1.
Zulmira ausentara-se do corpo, mas não desfrutava a paz que se lhe estampara
na máscara física.
2 Enlaçada por Odila, a cujo
olhar dominador se inclinava, submissa, não nos identificou a presença.
3 Com evidentes sinais de
terror, ouvia as objurgatórias da rival que a acusava, exclamando:
— Que fizeste de meu filhinho? Assassina! Assassina! Pagarás muito caro a intromissão no lar que é somente meu!… Destroçarei tua vida, não me furtarás o afeto de Amaro… Armarei o coração de Evelina contra ti!…
4 — Não, não!… — Respondia
a vítima. Não matei! Não fui eu quem matou!…
— Hipócrita! Acompanhei os teus pensamentos, teus desejos, teus votos…
Zulmira desembaraçou-se, de inopino, dos braços que a envolviam e correu
para fora, seguida pela outra.
5 Esclarecendo-nos, bondoso,
Clarêncio observou:
— Quando a pobrezinha consegue sossegar o corpo, cai no pesadelo agitado. Acompanhemo-las. Dirigem-se à praia, onde ocorreu a morte do pequenino. Premida pelo assédio de nossa irmã desequilibrada, Zulmira ainda não se libertou das aflitivas reminiscências de que se vê possuída.
Pusemo-nos na direção do mar, antecipando-as no trajeto.
2. E, enquanto nos afastávamos, a conversação fez-se ativa.
— Não posso compreender porque a infeliz se declarou inocente… — Comentou Hilário,
pensativo.
— Porque tamanha provação se não é ela a autora do crime? — Inquiri por minha
vez.
2 O Ministro, porém, informou,
preciso:
— Segundo as anotações que já recolhemos da irmã Eulália, Zulmira não é propriamente a autora, mas, com loucas ciumadas do marido, desejou ardentemente a morte da criança, chegando mesmo a favorecê-la. Para não repetirmos esclarecimentos aos quais já nos reportamos, faremos ligeiro retrospecto, tão minudenciado quanto possível, examinando o problema aflitivo do casal.
3 Depois de breve pausa, prosseguiu:
— Amaro experimentava imensa devoção afetiva pelo filhinho. Quando
Júlio adoecia, desvelava-se à cabeceira do petiz com ilimitada ternura.
Sabendo-o sem o carinho materno e reconhecendo que a madrasta não primava
pelo amor, junto dos enteados, passava a dormir ao lado do caçula, rodeando-o
de mimos. Quando tornava a casa, cada dia, confiava-se a longas conversações
com o filho, lendo-lhe histórias ou escutando-lhe, atencioso, as narrativas
infantis. Assemelhavam-se a dois velhos amigos, a se bastarem um ao
outro. 4 Zulmira, em
razão disso, ralada de despeito, passou a ver no menino um adversário
de sua felicidade doméstica. A dedicação de Evelina para com o genitor
não lhe doía tanto. A filha mais velha era mais doce e mais reservada.
Comedida em suas manifestações, sabia dividir gentilezas, sem olvidar
a segunda mãe em seu culto de amizade. A madrasta nada sentia contra
ela, mas o pequeno excitava-a. Júlio, no extremado apego ao genitor,
costumava exagerar-se em traquinadas e caprichos que Amaro desculpava
sempre, com benevolente sorriso. 5
Zulmira, pouco a pouco, permitiu que o ódio lhe ocupasse o coração e
deixou que o ciúme a enceguecesse a ponto de suspirar pelo desaparecimento
do alegre rapazinho. Despreocupava-se intencionalmente pela assistência
que lhe devia e abandonava-o às extravagâncias, características de sua
idade, alimentando o secreto anseio de presenciar-lhe o fim. Chegava
mesmo a estimular-lhe indébitas incursões na via pública, admitindo
que algum veículo podia fazer o que não tinha coragem de realizar com
as próprias mãos… 6
Foi nessa disposição de espírito que acompanhou a família ao banho matinal,
em clara manhã domingueira. Entregues ao contentamento da excursão,
Amaro e a filhinha distanciaram-se, de algum modo, numa lancha pequena,
enquanto Zulmira assumia a guarda do garoto. Foi então que o cérebro
da moça deixou nascer escuras divagações. Não seria aquele o momento
azado para consumar o velho propósito? E se relegasse o menino a si
mesmo? Decerto, Júlio, em sua curiosidade infantil, não resistiria à
atração para o seio das águas… Ninguém poderia culpá-la. 7
Passou do projeto à ação e de pronto se afastou. Em se vendo a sós,
o caçula de Amaro interessou-se mais vivamente pelas conchas multicores
a se multiplicarem na areia, perseguindo-as, encantado, pelo mar a dentro,
até que uma onda veloz lhe chicoteou o corpo tenro, obrigando-o a mergulhar.
A criança gritou, pedindo-lhe amparo… Realmente, poderia ter retrocedido
alguns passos, salvando-a, mas vencida pelos sinistros pensamentos que
lhe dominavam a cabeça, esperou que o mar concluísse o horrível trabalho
que não tivera coragem de executar. Quando notou que o enteado havia
desaparecido, começou a clamar por socorro, de alma repentinamente dobrada
pelo remorso, mas era tarde… 8
Amaro acorreu, precípite, e, com o auxílio de companheiros, retirou
para fora o corpinho inerte. Torturado, chorou amargosamente a perda
do filhinho, recriminando a mulher. 9
Foi então que Zulmira, dominada pelo arrependimento e atormentada pela
noção de culpa, desceu, em espírito, ao padrão vibratório de Odila que
a seguia, em silêncio, revoltada. 10
Enquanto se mantinha com a paz de consciência, defendia-se naturalmente
contra a perseguição invisível, como se morasse num castelo fortificado,
mas, condenando a si mesma, resvalou em deplorável perturbação, à maneira
de alguém que desertasse de uma casa iluminada, embrenhando-se numa
floresta de sombra.
11 O Ministro fez leve
pausa de repouso e prosseguiu:
— A pobre senhora, desde esse dia, perdeu a ventura doméstica e a tranquilidade própria. Ela e o marido respiram agora sob o mesmo teto, qual se fossem estranhos entre si.
12 — Mas, à frente
da Lei, Zulmira é culpada? — Perguntei com interesse.
O sábio mentor sorriu, significativamente, e considerou:
— Não, no sentido real da Lei, Zulmira não é culpada.
13 Entretanto, deitando-nos
um olhar mais expressivo que de costume, continuou:
— Todavia, quem de nós não é responsável pelas ideias que arroja de
si mesmo? Nossas intenções são atenuantes ou agravantes das faltas que
cometemos. Nossos desejos são forças mentais coagulantes, materializando-nos
as ações que, no fundo, constituem o verdadeiro campo em que a nossa
vida se movimenta. 14
Os frutos falam pelas árvores que os produzem. Nossas obras, na esfera
viva de nossa consciência, são a expressão gritante de nós mesmos. 15
A forma de nosso pensamento dá feição ao nosso destino.
Hilário e eu ouvíamos, enlevados, sem pestanejar.
16 Clarêncio, no entanto,
guardando a intuição clara do serviço imediato a fazer, para não delongar-se
em digressões filosóficas, retomou o fio central do assunto, esclarecendo:
— Júlio trazia consigo a morte prematura no quadro de provações. Era um suicida
reencarnado… 17 A segunda
esposa de Amaro, porém, sofre o resultado das infelizes deliberações
que albergou no espírito. Padece o retorno das vibrações envenenadas
que arremessou na direção do menino. Pelo ciúme, criou ao redor de si
mesma um ambiente pestilencial, em que os seus próprios pensamentos
malignos conseguiram prosperar, assim como um fruto apodrecido desenvolve
em si mesmo os vermes que o devoram, convertendo-se igualmente em pasto de outros vermes que o alcançam. 18 Supondo-se responsável pela
morte da criança, de vez que asilou o delituoso plano a que nos referimos,
Zulmira abandonou-se ao mal que trazia consigo, imantando-se, ainda,
ao mal de que a adversária é portadora, e tornou-se, por isso, enferma
e dementada.
3.
— E o pequeno, em toda a história? — Inquiri, admirado.
2 — Júlio foi conduzido à
região que lhe é própria.
3 — Mas, Odila não poderia
vê-lo, certificando-se de toda a verdade?
— Infelizmente, — explicou o venerando instrutor, — a infortunada criatura
tem o centro genésico plenamente descontrolado e isso lhe impede a visão
mais ampla. Não consegue querer senão o marido, em vista do apego enlouquecedor
aos vínculos do sexo, que a paixão nada faz senão desvirtuar. 4
Odila possui admiráveis qualidades morais que jazem, por enquanto, eclipsadas…
Desencarnou em largo vigor de seu idealismo feminino, sem uma fé religiosa
capaz de reeducar-lhe os impulsos, justificando-se, desse modo, a superexcitação
em que se encontra. 5
Semelhante estado, contudo, é transitório e esperamos se submeta, de
boa vontade, ao tratamento de reajuste que lhe será dispensado, em breve.
Melhorada a situação dela, creio que o problema terá imediata e construtiva
solução.
6 Ia perguntar algo de novo,
mas atingíramos a praia e Clarêncio determinou nos puséssemos a observar.
André Luiz