1 Denunciando aflitiva expectação, o crente recém-desencarnado dirigia-se ao anjo orientador da aduana celeste, explicando:
— Guardei a maior intimidade com as obras de Allan Kardec que, invariavelmente, mantive por mestre inatacável. Os livros da Codificação vigiavam-me a cabeceira. Devorei-lhes todas as considerações, apontamentos e ditados e jamais duvidei da sobrevivência…
2 O funcionário espiritual esclareceu, porém, imperturbável:
— Entretanto, o seu nome aqui não consta entre os credores de ascensão às Esferas santificadas. Sou, portanto, constrangido a indicar-lhe o regresso à nossa antiga arena de purificação na Crosta da Terra.
— Oh! O corpo! O fardo intolerável!… — suspirou o candidato, evidentemente desiludido.
3 Cobrou, contudo, novo ânimo e continuou:
— Talvez não me tenha feito compreender. Fui espírita convicto. Desde muito cedo, abracei os princípios sacrossantos da Doutrina que é, hoje, a salvadora luz da Humanidade. Não somente Allan Kardec foi o meu instrutor na descoberta da Revelação. Acompanhei as experiências de Zöllner † e Aksakof, † nos setores da física transcendental, com estudos particularizados da fenomenologia mediúnica. Meditei intensivamente para fixar os conhecimentos de que disponho. Flammarion, no original francês, era meu companheiro predileto de noites e noites consecutivas. Em companhia dele, o meu pensamento pervagava nas constelações distantes, prelibando a glória que eu julgava alcançar, além do túmulo. Léon Denis era o mentor de minhas divagações filosóficas. Deleitava-me com os livros dele, absorvendo-lhes as elucidações vivas e sempre novas. E Delanne? Nele, sem dúvida, situei o manancial de minhas perquirições científicas. Estimava confrontar-lhe as observações com os estudos de Claude Bernard, † o fisiologista eminente, adquirindo, assim, base legítima para as análises minuciosas. Para não citar apenas os grandes vultos latinos, adianto-lhe que as experiências de Crookes foram carinhosamente acompanhadas por mim, através do noticiário. As comoventes páginas do “Raymond”, com que Oliver Lodge † surpreendeu o mundo, arrancaram-me lágrimas inesquecíveis. E, a fim de alicerçar pontos de vista, no sólido terreno do espírito, não me contentei com os ocidentais. Consagrei-me às lições dos orientalistas, demorando-me particularmente no exame dos ensinos de Ramakrishna, o moderno iluminado que plasmou discípulos da altura de um Vivekananda. † No Brasil, tive a honra de assistir a sessões presididas por Bezerra de Menezes, em minha mocidade investigadora, seguindo, atenciosamente, a formação e a prosperidade de muitos centros doutrinários…
4 Ante o silêncio do servidor celeste, o precioso estudante fez pequeno intervalo e observou:
— Com bagagem tão grande, acredito que a minha posição de espiritualista deva ser reconhecida.
— Sim, — registou o anjo solícito, — o seu cuidado na aquisição de conhecimento é manifesto. Traz consigo um cérebro vigoroso e bem suprido. Primorosa leitura e teorias excelentes.
— E não me supõe capacitado à travessia da barreira?
— Infelizmente, não. As suas vibrações se inclinam para baixo e você não se mostra preparado a viver em atmosfera mais sutil que a da carne terrestre.
5 Longe de penetrar o verdadeiro sentido das palavras ouvidas, o crente aduziu:
— E a Bíblia? A intimidade com o Livro Divino, porventura, não me conferirá direito à elevação? De Moisés ao Apocalipse, efetuei reflexões incessantes. Prestei ardoroso culto a David e Salomão, entre os mais velhos, e não se passou um dia de minha existência em que não meditasse na grandeza de JESUS e na sublimidade dos seus ensinamentos. Em meu velho gabinete existem páginas variadas, escritas por mim mesmo, em torno do Evangelho de João, que interpreto como sendo a zona divina do Novo Testamento…
6 Parando alguns instantes, o recém-desencarnado voltou a inquirir:
— Não julga que a minha fidelidade às letras sagradas seja passaporte justo à subida?
— Indubitavelmente, — respondeu o anjo, — a sua conceituação está repleta de imagens iluminativas. Ainda assim, não posso atentar contra a realidade que me compele a indicar-lhe o retorno para atender aos serviços que lhe cabe realizar.
7 — Céus! Clamou o interlocutor, desapontado, — que fazer então?
— Nesta passagem, — explicou-se o cooperador angélico, — temos verdadeiro concurso de títulos e esses títulos se expressam aqui pelas obras de cada um. Sem experiência vivida e sem serviço feito, o espírito não vibra nas condições precisas à viagem para o Mais Alto. O seu retrato mental deixa perceber uma individualidade pujante e valiosa, idêntica, no fundo, a um navio, vasto e bem acabado, cheio de riquezas, utilidades e adornos, que nunca se tenha ausentado do porto para a navegação. Em tais condições…
8 — Entretanto, eu não fiz mal a ninguém…
— Vê-se claramente que o seu espírito é nobre e bem intencionado.
— Então, — indagou o crente, semi-exasperado, — qual a minha posição de homem convicto? Que sou? Como estou, depois de haver estudado exaustivamente e crido com tanto fervor e tanta sinceridade?
9 O anjo, triste talvez pela necessidade de ser franco, elucidou, sem hesitar:
— A sua posição é invejável, comparada ao drama inquietante de muita gente. Demonstra uma consciência quitada com a Lei. Não tem compromissos com o mal e revela-se perfeitamente habilitado à excursão nos domínios do bem. Em se tratando, contudo, de ascensão para o Céu, observo-lhe o coração na estaca zero. Ninguém se eleva sem escada ou sem força. O meu amigo sabe muito. Agora, é preciso fazer…
10 E ante o sorriso reticencioso do funcionário celestial, o interlocutor nada mais aduziu, entrando, ali mesmo, em profundo silêncio.
Irmão X
(Humberto de Campos)