1.
Penetramos o mais espaçoso aposento da casa, onde uma senhora de aspecto
juvenil repousava abatida e insone.
2 Moça de vinte e cinco anos,
aproximadamente, mostrava no semblante torturado harmoniosa beleza.
O rosto delicado parecia haver saído de uma tela preciosa, todavia,
com a suavidade das linhas fisionômicas contrastavam a inquietação e
o pavor dos olhos escuros e o abandono dos cabelos em desalinho.
3 Ao lado dela, descansava
outra mulher, sem o veículo físico.
Recostada num travesseiro de grandes dimensões, dava a ideia de proteger a
moça indiscutivelmente enferma, contudo, a vaguidão do olhar e o halo
obscuro de que se cercava, não nos deixavam dúvida quanto à sua posição
de desequilíbrio interior. 4
Conservava a destra sobre a medula alongada da senhora vencida e doente,
como se quisesse controlar-lhe as impressões nervosas, e fios cinzentos
que lhe fluíam da cabeça, à maneira de tentáculos dum polvo, envolviam-lhe
o centro
coronário, obliterando-lhe os núcleos de força.
5 Indiferentes ambas à nossa
presença, foi possível observá-las atentamente, identificando-se-lhes
a posição de verdugo e de vítima.
6 Arrancando-nos da indagação
silenciosa em que nos demorávamos, Clarêncio explicou:
— A jovem senhora é Zulmira, a segunda orientadora deste lar, e a irmã desencarnada
que presentemente lhe vampiriza o corpo é Odila, a primeira esposa de
Amaro e mãezinha de Evelina, dolorosamente transfigurada pelo ciúme
a que se recolheu. 7
Empenhada em combater aquela que considera inimiga, imanta-se a ela,
através do veículo perispirítico, na região cerebral, dominando a complicada
rede de estímulos nervosos e influenciando os centros metabólicos, com
o que lhe altera profundamente a paisagem orgânica.
8 — Mas, porque não
há reação por parte da perseguida? — Inquiri, perplexo.
— Porque Zulmira, a nossa amiga encarnada, caiu no mesmo padrão vibratório,
— aclarou o instrutor. — Ela também se devotou ao marido com egoísmo
aviltante. 9 Amaro
sempre foi pai afetuosíssimo. O matrimônio anterior deixou-lhe um casal
de filhinhos, mas o pequeno Júlio, formosa criança de oito anos, perdeu
a existência no mar. 10
A segunda mulher nunca suportou, sem mágoa, o carinho do genitor para
com os órfãos de mãe. Revoltava-se, choramingava e doía-se constantemente,
diante das menores manifestações de ternura paternal, entrelaçando-se,
por isso mesmo, com as desvairadas energias da irresignada companheira
de Amaro, arrebatada pela morte. 11
Em suas preocupações doentias, Zulmira chegou a desejar a morte de uma
das crianças. Pretendia possuir o coração do homem amado, com absoluto
exclusivismo. E porque as atenções de Amaro se concentravam particularmente
sobre o menino, muitas vezes emitiu silenciosamente o anseio de vê-lo
afogar-se na praia em que se banhavam. Certa manhã, custodiando os enteados,
separou Evelina do irmão, permitindo ao petiz mais ampla incursão nas
águas. O objetivo foi atingido. Uma onda rápida surpreendeu o miúdo
banhista, arrojando-o ao fundo. Incapaz de reequilibrar-se, Júlio voltou
cadaverizado à superfície. 12
O sofrimento familiar foi enorme. O ferroviário sentiu-se psiquicamente
distanciado da segunda esposa, classificando-a como relaxada e cruel
com os filhinhos. Zulmira, a seu turno, acabrunhada com o acontecimento
e guardando consigo a responsabilidade indireta pelo desastre havido,
caiu obsidiada ante a influência perniciosa da rival que a subjugava
do Plano invisível.
13 Clarêncio fez ligeiro intervalo
e continuou:
— O sentimento de culpa é sempre um colapso da consciência e, através dele, sombrias forças se encontram… Zulmira, pelo remorso destrutivo, tombou no mesmo nível emocional de Odila e ambas se digladiam, num conflito de morte, inacessível aos olhos humanos comuns. É um caso em que a medicina terrestre não consegue interferência.
14 Calara-se o Ministro.
Qual se nos registasse a presença por intuição, Odila movimentou-se e, agarrando-se à pobre senhora com mais força, gritou:
— Ninguém a libertará! Sou infeliz mãe espoliada… Farei justiça por minhas
próprias mãos!…
15 E contemplando
a enferma com expressão terrível, acrescentava:
— Assassina! Assassina!… Mataste meu filhinho! Morrerás também!…
16 A doente abriu
desmesuradamente os olhos.
Extrema palidez cobriu-lhe a face.
Não ouvia as palavras da adversária que lhe era invisível, mas, envolta na onda magnética que a enlaçava, sentia-se morrer.
17 Clarêncio afagou-lhe
a fronte e disse, calmo:
— Pobre moça!
2. Hilário e eu, instintivamente, abeiramo-nos de Odila para afastá-la com a presteza possível, mas o instrutor generoso deteve-nos com um gesto, advertindo:
2 — A violência não
ajuda. As duas se encontram ligadas uma à outra. Separá-las à força
seria a dilaceração de consequências imprevisíveis. 3
A exasperação da mulher desencarnada pesaria demasiado sobre os centros
cerebrais de Zulmira e a lipotimia poderia acarretar a paralisia ou
mesmo a morte do corpo.
4 — Mas, então, —
clamou Hilário, contrafeito, — como extinguir essa união indébita? Não
será justo afastar o algoz da vítima?
5 Clarêncio sorriu e ponderou:
— Aqui, o quadro é diverso. Na Esfera carnal, a cápsula física é precioso isolante das energias desequilibradas de nossa mente, entretanto, em nosso Plano de ação, no problema que observamos, essas forças desbordam ameaçadoras sobre a infortunada mulher, cujo corpo pode ser comparado a uma lâmpada de fraca receptividade, sobre a qual seria perigoso arremessar uma corrente superior à capacidade de resistência a que se enquadra. A inutilização seria completa.
6 — Que poderíamos
fazer? — Indagou Hilário, desapontado.
— Precisamos atuar na elaboração dos pensamentos da infortunada irmã que tomou a iniciativa da perseguição. É imprescindível dar outro rumo à vontade dela, deslocando-lhe o centro mental e conferindo-lhe outros interesses e diferentes aspirações.
7 — E não podemos começar,
exortando-a?
O Ministro, sereno, obtemperou sem alterar-se:
— Talvez, assim de momento, não pudéssemos ou não soubéssemos. A preparação é indispensável.
8 — Nada custa uma
conversação de censura… — Alegou meu companheiro, admirado.
— Sim, uma doutrinação pura e simples seria cabível, contudo, não podemos esquecer que a organização cerebral da vítima permanece excessivamente martelada. Nossa intervenção no campo espiritual de Odila deve ser envolvente e segura para evitar choques e contrachoques, que repercutiriam desastrosamente sobre a outra. Nem doçura prejudicial, nem energia contundente…
9 O instrutor dirigiu piedoso
olhar às duas mulheres e prosseguiu:
— A questão nesta casa surge realmente melindrosa. É necessário buscar alguém que já tenha amealhado na alma bastante amor e bastante entendimento para conversar com o poder criador da renovação.
10 Refletiu alguns instantes
e aduziu:
— Contamos em nossas relações com a irmã Clara. Rogaremos o concurso dela. Modificará Odila com o seu verbo coroado de luz, inclinando-a ao serviço da conversão própria. Por agora, de nossa parte, somente nos é possível a dispensação de algum alívio e nada mais.
11 Recomendou a Eulália assistisse
Evelina para o refazimento psíquico de que a menina necessitava e, em
seguida, aplicou recursos magnéticos sobre Zulmira, em passes calmantes,
de longo curso.
12 Qual se fosse brandamente
anestesiada, a enferma passou da irritação à serenidade e pareceu dormir
aos olhos do esposo que chegara, de mansinho, acomodando-lhe os travesseiros.
André Luiz