1 Jesus havia chegado a Jerusalém ( † ) sob uma chuva de flores.
De tarde, após a consagração popular, caminhavam Tiago e Judas, lado a lado, por uma estrada antiga, marginada de oliveiras, que conduzia às casinholas alegres de Betânia. ( † )
2 Judas Iscariote deixava transparecer no semblante íntima inquietação, enquanto no olhar sereno do filho de Zebedeu fulgurava a luz suave e branda que consola o coração das almas crentes.
— Tiago, — exclamou Judas, entre ansioso e atormentado, — não achas que o Mestre é demasiado simples e bom para quebrar o jugo tirânico que pesa sobre Israel, abolindo a escravidão que oprime o povo eleito de Deus?
— Mas, — replicou o interpelado, — poderias admitir no Mestre as disposições destruidoras de um guerreiro do mundo?
3 — Não tanto assim. Contudo, tenho a impressão de que o Messias não considera as oportunidades. Ainda hoje, tive a atenção reclamada por doutores da lei que me fizeram sentir a inutilidade das pregações evangélicas, sempre levadas a efeito entre as pessoas mais ignorantes e desclassificadas. Ora, as reivindicações do nosso povo exigem um condutor enérgico e altivo.
— Israel, — retrucou o filho de Zebedeu, de olhar sereno, — sempre teve orientadores revolucionários; o Messias, porém, vem efetuar a verdadeira revolução, edificando o seu Reino sobre os corações e nas almas!…
4 Judas sorriu, algo irônico, e acrescentou:
— Mas, poderemos esperar renovações, sem conseguirmos o interesse e a atenção dos homens poderosos?
— E quem haverá mais poderoso do que Deus, de quem o Mestre é o Enviado divino?
5 Em face dessa invocação, Judas mordeu os lábios, mas prosseguiu:
— Não concordo com os princípios de inação e creio que o Evangelho somente poderá vencer com o amparo dos prepostos de César ou das autoridades administrativas de Jerusalém que nos governam o destino. Acompanhando o Mestre nas suas pregações em Cesareia, em Sebaste, em Corazim e Betsaida, quando das suas ausências de Cafarnaum, jamais o vi interessado em conquistar a atenção dos homens mais altamente colocados na vida. É certo que de seus lábios divinos sempre brotaram a verdade e o amor, por toda parte; mas só observei leprosos e cegos, pobres e ignorantes, abeirando-se de nossa fonte.
6 — Jesus, porém, já nos esclareceu, — obtemperou Tiago com brandura, — que o seu Reino não é deste mundo. Imprimindo aos olhos inquietos um fulgor estranho, o discípulo impaciente revidou com energia:
— Vimos hoje o povo de Jerusalém atapetar o caminho do Senhor com as palmas da sua admiração e do seu carinho; precisamos, todavia, impor a figura do Messias às autoridades da Corte Provincial e do Templo, de modo a aproveitarmos esse surto de simpatia. Notei que Jesus recebia as homenagens populares sem partilhar do entusiasmo febril de quantos o cercavam, razão por que necessitamos multiplicar esforços, em lugar dele, a fim de que a nossa posição de superioridade seja reconhecida em tempo oportuno.
7 — Recordo-me, entretanto, de que o Mestre nos asseverou, certa vez, que o maior na comunidade será sempre aquele que se fizer o menor de todos.
— Não podemos levar em conta esses excessos de teoria. Interpelado que vou ser hoje por amigos influentes na política de Jerusalém, farei o possível por estabelecer acordos com os altos funcionários e homens de importância, a fim de imprimirmos novo movimento às ideias do Messias.
8 — Judas! Judas!… — observou-lhe o irmão de apostolado, com doce veemência, — vê lá o que fazes! Socorreres-te dos poderes transitórios do mundo, sem um motivo que justifique esse recurso, não será desrespeito à autoridade de Jesus? Não terá o Mestre visão bastante para sondar e reconhecer os corações? O hábito dos sacerdotes e a toga dos dignitários romanos são roupagens para a Terra… As ideias do Mestre são do Céu e seria sacrilégio misturarmos a sua pureza com as organizações viciadas do mundo!… Além de tudo, não podemos ser mais sábios, nem mais amorosos do que Jesus e ele sabe o melhor caminho e a melhor oportunidade para a conversão dos homens!… As conquistas do mundo são cheias de ciladas para o Espírito e, entre elas, é possível que nos transformemos em órgão de escândalo para a verdade que o Mestre representa.
Judas silenciou, atormentado.
No firmamento, os derradeiros raios de Sol batiam nas nuvens distantes, enquanto os dois discípulos tomavam rumos diferentes.
9 Sem embargo das carinhosas exortações de Tiago, Judas Iscariote passou a noite tomado de angustiosas inquietações.
Não seria melhor apressar o triunfo mundano do Cristianismo? Israel não esperava um Messias que enfeixasse nas mãos todos os poderes? Valendo-se da doutrina do Mestre, poderia tomar para si as rédeas do movimento renovador, enquanto Jesus, na sua bondade e simpleza, ficaria entre todos, como um símbolo vivo da ideia nova.
10 Recordando suas primeiras conversações com as autoridades do Sinédrio, meditava na execução de seus sombrios desígnios.
A madrugada o encontrou decidido, na embriaguez de seus sonhos ilusórios. Entregaria o Mestre aos homens do poder, em troca de sua nomeação oficial para dirigir a atividade dos companheiros. Teria autoridade e privilégios políticos. Satisfaria às suas ambições, aparentemente justas, a fim de organizar a vitória cristã no seio de seu povo. Depois de atingir o alto cargo com que contava, libertaria Jesus e lhe dirigiria os dons espirituais, de modo a utilizá-los para a conversão de seus amigos e protetores prestigiosos.
O Mestre, a seu ver, era demasiadamente humilde e generoso para vencer sozinho, por entre a maldade e a violência.
11 Ao desabrochar a alvorada, o discípulo imprevidente demandou o centro da cidade e, após horas, era recebido pelo Sinédrio, ( † ) onde lhe foram hipotecadas as mais relevantes promessas.
Apesar de satisfeito com a sua mesquinha gratificação e desvairado no seu espírito ambicioso, Judas amava o Messias e esperava ansiosamente o instante do triunfo para lhe dar a alegria da vitória cristã, através das manobras políticas do mundo.
12 O prêmio da vaidade, porém, esperava a sua desmedida ambição.
Humilhado e escarnecido, seu Mestre bem-amado foi conduzido à cruz da ignomínia, sob vilipêndios e flagelações.
Daqueles lábios, que haviam ensinado a verdade e o bem, a simplicidade e o amor, não chegou a escapar-se uma queixa. Martirizado na sua estrada de angústias, o Messias só teve o máximo de perdão para seus algozes.
13 Observando os acontecimentos, que lhe contrariavam as mais íntimas suposições, Judas Iscariote se dirigiu a Caifás, ( † ) reclamando o cumprimento de suas promessas. Os sacerdotes, porém, ouvindo-lhe as palavras tardias, sorriram com sarcasmo. Debalde recorreu às suas prestigiosas relações de amizade: teve de reconhecer a falibilidade das promessas humanas. Atormentado e aflito, buscou os companheiros de fé. Encontrou-os vencidos e humilhados; pareceu-lhe, porém, descobrir em cada olhar a mesma exprobração silenciosa e dolorida.
14 Já se havia escoado a hora sexta, em que o Mestre expirara na cruz, implorando perdão para seus verdugos.
De longe, Judas contemplou todas as cenas angustiosas e humilhantes do Calvário. Atroz remorso lhe pungia a consciência dilacerada. Lágrimas ardentes lhe rolavam dos olhos tristes e amortecidos. Malgrado à vaidade que o perdera, ele amava intensamente ao Messias.
15 Em breves instantes, o céu da cidade impiedosa se cobriu de nuvens escuras e borrascosas. O mau discípulo, com um oceano de dor na consciência, peregrinou em derredor do casario maldito, acalentando o propósito de desertar do mundo, numa suprema traição aos compromissos mais sagrados de sua vida.
Antes, porém, de executar seus planos tenebrosos, junto à figueira sinistra, ouvia a voz amargurada do seu tremendo remorso.
Relâmpagos terríveis rasgavam o firmamento; trovões cavernosos pareciam lançar sobre a terra criminosa a maldição do Céu vilipendiado e esquecido.
16 Mas, sobre todas as vozes confusas da natureza, o discípulo infeliz escutava a voz do Mestre, consoladora e inesquecível, penetrando-lhe os refolhos mais íntimos da alma:
— “Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida. Ninguém pode ir ao Pai, senão por mim!…” ( † )
Humberto de Campos
(Irmão X)