoje detesto é o mesmo
Armando de ontem? Onde me encontro? Enlouqueci, porventura?!…
4 Instruindo-nos, cuidadoso,
Clarêncio falou, rápido:
— Não precisei despender grande esforço para que a memória de Amaro tornasse ao pretérito. O sofrimento reparador conferiu-lhe à mente e à sensibilidade recursos novos. Bastou-me tocá-lo de leve, para que aproveitasse a digressão do antigo companheiro, recuperando as recordações da época em estudo…
5 O esposo de Zulmira procurava
estender braços amigos ao adversário que o contemplava, galvanizado
de assombro, contudo, recuando, de repente, como animal ferido, Mário
gritou em desespero:
— Não, não! Não te acerques de mim! Não me provoques, não me provoques!…
6 O Ministro, no entanto,
situando-se entre os dois, pediu, comovidamente:
— Tenhamos calma! Respeitemo-nos uns aos outros!
7 E, dirigindo-se particularmente
ao enfermeiro, determinou, sem afetação:
— Agora, é o momento de nosso amigo. Comentaste o pretérito à vontade. É indispensável que Amaro fale por sua vez. A justiça, em qualquer solução, deve apreciar todas as partes interessadas.
8 Contido pela força moral
da advertência, Mário calou-se e, voltados então para o ferroviário,
que se fizera mais simpático pela serenidade de que se investira, continuamos
à escuta.
André Luiz