1 Encorajada pelo esposo, Dona Zilda, naquele belo domingo de abril, colocou sobre a mesa a melhor toalha de que dispunha.
2 Alinhou dois livros carinhosamente tratados — um exemplar do Novo Testamento e outro de O Evangelho segundo o Espiritismo.
Em seguida, trouxe pequeno vaso com água pura.
3 Soaram seis horas da tarde.
O Senhor Veloso, chefe da família, entrou no aposento, acompanhado de Lina e Cláudio, filhinhos do casal, quase meninos, e de Marta, jovem servidora que parecia ter mais de vinte anos de idade.
4Dona Zilda perguntou pela filha mais velha, Sílvia, e por Dona Júlia, a irmã viúva que residia junto deles, na mesma casa.
5 Veloso, porém, notificou que ambas se haviam esquivado. Não desejavam partilhar o novo hábito doméstico.
6 Sem mais demora, como se todos já houvessem estabelecido o propósito de a ninguém reprovar, o pequeno grupo assentou-se tranquilo.
7 Pairava brando silêncio, quando Veloso ergueu a voz e orou, comovido.
Prece inicial
2 Senhor Jesus!
2 Quando Deus não é colocado por centro de nossa vida, perdemos o rumo, quais viajores que se distanciam da luz, caindo nas trevas… 3 E és entre nós, Senhor, a imagem mais fiel do Pai que nos criou.
4 Para nos reunires a Ele, deste-nos em teu Evangelho de amor o caminho da redenção. 5 Concede-nos, assim, a força de percorrê-lo! 6 Inspira-nos a compreensão de tua palavra, porquanto sabemos que o Reino de Deus, como felicidade eterna, há de começar em nós mesmos.
7 Guia-nos, Mestre, e ajuda-nos a entender-te a vontade! Assim seja.
Leitura
3 Finda a prece, solicitou Veloso que a filhinha abrisse o Novo Testamento ao acaso.
2 Efetuada a operação, Lina passou o livro ao exame paterno. O diretor da pequenina assembleia deteve-se, por momentos, contemplando a fisionomia da página, e leu, depois, o versículo 14, do capítulo 4, nos apontamentos do Apóstolo João Evangelista: ( † )
3 “Mas, aquele que beber da água que eu lhe der nunca terá sede, porque a água que eu lhe der se fará nele uma fonte de água que salte para a vida eterna.”
4 Logo após, atendendo à recomendação do esposo, Dona Zilda consultou “O Evangelho segundo o Espiritismo”, igualmente ao acaso, e leu nas “Instruções dos Espíritos”, do capítulo XVII, a mensagem de Lázaro, intitulada “O Dever”.
Comentário
4 Feito silêncio, Veloso analisou, sereno:
2 — Em nossa reunião temos o objetivo de estudar os ensinamentos do Cristo, de modo a percebermos com mais segurança o quadro de nossas obrigações.
3 Aceitamos a Doutrina Espírita, em nome de Jesus; entretanto, como dignificá-la, sem conhecimento das lições do Divino Mestre?
4 Na informação do evangelista, diz o Senhor: “Quem beber da água que eu lhe der nunca terá sede, porque essa água se fará nele qual fonte de água viva.” ( † )
5 Anotamos, em seguida, nos ensinamentos coligidos por Allan Kardec, a palavra de Lázaro quanto à excelência do dever como “lei da vida”.
6 Naturalmente, aludindo à água que nos oferta, reportava-se Jesus aos princípios redentores de que se fez mensageiro.
7 Quem lhes absorva a essência sublime decerto se renovará integralmente, abrindo novo caminho aos próprios pés.
8 E, ligando a promessa do Senhor à conceituação da mensagem lida, reconheceremos claramente que Jesus não apenas nos reconfortou a existência física, descerrando-nos luminosa esperança ao sentimento ou curando-nos os corpos doentes, mas, acima de tudo, nos traçou normas de ação, ante as quais nos compete aperfeiçoar o senso de disciplina.
9 A fim de compreendermos semelhante verdade, estampou as suas instruções em sua própria conduta.
10 Desceu das Esferas Superiores, sem preocupar-se com a dureza de nossos corações, e distribuiu amor e luz com todas as criaturas.
11 Começou, no entanto, pelos mais infortunados e mais tristes.
12 Andou entre os homens sem deles exigir considerações e privilégios.
13 Nasceu numa estrebaria e morreu numa cruz.
14 Amparou a quantos lhe partilharam a marcha, sem pedir agradecimento ou moeda.
15 Todavia, cada máxima que lhe saiu da boca representa um artigo da Lei Divina para a edificação do Reino de Deus entre nós.
16 O Reino de Deus inclui,
porém, todo o Universo. Assim, pois, onde palpite a consciência, seja
na Terra ou noutros mundos, os princípios de Jesus constituem a religião
viva.
17 Não é difícil, desse modo, apreender que o Celeste Amigo nos demarcou a estrada real para a verdadeira felicidade, assim como estendemos trilhos sólidos, de acordo com a experiência da engenharia, para que a locomotiva alcance a meta.
18 Que acontece, entretanto, ao comboio que abandona as linhas da via férrea? Descarrila, provocando desastres. Ameaça a vida dos passageiros, além de estragar a si próprio.
19 Interpretemos nossos desejos e ideais, tarefas e obrigações, como sendo passageiros que transportamos conosco, e façamos de nossa mente o maquinista.
20 Se o maquinista não obedece às regras instituídas para a viagem, que é a nossa própria existência, converte-se a vida em aventura perigosa, na qual arruinamos os interesses e aspirações de que sejamos depositários, e perturbamos, consequentemente, a nós mesmos.
21 As lições de Jesus, portanto, indicando-nos a bondade e o serviço, a paciência e a humildade, a caridade e o perdão, expressam a senda que nos cabe trilhar, se quisermos viver em harmonia com a Lei de Deus.
Conversação
5 Terminando o comentário, Veloso explicou que seria interessante uma palestra rápida, a fim de que as ideias do “culto evangélico” fossem colocadas em movimento.
2 Depois da troca de expressivo olhar com a mãezinha, foi Lina quem tomou a iniciativa, perguntando:
— Papai, por que motivo não temos um retrato de Jesus, diante de nós, em nossas preces?
E o entendimento estabeleceu-se, afável.
3 VELOSO — Filhinha, decerto não somos contra o trabalho artístico que mentaliza o Divino Mestre nas telas e esculturas que encontramos a cada passo, e um lar espírita pode guardar perfeitamente semelhantes recordações, sempre que não atentem contra a dignidade do Senhor e contra o respeito que devemos à obra cristã; contudo, nas atividades de nossa Doutrina, dispensamos apetrechos materiais, a fim de que não olvidemos a presença do Eterno Amigo dentro de nós mesmos.
4 CLÁUDIO — E a água, papai?… Por que a água na mesa?
VELOSO — Meu filho, a água é, reconhecidamente, um dos corpos mais sensíveis à magnetização. Nessa condição, armazena os recursos balsamizantes e curativos que nos são trazidos pelos Emissários Divinos ou por nossos Amigos Espirituais, em visita ao nosso recinto de orações.
5 LINA — Se tia Júlia mora conosco, não compreendo as razões por que se afasta de nossas preces.
D. ZILDA — Júlia tem ideias religiosas diferentes das nossas.
6 LINA — E Sílvia?
VELOSO — Sílvia é hoje uma jovem com vinte anos. Cresceu sem que lhe dedicássemos qualquer cuidado ao problema da fé. Quando pequenina, Zilda e eu, muito inexperientes em matéria de responsabilidade, confiamo-la à guarda moral de Júlia. Não podemos agora reclamar-lhe uma atitude para a qual, em verdade, não a preparamos. (E sorrindo) — Segundo é fácil de notar, estamos começando o nosso culto do Evangelho em casa com um atraso de vinte anos…
7 CLÁUDIO — Com que fim precisamos estudar o Evangelho?
D. ZILDA — Para melhorar o coração, meu filho; para aprendermos que todos somos filhos de Deus e que devemos viver no mundo como irmãos uns dos outros.
MARTA — Para cumprirmos nossos deveres com alegria.
8 CLÁUDIO — Quer dizer (e fez um rosto brejeiro) que Lina não deve rusgar tanto com a empregada.
VELOSO — Meu filho, retifique a expressão. Marta não é nossa empregada, como se fora nossa escrava, e você se referiu a ela em tom de desprezo. É um erro ferir, mesmo sem intenção, aqueles que trabalham conosco, tratando-os como se estivessem em posição inferior. Marta é valiosa cooperadora de nossa casa, quanto sua mãezinha é abnegada auxiliar no estabelecimento de ensino a que presta serviço e quanto seu pai é colaborador no escritório de que recebe o pão. Sem que as mãos dela nos preparem a mesa, ser-nos-á difícil o desempenho das nossas obrigações.
9 D. ZILDA — Nosso culto do Evangelho é, assim, um meio para nos sentirmos mais compreensivos. Nem Lina precisa agastar-se com Marta nem nós mesmos uns com os outros. A alegria nascerá em nosso lar, do trabalho em conjunto. A cada qual de nós cabe o máximo de esforço para que a bondade e a ordem, o serviço e a gentileza permaneçam aqui com todos, para que a felicidade, brilhando conosco, se irradie de nós para os que nos cercam.
Nota semanal
6 Findo o entendimento geral, Veloso disse:
— Concluamos nossos estudos, cada semana, com alguma nota que nos enriqueça a meditação.
Nesse sentido, lembro-me hoje de uma lenda que pertence ao pensamento mundial. Adaptando-a às nossas necessidades, nomeá-la-ei:
O DEVER ESQUECIDO
7 Certo rei muito poderoso, sendo obrigado a longa ausência, tomou de grande fortuna e entregou-a ao filho, confiando-lhe a incumbência de levantar grande casa, tão bela quanto possível.
2 Para isso, o tesouro que lhe deixava nas mãos era suficiente.
3 Acontece, porém, que o jovem, muito egoísta, arquitetou o plano de enganar o próprio pai, de modo a gozar todos os prazeres imediatos da vida.
4 E passou a comprar materiais inferiores. Onde lhe cabia empregar metais raros, utilizava latão; nos lugares em que devia colocar o mármore precioso, punha madeira barata, e nos setores de serviço, em que a obra reclamava pedra sólida, aplicava terra batida…
5 Com isso, obteve largas somas que consumiu, desorientado, junto de amigos loucos.
6 Quando o monarca voltou, surpreendeu o príncipe abatido e cansado, a apresentar-lhe uma cabana esburacada, ao invés de uma casa nobre.
7 O rei, no entanto, deu-lhe a chave do pequeno casebre e disse-lhe, bondoso:
— A casa que mandei edificar é para você mesmo, meu filho… Não me parece a residência sonhada por seu pai, mas devo estar satisfeito com a que você próprio escolheu…
8 Após ligeira pausa, Veloso advertiu:
— O conto impele-nos a judiciosas apreciações, quanto ao cumprimento exato de nossos deveres.
9 Comparemos o soberano a Deus, nosso Pai.
10 O príncipe da história poderia ter sido qualquer um de nós.
11 A fortuna para construirmos a moradia de nossa alma é a vida que Deus nos empresta.
12 Quase sempre, contudo, gastamos o tesouro da existência em caprichosa ilusão, para acabarmos relegados, por nossa própria culpa, aos pardieiros apodrecidos do sofrimento.
13 Mas, aqueles que se consagram à bênção do dever, por mais áspero que seja, adquirem a tranquilidade e a alegria que o Supremo Senhor lhes reserva, por executarem, fiéis, a sua divina vontade, que planeja sempre o melhor a nosso favor.
Encerramento
8 Atendendo à solicitação de Veloso, Dona Zilda orou, no encerramento:
2 — Senhor, agradecemos a riqueza que nos concedeste, a exprimir-se no lar que nos reúne.
3 Aqui nos situaste por amor, para que aprendamos a servir ao próximo, servindo a nós mesmos.
4 Inspira-nos resoluções elevadas, a fim de que a correção no desempenho de nossos deveres nos faça mais felizes e mais úteis.
5 Não permitas, Jesus amado, venhamos a esquecer as nossas obrigações, perante os teus ensinamentos, e abençoa-nos, hoje e sempre. Assim seja.
6 Dona Zilda distribuiu a água cristalina em pequenas porções com os familiares, enquanto a alegria lhes clareava o semblante. E Veloso, satisfeito, notou que Lina abraçava Marta, pela primeira vez, de modo diferente…
Meimei