1.
Propúnhamo-nos seguir o caso de Zulmira, não só para cooperar, a favor
de suas melhoras, mas também para registar os ensinamentos possíveis,
e, solicitando o concurso de Clarêncio, dele ouvimos judiciosas ponderações.
2 — Sim, — disse,
— para auxiliar em processos dessa natureza, é preciso marchar para
a frente, mas, para compreender o serviço que nos compete e avançar
com segurança, é necessário voltar à retaguarda, armando-nos de lições
que nos esclareçam.
3 Não sabíamos como interpretar-lhe
a palavra, entretanto, ele mesmo nos socorreu, explicando, depois de
ligeira pausa:
— Para realizarmos um estudo geral da situação, convém o contato com outras personagens do drama que se desenrola. Ser-nos-á interessante, para isso, uma visita ao pequeno Júlio, no domicílio espiritual em que estagia.
— Oh! Será um prazer! — Clamei, contente.
— Poderíamos seguir agora? — Perguntou Hilário, encantado.
4 O Ministro refletiu por
segundos e observou:
— Nas responsabilidades que esposamos, não é aconselhável indagar por indagar. Procuremos o objetivo, a utilidade e a colaboração no bem. Não nos achamos em férias e sim em trabalho ativo.
5 Pensou, pensou… e aduziu:
— Sei que amanhã, à noite, Eulália deve acompanhar duas de nossas irmãs encarnadas à visitação dos filhinhos que as precederam na grande viagem da morte e que se encontram no mesmo sitio em que Júlio se demora asilado. Poderemos substituir nossa cooperadora no serviço a fazer. Seguiremos em lugar dela. Prestaremos assistência às nossas amigas e examinaremos a situação da criança.
6 Anotando a preciosa
lição de trabalho que aquelas expressões encerravam, aguardamos a noite
próxima, com ansiedade real.
Na hora aprazada, descemos à matéria densa,
em busca das irmãs que seguiriam conosco.
7 Deixou-nos o Ministro numa
casinha singela de remota região suburbana, depois de informar-nos:
— Aqui reside nossa irmã Antonina, com três dos quatro filhos que o
Senhor lhe confiou. 8
Incapaz de vencer as tentações da própria natureza, o marido abandonou-a
há quatro anos para comprometer-se em delituosas aventuras. 9
A dona da casa, porém, não desanimou. Trabalha com diligência numa fábrica
de tecidos e educa os rebentos do lar com acendrado amor ao Evangelho
de Nosso Senhor Jesus. Tem sabido resgatar com valor as dívidas que
trouxe do pretérito próximo. 10
Perdeu, há, meses, o pequeno Marcos, de oito anos, atacado de fulminante
pneumonia, com quem se encontrará, depois da prece que proferirá com
os pequeninos. 11 Trarei
comigo a outra companheira de nossa viagem. Quanto a vocês, auxiliem
nas orações e nos estudos de Antonina, até que eu volte, de modo a seguirmos
todos juntos.
12 Hilário e eu penetramos
a sala desataviada e estreita.
Uma senhora ainda jovem, mas extremamente abatida, achava-se de pé, junto de três lindas crianças, dois rapazinhos entre onze e doze anos e uma loura pequerrucha, certamente a caçula da família que pousava na mãezinha os belos olhos azuis.
13 Num recanto do compartimento
humilde, triste velhinho desencarnado como que se colocava à escuta.
2. Dona Antonina colocou sobre a toalha muito alva dois copos com água pura, tomou um exemplar do Novo Testamento e sentou-se.
2 Logo após, falou carinhosamente:
— Se não me falha a memória, creio que a prece de hoje deve ser feita por Lisbela.
3 A pequenita levou as minúsculas
mãos ao rosto, apoiou graciosamente os cotovelos sobre a mesa e, cerrando
os olhos, recitou:
— Pai Nosso que estais no Céu, santificado seja o vosso nome, venha a nós o
vosso Reino, seja feita a vossa vontade assim na Terra como nos Céus,
o pão nosso de cada dia dai-nos hoje, perdoai as nossas dívidas, assim
como perdoamos aos nossos devedores, não nos deixeis cair em tentação
e livrai-nos de todo mal, porque vosso é o Reino, o poder e a glória
para sempre. Assim seja. ( † )
4 Lisbela abriu os olhos,
de novo, e procurou silenciosamente a aprovação maternal.
Dona Antonina sorriu, satisfeita, e exclamou:
— Você orou muito bem, minha filha.
5 E dividindo agora a atenção
com os dois meninos, entregou o Evangelho a um deles, convidando:
— Abra, Henrique. Vejamos a mensagem cristã para os nossos estudos da noite.
O rapazinho escolheu o texto, ao acaso, restituindo o livro às mãos maternais.
6 A genitora, emocionada,
leu os versículos vinte e um e vinte e dois do capítulo dezoito das
anotações do apóstolo Mateus: ( † )
— “Então Pedro, aproximando-se dele, disse: — Senhor, até quantas vezes pecará meu irmão contra mim e eu lhe perdoarei? Até sete? Jesus lhe disse: — Não te digo que até sete, mas até setenta vezes sete.”
7 Calou-se dona Antonina,
como quem aguardava a manifestação de curiosidade dos jovens aprendizes.
O pequeno Henrique, iniciando a conversação, perguntou, com simplicidade:
— Mãezinha, porque Jesus recomendava um perdão, assim tão grande?
8 Demonstrando vasto treinamento
evangélico, a senhora replicou:
— Somos levados a crer, meus filhos, que o Divino Mestre, em nos ensinando
a desculpar todas as faltas do próximo, inclinava-nos ao melhor processo
de viver em paz. 9
Quem não sabe desvencilhar-se dos dissabores da vida, não pode separar-se
do mal. Uma pessoa que esteja parada em lembranças desagradáveis caminha
sempre com a irritação permanente. 10
Imaginemos vocês na escola. Se não conseguirem esquecer os pequeninos
aborrecimentos nos estudos, não poderão aproveitar as lições. Hoje é
um colega menos amigo a preparar lamentável brincadeira, amanhã é uma
incorreção do guarda enfadado em razão de algum equívoco. Se vocês imobilizarem
o pensamento na impaciência ou na revolta, poderão fazer coisa pior,
afligindo a professora, desmoralizando a escola e prejudicando o próprio
nome e a saúde. 11 Uma
pessoa que não sabe desculpar vive comumente isolada. Ninguém estima
a companhia daqueles que somente derramam de si mesmos o vinagre da
queixa ou da censura.
12 Nessa altura do ensinamento,
dona Antonina fitou o primogênito e perguntou:
— Você, Haroldo, quando tem sede preferiria beber a água escura de um cântaro recheado de lodo?
— Ah! Isso não, — replicou o mocinho muito sério, — escolherei água pura, cristalina…
— Assim somos também, em se tratando de nossas necessidades espirituais. 13
A alma que não perdoa, retendo o mal consigo, assemelha-se ao vaso cheio
de lama e fel. Não é coração que possa reconfortar o nosso. Não é alguém
capaz de ajudar-nos a vencer nas dificuldades da vida. Se apresentamos
nossa mágoa a um companheiro dessa espécie, quase sempre nossa mágoa
fica maior. Por isso mesmo, Jesus aconselhava-nos a perdoar infinitamente,
para que o amor, em nosso espírito, seja como o Sol brilhando em casa
limpa.
Expressivo intervalo fez-se notar.
14 O jovem Haroldo, de semblante
apoquentado, interferiu, indagando:
— Mas a senhora crê, mãezinha, que devemos perdoar sempre?
— Como não, meu filho?
— Ainda mesmo quando a ofensa seja a pior de todas?
— Ainda assim.
15 E, observando-o, inquieta,
dona Antonina acentuou:
— Porque tratas deste assunto com tamanha preocupação?
— Refiro-me ao papai, — disse o menino algo triste, — papai abandonou-nos quando
mais precisávamos dele. Seria justo esquecer o mal que nos fez?
16 — Oh! Meu filho!
— Comentou a nobre mulher, — não te detenhas nesse problema. Porque
alimentar rancor contra o homem que te deu a vida? Como condená-lo se
não sabemos tudo o que lhe aconteceu? Seria realmente melhor para o
nosso bem estar se ele estivesse conosco, mas, se devemos suportar a
ausência dele, que os nossos melhores pensamentos o acompanhem. Teu
pai, meu filho, com a permissão do Céu, deu-te o corpo em que aprendes
a servir a Deus. Por esse motivo, é credor de teu maior carinho. Há
serviços que não podemos pagar senão com amor. Nossa dívida para com
os pais é dessa natureza…
17 Recordando talvez que a
família se achava num curso de formação cristã, a dona da casa acrescentou:
— Um dia, quando Moisés, o grande profeta, foi ao monte receber a revelação
divina, uma das mais importantes determinações por ele ouvidas do Céu
foi aquela em que a Eterna Bondade nos recomenda: — “Honrarás teu pai
e tua mãe”. ( † )
A Lei enviada ao mundo não estabelece que devamos analisar a espécie
de nossos pais, mas sim que nos cabe a obrigação de honrá-los com o
nosso amoroso respeito, sejam eles quais forem.
18 A reduzida assembleia recolhia
as explicações, de olhos felizes e iluminados.
Haroldo mostrou-se conformado, todavia, ainda ponderou:
— Compreendo, mãezinha, o que a senhora quer dizer. Entretanto, se papai estivesse junto de nós, talvez que Marcos não tivesse morrido. Teríamos o dinheiro suficiente para tratá-lo.
19 Dona Antonina enxugou, apressada,
as lágrimas que lhe caíram, espontâneas, ante a evocação do filhinho,
e continuou:
— Seria um erro permitir a queda de nossa confiança no Pai Celestial. Marcos partiu ao encontro de Jesus, porque Jesus o chamava. Nada lhe faltou. Rogo a vocês não darmos curso a qualquer ideia triste, em torno da memória do anjo que nos precedeu. Nossos pensamentos acompanham no Além aqueles que amamos.
20 Nesse ponto da conversação,
Lisbela inquiriu, graciosa:
— Mãezinha, Marcos nos vê?
— Sim, minha filha, — esclareceu dona Antonina, emocionada, — ele nos ajuda
em espírito, pedindo a Jesus forças e bênçãos para nós. Por nossa vez,
devemos auxiliá-lo com as nossas preces e com as nossas melhores recordações.
21 Dona Antonina, porém, pareceu
asfixiada por enormes saudades. Enquanto os meninos comentavam com interesse
os ensinamentos da noite, demorava-se absorta, mentalizando a imagem
do pequenino…
Quando o relógio assinalou o fim do culto, solicitou a Henrique fizesse a oração de encerramento.
O petiz repetiu a prece dominical, rogando ao Senhor abençoasse a mãezinha, e o trabalho terminou.
22 A dona da casa repartiu
com os pequenos alguns cálices da água cristalina que Hilário e eu magnetizáramos
e, logo após, pensativa e saudosa, retirou-se com os filhinhos para
a câmara em que se recolheriam todos juntos.
André Luiz