1 No domingo imediato, à mesma hora, Dona Zilda preparou a mesa para o culto evangélico; entretanto, havia um problema a considerar.
2 Chovia muito e Dona Romualda com a filhinha Milota, menina-moça, achavam-se em casa, de visita, e, em razão do temporal, adiavam o “até logo”.
3 Ouvido no assunto, Veloso ponderou que o horário não devia ser modificado. E alegou, sensato:
— É sempre distinto estender aos amigos um lanche ou um café… Por que não lhes proporcionar a bênção da oração?
4 Dona Zilda sorriu e, no instante preciso, Dona Romualda e Milota, consultadas, aceitaram alegremente o ensejo que se lhes oferecia.
Prece inicial
2 Ante o grupo, agora acrescido de mais duas pessoas, Veloso orou, sensibilizado:
2 — Senhor Jesus, que, um dia, disseste “eu sou a luz do mundo”,( † ) ilumina-nos a visão para que venhamos a conhecer o caminho em que te possamos atender a vontade.
3 Permite, ó Mestre, que os teus mensageiros nos assistam e inspirem, e sustenta-nos o espírito para que sejamos dignos de tua confiança. Assim seja.
Leitura
3 Formulada a oração, o orientador do culto entregou a Dona Romualda o exemplar do Novo Testamento, pedindo-lhe que o abrisse. A interpelada, curiosa, atendeu.
2 Prosseguindo, Veloso procurou o trecho mais apropriado, lendo a sentença última do versículo 13, do capítulo 20, do Apocalipse: “…e foram julgados, cada um segundo as suas obras.” ( † )
3 Desdobrando-se a consulta, foi Cláudio quem descerrou as páginas de O Evangelho segundo o Espiritismo, passando-o aos olhos paternos, que leram, no capítulo XVIII, inserta entre as “Instruções dos Espíritos”, a mensagem de Simeão, intitulada: “Pelas suas obras é que se reconhece o cristão.”
Comentário
4 Aquietaram-se os presentes, e Veloso comentou:
2 — É importante observar como se ajustam hoje os textos lidos. “O Evangelho segundo o Espiritismo”, em perfeita consonância com o Novo Testamento, pede-nos atenção para as obras.
3 É que, por toda parte, vemos que Deus e o Homem se mostram associados em todas as realizações.
4 Ninguém constrói sobre o nada.
Algo que se faz reclama algo para que se faça.
5 Um engenheiro erguerá uma casa, mas, não prescinde do solo como base nem dispensa os materiais comuns para que a edificação se levante.
6 Um técnico fabricará certa máquina, mas, para isso, precisará dos recursos da Terra.
7 Um pomicultor recolherá farta messe de frutos; contudo, necessitou valer-se do campo.
8 Assim também, na esfera do pensamento.
Um professor de música ensinará essa arte sublime aos alunos, mas, não conseguirá fazê-lo a distância dos conhecimentos acumulados pelos professores que o antecederam.
9 Como é fácil reconhecer, a matéria-prima para a moldagem dessa ou daquela obra, nesse ou naquele campo de trabalho, é formação de Deus, através das forças que o representam.
10 É o mesmo que se Deus nos enviasse a gleba e o metal, a árvore e o fio, a ideia e a experiência, para com eles fazermos a lavoura e a casa, a utilidade e a veste, a arte e a indústria que expressam, dessa forma, empreendimentos em que o Criador e a criatura tomam parte.
11 Deus é, assim, o sócio paternal de todas as iniciativas de seus filhos, os homens e as mulheres do mundo.
12 Em razão disso, a vida é responsabilidade a que não podemos fugir, porque, sendo a Natureza propriedade efetiva de Deus, ainda mesmo quando estejamos efetuando o mal, usamos o que pertence a Deus, para consumá-lo.
13 Exemplifiquemos.
Um administrador emprestará a determinado servo larga faixa de solo para que plante a boa semente e ajude a comunidade.
14 O servo, manobrando o livre-arbítrio, prevalecer-se-á intensamente da oportunidade, cultivando-a com todas as suas forças. Poderá proceder de maneira deficitária, aproveitando-a imperfeitamente, e, às vezes, abusará da concessão, seja entregando-a aos vermes destruidores, ou desviando-lhe as finalidades ao transformá-la em hospedaria de malfeitores.
15 Para o bem ou para o mal, o servo estará inevitavelmente ligado à obra que realizou, recebendo a paga de conformidade com o que fez.
16 Se tratou o empréstimo com dignidade, receberá mais terrenos e mais recursos; contudo, se trabalhou pelo mínimo, pequenina ser-lhe-á a remuneração de si para consigo; e, se dilapidou a dádiva, empregando-a com desonestidade, carregará consigo o arrependimento e a dor moral, até que se lhe expunja a sombra da culpa.
17 Veloso estampou significativa expressão e acentuou:
— Em todas as nossas ações, gastamos o que é de Deus, para fazer o que é nosso. É desse modo que a criatura imprime a marca de si mesma onde se encontre, quer queira quer não, e receberá sempre, conforme o ensinamento de Jesus, segundo as próprias obras. ( † )
Conversação
5 O diretor da equipe doméstica deu por finda a explanação, e o entendimento natural começou entre os circunstantes.
Cláudio falou em primeiro lugar, reclamando contra a chuva abundante que caía lá fora.
2 VELOSO — Meu filho, evitemos criticar a Natureza. Ainda agora, falávamos das concessões de Deus. Sol e chuva, calor e frio são processos da Providência Divina para doar-nos pão e saúde, equilíbrio e conforto.
O temporal que surja menos agradável ao nosso ânimo significa melhoria na fonte, flor no jardim, fruto no campo e alívio à tensão atmosférica.
Agradeçamos ao tempo, na expressão em que se manifeste, porque todo tempo é, no fundo, bênção de Deus.
3 LINA — Papai, o senhor se referia à nossa obrigação de sermos bons, usando os recursos de Deus… Compreendi que Deus é sempre bondoso e que, se aparece algum mal, em nossa vida, é por nossa conta.
VELOSO — Isso mesmo, filhinha.
4 D. ZILDA — Imaginemos uma enxada e um lavrador. A enxada foi concedida ao lavrador para que ele a empregue no amanho do solo e, em companhia dela, atinja a colheita farta. Mas se o cultivador a utiliza por instrumento de agressão, na pessoa de um companheiro, isso ocorre sob a responsabilidade do seu sentimento infeliz e não do programa de serviço. A enxada, que é boa, nada tem que ver com a falta cometida…
5 VELOSO — Ideia muito bem lembrada. Em verdade, somos sempre nós, as criaturas humanas, quem cria o mal.
6 MILOTA (Mostrando-se desajustada) — Vocês não costumam frequentar o cinema aos domingos?
LINA — Papai e mãezinha julgam mais convenientes, para nós, as exibições que se fazem durante o dia…
MILOTA — Pensei que fossem contra…
7 D. ZILDA (Sorrindo) — Não, Milota, não somos contra o cinema. Isso seria agir contra o progresso. Veloso e eu, no entanto, cremo-nos na obrigação de selecionar os filmes que nos possam tomar tempo. O cinema é poderoso fator de influência e ninguém precisa buscar exemplos infelizes.
8 D. ROMUALDA — Perdoem a Milota pela intromissão. Minha filha não está percebendo a seriedade de nossa reunião e trouxe à baila um tema inoportuno. Aliás, quero acreditar que o exame do Evangelho, como está sendo feito, permite a exposição dos mais íntimos problemas que nos afligem…
VELOSO — Sem dúvida.
9 D. ROMUALDA (Desdobrando um fragmento de jornal que trazia na bolsa) — Desde a semana passada, tenho um caso que sobremaneira me preocupa. (E estendendo o noticiário) — Trata-se do Dr. Neves, meu vizinho, homem admirável por suas virtudes sociais e domésticas. Advogado correto e funcionário distinto, foi baleado na via pública… Não sei se deva falar neste assunto aqui…
VELOSO — Como não? Os quadros da vida, expostos na imprensa, podem e devem ser estudados respeitosamente à luz da Doutrina Espírita.
10 D. ROMUALDA — Conheci o Dr. Neves. Era homem de procedimento exemplar. Soube-se que havia contrariado propósitos desonestos de uma empresa, na repartição em que servia, adquirindo, então, imerecidamente, o ódio que o abateu, sem que, até hoje, se descubra o assassino… Um acontecimento assim, tão lamentável, espanta e fere a gente… Como interpretá-lo, do ponto de vista espírita?
11 VELOSO — Apenas a reencarnação poderá confortar-nos. Certamente, o Dr. Neves, em alguma de suas existências passadas, que, de momento, não podemos precisar, terá cometido um delito desses, na pessoa de alguém…
12 D. ROMUALDA — Mas, estamos assim expostos a semelhante rigor? Se um homem que exterminou a vida de outro, utilizando um revólver, deverá igualmente morrer na existência seguinte, por golpes de arma da mesma espécie, jamais encerraremos a carreira do crime.
13 D. ZILDA — Aliás, disse Jesus ao Apóstolo Pedro: “quem fere pela espada, pela espada morrerá”. n
14 VELOSO — Mas, o mesmo Divino Mestre ensinou que se deve perdoar setenta vezes sete, ( † ) que é nossa obrigação amar os inimigos e orar em favor daqueles que nos injuriam e nos perseguem. ( † ) E, se disse a Pedro a exortação a que nos reportamos, inspirou o mesmo apóstolo para que deixasse em sua carta a promessa divina de que “o amor cobrirá a multidão de nossos pecados”, n induzindo-nos, dessa maneira, à “caridade ardente uns para com os outros”. 15 Os Instrutores Espirituais ensinam-nos que o bem praticado atenua ou extingue o mal que causamos a outrem, ferindo a nós mesmos. Em muitas circunstâncias, somos desculpados por nossas vítimas; entretanto, o débito que contraímos permanece registrado na Lei da Eterna Justiça, reclamando resgate. Em que idade o Dr. Neves sofreu o assalto a que aludimos?
D. ROMUALDA — Aos cinquenta.
16 VELOSO — Suponhamos que ele, em uma de suas existências passadas, tenha sido o autor de um homicídio, nas mesmas condições, ao contar meio século de experiência física. Aceita essa hipótese, admitamos tenha pedido, antes de renascer no berço terreno, uma provação expiatória como a que acaba de deixar… Se vivesse incorretamente, é possível tivesse encontrado o golpe em alguma dissipação, atraindo a censura alheia em seu desfavor; todavia, cumprindo irrepreensivelmente os seus deveres, como aconteceu, foi vítima perfeita, sem ser o algoz de ninguém, adquirindo, assim, larga onda de simpatia e respeito em seu benefício. Contudo, presumamos que o Dr. Neves, além das próprias obrigações, procurasse, acima de tudo, a prática do bem ao próximo, sem qualquer espírito de recompensa… 17 Aos cinquenta de idade, por trazer na própria alma os sinais da falta cometida, provavelmente experimentaria moléstia grave, no órgão ligado ao assunto, e desencarnaria em consequência. E talvez, se o mencionado irmão fizesse dessa mesma conduta um apostolado de abnegação incessante, no amparo aos necessitados, ao atingir meio século no corpo físico, possivelmente viria a padecer a enfermidade consequente, obtendo, porém, mais tempo de abençoada internação nos serviços da Terra, à maneira do devedor que consegue expressiva moratória por merecimento adquirido…
18 D. ROMUALDA — Nobres conclusões! Entendemos, assim, com mais segurança, a função da dor…
D. ZILDA — Compreendemos, então, que tanto maior seja a soma de bem que façamos, mais amplo se nos faz o crédito, diante da Lei Divina.
VELOSO — Evidentemente.
19 MILOTA — Dona Zilda, que devemos classificar como sendo o bem?
D. ZILDA — Creio, filha, que o bem real para nós será sempre fazer o bem aos outros em primeiro lugar.
D. ROMUALDA — Bela definição!
20 LINA — Mãezinha, quando tentamos dominar os nossos pensamentos de preguiça ou de insubordinação, a fim de sermos melhores para os outros, é igualmente um bem, não é?
D. ZILDA — Bem muito grande, muito louvável.
21 MARTA (Sorrindo) — Devo comunicar ao Senhor Veloso e a Dona Zilda que, depois do nosso culto evangélico, na semana passada, Lina tem tido nova conduta para comigo. Muito afável e correta, não me oferece qualquer motivo a preocupações. Além disso, agora me auxilia quanto pode, na cozinha e na limpeza.
VELOSO — Louvado seja Deus!
Nota semanal
6 Sobrevindo a quietude, Veloso perguntou a Dona Zilda se não desejava relatar algum episódio de suas tarefas pessoais ou ler alguma narrativa referente às anotações da noite.
A esposa sorriu e respondeu:
— Apontamento escrito não tenho, mas lembro-me de uma história que aconteceu aqui mesmo, em nossa rua. É um acontecimento que demonstra o quanto pode a força do Evangelho de Jesus em nossa vida, para que saibamos edificar com Deus a nossa felicidade e a felicidade dos outros. Posso transmiti-lo, na forma de um conto, que intitularei:
O LEITEIRO CRISTÃO
7 Dona Moema, nossa vizinha, e eu notamos que o leiteiro Calimério, de um dia para outro, modificou para melhor o produto que nos vendia. Fizera-se o leite excelente.
2 E Dona Moema, com dois filhinhos de berço, foi a primeira a assinalar a transformação.
Informou-me que as crianças se mostravam tão melhoradas e tão robustas que me convidava a apelarmos, juntas, para ele, a fim de que a situação fosse mantida no mesmo nível.
3 Concordei e abordamo-lo na manhã seguinte.
— Calimério, — disse Dona Moema para começar, — que houve com o leite, agora tão apetitoso?
— Dona Moema, — replicou nosso entrevistado, — para que eu não mude de intenção e procedimento, notifico à senhora que, no mês passado, comecei a frequentar uma aula de Evangelho e compreendi que a ninguém mais deveria enganar.
4 E, colocando o olhar ansioso em nós duas, como quem rogava a nossa aprovação, ajuntou:
— Confesso às senhoras que, até no mês passado, sempre misturei água no leite, para aumentar o meu rendimento. Mas, desde que conheci as lições de Jesus, já não mais posso agir assim… Peço-lhes me perdoem!
5 Confiou-se Dona Zilda a breve intervalo e, depois, concluiu:
— Estudemos o exemplo de Calimério renovado. Com os ensinos do Evangelho, fez-se correto e, fazendo-se correto, é verdadeiro benfeitor de nosso equilíbrio orgânico, pela honradez com que nos fornece o alimento.
6 Quando cada um de nós estiver trabalhando com a probidade do leiteiro cristão, o mundo será o Reino Divino que teremos edificado com Deus.
Encerramento
8 A narrativa inspirou grande contentamento e formosas reflexões. Ao fim de elevados lembretes, Veloso orou para terminar:
2 — Senhor Jesus, agradecemos-te as bênçãos desta hora e rogamos-te força para fixar as tuas lições sublimes em nossa própria conduta. Ajuda-nos, Mestre, na execução de tua vontade. Assim seja.
3 Logo após, a dona da casa serviu a água em pequeninas taças, enquanto os presentes passavam a conversar alegremente sobre a excelência do Evangelho no lar.
Meimei
[1] Mateus, 26.52.
[2] 1 Pedro, 4.8.