O Caminho Escritura do Espiritismo Cristão
Doutrina espírita - 2ª parte.

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Chico Xavier inédito — Autores diversos — F. C. Xavier / E. C. Monteiro


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Romaria da graça

(Sumário)

A Revista Reformador, em seus cento e vinte anos de existência completados esse ano (2003), guarda tesouros incalculáveis, hibernando até que um pesquisador indiscreto os traga novamente à luz do dia para serem admirados e reverenciados por outras gerações.

É o caso desta primeira viagem realizada por Chico Xavier ao Rio de Janeiro relatada por Manoel Quintão na sua coluna “Casos e Coisas”, de 1º de julho de 1936, subtítulo “Francisco Xavier no Rio”, e que reproduzimos aqui em parte. Ao final, o artigo traz duas poesias e uma comunicação em prosa psicografadas por Chico, nunca publicadas em livro, mas que merecem ser conhecidas pela geração atual.


Primeiro contato


Em 1929, ninguém conhecia no Rio de Janeiro o nome de Francisco Cândido Xavier. Talvez algum curioso o houvesse lido em páginas do Clarim, da Aurora ou mesmo do Reformador, mas, o certo é que, sem cunho de maior relevância, que permitisse fixá-lo ou defini-lo, doutrinária ou literariamente falando.

Eis senão quando, nosso confrade M. Quintão, recebeu do médium um punhado de originais e uma carta sugestivamente carinhosa e singela, na qual lhe pedia o signatário que examinasse a produção e dissesse de sua possível identificação autoral.

O confrade Quintão, em que pese sua modéstia e afrontando mesmo a dúvida e a contradita de muitos irmãos, que vivem agora a exaltar as joias do Parnaso de Além-Túmulo, não vacilou em lhe aceitar o teor da originalidade e a probidade moral daquele que as veiculava, sem o conhecer pessoalmente ou sequer às sabendas.

Daí, de sua lealdade e franqueza, o pedido insistente daquele prefácio na obra maravilhosa, lá, com justiça, proclamada a mais extraordinária no gênero, até agora recebida.

Daí, também, a sua maior intimidade com o médium, mercê de frequente correspondência epistolar.

Lançado O Parnaso, foi ele criticado, discutido, ou rejeitado, ou aplaudido, tudo em linha de conta, como devia ser, e o prefaciador houve de ir à ribalta, várias vezes, para defender os autores, o médium, o seu ponto de vista. Desse modo fascinante, Humberto de Campos, que agora estarrece milhares de almas com suas crônicas do Outro Mundo, conseguiu que o companheiro viesse ele retificar, no proêmio do 2º, a crítica que ainda fizera na Terra, fizera à 1ª edição do livro. Só em março, contudo, pôde o nosso vice-presidente satisfazer o velho desejo de conhecer pessoalmente o médium.

De que foi essa viagem, que ele denomina Romaria da graça, tantas foram as recebidas e que também pudera, mais prosaicamente, chamar-se Lavagem d’alma, pretende escrever ainda um memorandum, tanto que lhe sobrem lazeres.

De antemão, diga-se, porém, que esse contato pessoal mais não lhe valeu que a plena confirmação de quanto prejulgava e dizia do médium e do homem para que mais se evidencie aquela sutil ligação a que, de princípio, reportamo-nos como trabalho dos nossos Guias, sob a égide de Jesus, ligação que, diga-se de passagem, logo se estendera a outros obreiros da casa de Ismael…


A visita


Desde que foi a Pedro Leopoldo, o nosso companheiro obteve de Xavier a promessa de retribuição da sua visita, retribuição também solicitada em nome dos seus companheiros da Federação. Era uma questão de oportunidades apenas, mas havia também um escolho a vencer.

É que Francisco Xavier, espírita por excelência, tem pavor ao elogio e ao sensacionalismo. Mais ainda, sabe que tem de resguardar suas faculdades e poupar as energias físicas para não as malbaratar em tumultos e atropelos espetaculares, tanto quanto em consultas e perquirições, por certo explicáveis por humaníssimas, mas, por isso mesmo, desponderadas e inúteis, as mais das vezes.

O escolho só foi remontado com a garantia de uma relativa discrição, que o resguardasse da curiosidade pública, sem, contudo privá-lo de conhecer uma boa parte, ao menos, da confraria carioca.

Enfim, no sábado, 6 de junho, à tarde, recebia Quintão um lacônico telegrama avisando-o da chegada do médium pelo noturno de domingo. Não havia tempo nem conveniência de prevenir os próprios companheiros, todos da Diretoria da Federação, ainda porque, em carta antecedente ao telegrama, o médium comunicava que vinha a serviço da Repartição em que mourejava e não podia perder tempo, dispondo apenas de três dias nesta capital.

Só aqui dilatou o prazo para seis dias. Logo após o almoço, dirigindo-se à Agência Telegráfica no Meyer, ele mesmo se descuidou e o funcionário, ao confrontar os nomes do destinatário e signatário, bem como a estação do destino, disse: Oh! Eu o conheço muito de nome e de… retrato.
O Chico alarmou-se…
Meu Deus! Como vai ser agora?

Tranquilizado, tivemos então a dita de o acompanhar na satisfação de um velho sonho, que o atraía ao Rio de Janeiro — ver o mar. Levamo-lo simplesmente a Niterói, para namorar as areias do Icaraí e as águas plácidas do “Saco de São Francisco”. Um entardecer da Guanabara!

De regresso, uma vista d’olhos à feérica Cinelândia e casa, porque o hóspede viera de noturno, sem leito, e estava positivamente tresnoitado.

Na segunda-feira, fomo-nos ao desempenho do encargo.

Em uma das repartições a que houve de comparecer, encontrou um engenheiro, seu conhecido lá de Pedro Leopoldo. Haveria de visitá-lo, depois, bem como a outras pessoas, previamente designadas. E o tempo? Houve de organizar-se um programa de emergência, mesmo porque também cumpria mostrar-lhe algo da “cidade maravilhosa” como ele dizia. E o incógnito?

Não havia tempo a perder: na terça-feira, fomos ao Pão de Açúcar. Cismativo, por vezes melancólico, ora espalhando o aveludado olhar pela massa azul do oceano largo, ora passeando-o pelo recorte das montanhas, explode a pergunta:
E o “Dedo de Deus? Onde está?”
Para nós, na consciência, para os outros, acolá…

Descemos. Ainda nessa noite, haveria de voltar a Niterói. Visita obrigatória, quase protocolar.

Na quarta-feira, visita a pessoa de suas relações. Indeclinável, também. Esse era o dia destinado à sua apresentação ao Grupo “Ismael”. Foi quando, sem o sabermos, em casa do hospedeiro discreto, lá nos subúrbios, estourou a bomba.

O repórter do Diário da Noite penetrava-lhe a casa com ares de Badoglio ( † ) em Adis-Abeba, ( † ) e Chico Xavier, colhido de surpresa, fugiu espavorido. Parlamentaram, sitiada a praça; não se renderiam sem impor condições. As condições eram: noticiar a partida do prisioneiro no dia imediato, não divulgar onde permanecia e quem o hospedava. Rapaz inteligente, cavalheiro, o simpático jornalista profano cumpriu a palavra empenhada, fez boa reportagem para o seu jornal, em que pesem omissões e cincas, como a de haver o médium declarado que Humberto de Campos lhe aparecera pela primeira vez, quando ele, médium, contava apenas sete anos de idade! Mas, que importa? O principal era o furo e o furo estava dado.

À noite, no Grupo Ismael, estudando com os seus componentes, perfeitamente identificado com os métodos, que são os de seu grupo familiar. de Pedro Leopoldo, obteve sucessivamente três belos sonetos de Cruz e Souza, Auta de Souza e Hermes Fontes, bem como excelente página de prosa doutrinária, firmada por uma das entidades mais familiares desta Instituição, lídimo servo de Jesus, que se chamou Francisco Leite de Bittencourt Sampaio, o mimoso poeta de Flores Silvestres e Divina Epopeia. Essa produção damo-la em seguida a estas linhas.

Na quinta-feira, em casa do nosso companheiro, onde já havia recebido espontaneamente, em duas frações e com o intervalo de uma noite, a mensagem intitulada “Casa de Ismael”, que o Diário e a Pátria transcreveram, fez ainda uma reunião íntima, na qual se identificou longa, minuciosa, veracíssima e, consoladoramente, uma filha do mesmo companheiro nosso. Essa comunicação, identificando por detalhes tão íntimos e tão peculiares a cada um dos membros da família, que o médium nem alguém pudera jamais conhecê-los, por aclará-los e justificá-los. Em tendo o ditado da saudosa comunicante, era como se ela ali estivesse, na sua linguagem viva, e todos choravam, inclusive o médium!


Em despedidas


Sexta-feira, Francisco Xavier passou o dia em companhia do confrade Manoel Cunha, a passeio e visitas a alguns confrades.
À noite, conforme combináramos, lá estava ele.


Na Federação


O salão regurgitante de um milhar de assistentes, posto não tivesse havido convites, o presidente exordiou, antes da prece inicial, apresentando o médium e falando, em tese, da necessidade que há de ampararem os porta-vozes do Céu, com o mesmo carinho com que o agricultor diligente trata das fruteiras que lhe alimentam o corpo. Os médiuns genuínos eram as fruteiras que alimentam as almas.

Que o médium Xavier, exausto de energias vitais, pensara em solicitar férias de repouso para o corpo, e Emmanuel, seu Guia, determinara-lhe que gozasse de férias mediúnicas.

Que a sua viagem ao Rio era consequente ao desempenho de um mandato burocrático; não vinha como espírita e muito menos como médium, mas como funcionário em atividades do seu cargo.

Daí as suas reservas e precauções tendentes a subtraí-lo às alavancas da curiosidade pública, dado o seu grande e justo renome. Que o soldado disciplinado preferia expor-se à censura imponderada dos mais inconsequentes a contrariar os desejos de Emmanuel e o seu próprio desejo. Que, finalmente, ele, Xavier, ali estava de motu-próprio para conhecer de visu a Casa de Ismael, de que muito lhe falam os do Plano espiritual, bem como aqueles que, do Plano material, fazem dela o seu abrigo de salvação.

Feita a prece inicial, o médium começou por escrever aquele soneto Templo da Paz — já publicado pelos diários citados e por nós reproduzido — e tomou a seguir a magistral mensagem de Emmanuel, com que por não lhe retardarmos a divulgação oportuna e necessária, exornamos a primeira página do último número desta revista, sob a epígrafe: “Pela revivescência do Cristianismo”.

Eram 21 horas. O presidente transmitiu ao auditório, comovido, o reconhecimento do médium e a sessão foi encerrada com uma prece de graças formulada pelo nosso irmão Luiz Barreto.

Havia em todos os semblantes um halo de alegria, alguns olhos também umedecidos de lágrimas.

Era a derradeira etapa vencida aqui, sob este teto, para que dela nos ticasse perene, doce, saudosa recordação.
Louvado seja Deus!


Até a volta


No dia imediato, na gare Pedro II, recebeu o querido servo de Jesus, em nome da Federação e da família espírita carioca, abraços fraternos e votos de feliz regresso ao modesto quão invejável Templo-lar, também cadinho de virtudes.


A comunicação de Bittencourt Sampaio n

Completando esta resenha de uma visita que foi bem um amplo e reconfortante entrelaçamento de almas do outro e deste Plano e, mais, por lhe dar fecho que corresponde em realidade ao significado profundo que teve o evento noticiado, inserimos aqui, a seguir, a comunicação que acima fizemos referência e que ainda não foi divulgada, a qual Xavier recebeu de Bittencourt Sampaio no Grupo Ismael, bem como os três sonetos na mesma ocasião recebidos.


1 Meus amigos,
Glória a Deus nas Alturas e paz na Terra aos homens de boa vontade.
 ( † ) Meu coração se afoga subitamente no pranto, lembrando-me de que todos nós poderíamos nos encontrar no divino banquete. 2 O mundo, porém, atraiu grande parte dos nossos antigos companheiros com as seduções de seus efêmeros prazeres. Entretanto, os baluartes do templo de Ismael permanecem inabaláveis, edificados na rocha das grandes e consoladoras verdades do Evangelho de Jesus.

3 Minha voz, amigos, é hoje mais familiar e mais íntima. Substituindo, no momento, aquele cuja tarefa vem sendo penosamente cumprida, está o nosso irmão Xavier, para vos transmitir a minha palavra de companheiro e de amigo. 4 Não me dirijo à Imprensa para vos falar ao coração, muitas vezes despedaçado, ao longo do caminho pelas perfídias atrozes de todos aqueles que concentram as suas energias no ataque ao instituto do Bem, à palavra do Evangelho e ao estatuto da Verdade.

5 Mas, filhos, se o Espaço que vos é vizinho está cheio de organizações poderosas do mal, objetivando a destruição da nossa obra comum, há uma Esfera divina, de onde partem os alvitres valiosos, a inspiração providencial, para quantos aqui mourejam com o propósito de bem servirem à causa da Luz e da Verdade.

6 Não necessito alongar-me em considerações sobre a grande e sublime tarefa do Brasil, como orientador, no seio dos povos, da revivescência do Cristianismo, restabelecendo-lhe as verdades fecundas,  7 nem preciso encarecer a magnitude da obra do Evangelho, problemas esses de elevado interesse espiritual para as vossas coletividades e cuja solução já procurei indicar, trazendo-vos espontaneamente a minha palavra humilde de miserável servo de Jesus.

8 Agora, amigos, cabe-me solicitar a vossa atenção para a continuidade do nosso programa, traçado há mais de cinquenta anos. 9 A Federação não pode prescindir da célula primordial de seu organismo, representada pelo Santuário de Ismael onde cada um afina a sua mente para a tarefa do sacrifício e da abnegação em prol da causa da Verdade, nem pode desviar-se do seu roteiro, delineado dentro do Evangelho, com o objetivo da formação da mentalidade essencialmente cristã.

10 Todas as questões científicas, no seio da Doutrina, repetimo-lo, têm caráter secundário, servindo apenas de acessórios na expansão das realidades espiritualistas.

11 Na atualidade, mais do que tudo, necessita-se da formação dos espíritas, da disciplina cristã, da compreensão dos deveres individuais, ante as excelências da doutrina, a fim de que se possam atacar os grandes cometimentos.

12 Firmai-vos na orientação que vindes observando, sem embargo das ideologias ocas que vos espreitam no caminho das experiências penosas. Somente dentro das características morais e religiosas pode o Espiritismo cooperar na evolução da Humanidade.

13 As criaturas humanas se envenenaram com o excesso de investigações e de empreendimentos científicos, para os quais não prepararam seus corações e seus espíritos. 14 Derivativo lógico dessa ânsia mal dirigida de conhecer a verdade é o estado atual de confusionismo, em que se debatem todos os setores das atividades terrenas, no campo social e político.  15 Não que condenemos a curiosidade, porquanto ela representa os pródromos de todos os conhecimentos; mas é, acima de tudo, que se faz necessário o método e a legitimidade da compreensão individual e coletiva.

16 Preparai-vos, portanto, preparando simultaneamente os vossos irmãos em humanidade dentro do ensinamento cristão e, amanhã, compreendereis, se não puderes entender ainda hoje, a sublimidade da nossa tarefa comum e a grandeza dos seus objetivos.

17 Que Maria derrame sobre os vossos espíritos a sua bênção e que o Divino Mestre agasalhe sob o manto acolhedor da misericórdia todas as esperanças e anseios dos vossos corações.

F. L. Bittencourt Sampaio


OS SONETOS

Templo de Ismael

[Templo da Paz]

1 Neste templo de amor profundo e puro,
Que as desgraças e as dores alivia,
Ouvem-se vozes da Sabedoria,
Clarificando estradas do futuro.


2 Porto luminosíssimo e refúgio,
Onde se encontra a doce eucaristia
Do Evangelho da Paz e da Alegria,
Luz entre as sombras do caminho escuro…


3 Nestas portas que acolhem desgraçados,
Infelizes, sedentos e esfomeados,
Ouve-se a voz do amor, profunda e imensa.


4 É Ismael consolando os sofredores,
Vendo seu templo esplêndido de flores,
Cheias da luz suavíssima da crença.

Cruz e Souza


Ao crente

1 A quem, senão a Ele, o Cristo amado,
Deves tu dedicar os teus momentos,
Se ele encheu os teus pobres pensamentos
De clarões que te fazem deslumbrado?


2 E na dor e nos próprios sofrimentos,
Lembra sempre o seu vulto imaculado,
Que te faz fervoroso e encorajado,
A ascender teu calvário de tormentos,


3 Só a piedade do Cristo terna e imensa,
Pode na estrada lúcida da crença
Amparar-te nas provas dolorosas!


41 E bendize essa dor, pois que os prazeres
São dissimulações dos padeceres
Sobre a Terra de sendas tenebrosas!

Auta de Souza


Desencanto

1 Também, Senhor, um dia, de alma ansiosa,
Num sonho todo amor, carícia e graça,
Quis encontrar a imagem cor-de-rosa
Da ventura que canta, sonha e passa.


2 E perquiri a estrada erma e escabrosa,
Perenemente sob a rude ameaça
Da amargura sem termos, angustiosa,
Entre os frios do Pranto e da Desgraça,


3 Até que um dia a dor, violentamente,
Fez nascer no meu cérebro demente
Os anelos de morte, cinza e nada.


4 E no inferno simbólico do Dante,
Vim reencontrar a lágrima triunfante,
Palpitando em minh’alma estraçalhada.

Hermes Fontes


Opinião de Hermes Fontes sobre o Espiritismo


Floro Bartolomeu Martins de Araújo Hermes Fontes (1888-1930) foi um gênio precoce e teve uma vida de muitos sofrimentos e amarguras, terminando por se suicidar. Advogado, jornalista e poeta, por cinco vezes tentou a Academia Brasileira de Letras (ABL) sem o conseguir. Traído no casamento, abandonado pelos amigos e sofrendo grandes derrotas políticas, foi por isso humilhado. Carregando o complexo pela sua pequena compleição física, seu talento e seus méritos literários são reconhecidos até hoje. No soneto psicografado por Chico Xavier, em 1936, o autor espiritual demonstra toda a mágoa que ainda abrasava em seu peito pelo triste destino que enfrentou em vida.

Em interessantíssima enquete realizada pelo jornal Diário da Noite, do Rio de Janeiro, vários intelectuais da época deram suas opiniões e responderam questões sobre o Espiritismo, inclusive Hermes Fontes. Vejamos o que pensava do Espiritismo o autor em 1923, ano em que Chico Xavier já havia despertado para a mediunidade, mas ainda não iniciara sua missão na área da psicografia e do mediunato em geral.

I — Que pensa do Espiritismo?

II — Tem o Espiritismo influenciado no meio intelectual brasileiro?

III — Que consequências para a ciência, a arte e a literatura se podem deduzir dessa influência?


Respostas de Hermes Fontes


Coisa difícil, dar cada um as dimensões de sua simpatia em questões de fé espírita, para as quais, em sentido geral, não há indiferença possível.

Porque, tanto quanto há males de que todo sangue herda um pouco, é certo haver em toda alma um quinhão de possibilidade espírita e esse bem secreto a que tantos aspiram, preexiste como reserva divina, em quase todos nós.

Eu, por exemplo, em cada período de 24 horas, tenho 12 horas de hesitação e 12 de crença. É escusado pedir os porquês. Não disponho de elementos (nem de tempo) para um manifesto, nem de convicções tão maduras que valesse uma profissão de fé.

Faço, de quando em quando, os meus exames de consciência. Leio o que posso e ouço o que todos ouvem — revelações, coincidências, milagres…

É desnecessário acrescentar que, por mim mesmo, ainda nada vi, ouvi nem senti de aproveitável. E, não obstante, ando mais perto de crer do que de descrer.

Tenho a impressão de ainda ser analfabeto em certas modalidades prognósticas do Espiritismo: religião moderna, ciência futura, realidade quase tangível.

Para mim, o Espiritismo deve ser a revelação da alma às almas no que lhes há de fundamental — a simplicidade, — verdadeiro estado de graças, peculiar aos velhos, às crianças, aos humildes e aos santos.

Espiritismo complicado, obrigado a experiências químicas e sessões de ótica transcendente, já não é verdadeiramente Espiritismo.

O que me leva a maior simpatia, quase à convicção, não é a bibliografia, nem a tradição oral: é a catequese tácita do espírita. Fazer o bem quand même [de qualquer maneira] e não desesperar de corrigir nossos erros e nossas penas, estabelecendo relações de justiça entre a vida presente, a anterior e a futura, de cujo aperfeiçoamento crescente resultará atingir a ética imemorial dos eleitos.

A vida com as suas injustiças, as suas falsas recompensas e os seus castigos, aparentemente iníquos — aí está o melhor livro da catequese espírita e a melhor câmara de atuação experimental.

A moral espírita é uma realidade. Não conseguem “desmoralizá-la”, nem mesmo alguns impostores que fingem praticá-la e discerni-la.

Sob esse elevado aspecto, o Espiritismo começa a influir seriamente em nossa literatura.

Agora, se a nossa literatura tem influído no Espiritismo, não é recíproca necessária. O Espiritismo precisa mais de bons exemplos do que de boas palavras…

Quando leio certos discursos e exegeses embaladoras, prefiro cair na dúvida, que é também uma rede, e, às vezes, das mais cômodas.

As inteligências, por mais ativas, têm a sua hora de preguiça. A dúvida é boa para fazer o espírito espreguiçar-se de certas leituras insinceras. E, assim, como outros diriam: in dúbio pro reo [na dúvida, pró réu], e penso, ao ler certos catequistas: in reo… pro dúbio… [no réu… pró dúvida…]


Hermes Fontes responde hoje à nossa enquete. Nome conhecidíssimo pelos livros brilhantes, bastaria ser enunciado, dispensando-se o noticiário que aqui costumamos fazer. Tendo estreado com “Apoteoses”, que foi um acontecimento literário, tem dado às Letras várias obras de poesia, cheias de força e pensamento: “Gênese”, “Ciclo de Perfeição”, “Microcosmo”, “Miragem do Deserto”, “A Lâmpada Pelada” e “Despertar”.


Eduardo Carvalho Monteiro



[1] A “Comunicação de Bittencourt Sampaio” e os sonetos “Templo de Ismael” — “Ao crente” — “Desencanto” foram publicados no Reformador em 1º de julho de 1936.


Texto extraído da 3ª edição desse livro.

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