1 O ano 233 desdobrava-se, célere, sobre o drama das nossas personagens.
Em Roma, a família Vetúrio desfrutava todos os favores da riqueza, cercada de privilégios e de escravos.
Opílio, na madureza bem nutrida, parecia feliz em contemplar a si mesmo, no destaque e no bem-estar da mulher e dos filhos, mas Cíntia, que o desposara, desde a imaginária morte de Varro, no mar, exibia consideráveis diferenças. Mais reservada distanciara-se das paisagens festivas. Não se ausentava de casa, voluntariamente, senão para desincumbir-se de votos religiosos, no louvor dos numes tutelares, aos quais oferecia a sua devoção. Afeiçoara-se a Helena e Galba, os rebentos de Heliodora, com a mesma ternura que dedicava a Taciano, e recebia dos três análogos testemunhos de respeito e de amor.
Semelhante comportamento da companheira querida cristalizara em Vetúrio a veneração e o carinho. Espreitava-lhe os menores desejos para executá-los como servo fiel. Não se afastava da cidade, sem a companhia dela; não se confiava a qualquer das suas realizações de homem prático, sem associar-lhe a aprovação aos empreendimentos, e, não obstante romano de sua época, com todos os delitos ocultos e vulgares numa sociedade em decadência, constituía para Cíntia um amigo leal, procurando entendê-la e auxiliá-la nos mais íntimos pensamentos.
2 Entre os jovens, todavia, a situação era diversa.
Helena, com a formosura grega dos dezessete anos, primava pelos prazeres da vida social, entregando-se, inveteradamente, aos jogos e distrações, sem qualquer apego a virtudes domésticas, e, enquanto Taciano se dedicava ao estudo, fascinado pelas tradições patrícias, quase que constantemente mergulhado na Filosofia e na História, Galba, que lhe detestava o ambiente espiritual, não fazia segredo da sua intimidade com tribunos mal-educados e proxenetas inconscientes. Não suportava a superioridade intelectual do irmão. Turbulento, rixoso, alterava-se por nugas, perdendo noites de sono, em companhia de criaturas menos dignas, apesar do esforço paternal para trazê-lo à respeitabilidade.
3 Taciano, ao revés, aproveitava substanciosamente as oportunidades que a vida lhe ofertava.
Embora menino e moço, trazia consigo a experiência de algumas viagens das mais valiosas. Conhecia vastas regiões da Itália e da África, além de não poucos lugares da Acaia. ( † ) Falava o grego, com a mesma facilidade com que se expressava no idioma pátrio, e comungava com os livros, na fome de luz que assinala os homens inclinados à sabedoria.
Prendia-se, de modo particular, aos assuntos da fé religiosa, com ardente e profundo fervor.
Não admitia qualquer restrição aos deuses olímpicos. Para ele, as divindades familiares eram as únicas inteligências capazes de garantir a felicidade humana. Extremamente afeiçoado ao culto de Cíbele, a Magna Mater, visitava constantemente o templo da deusa no Palatino, ( † ) aí descansando e meditando, horas e horas, buscando inspiração. Acreditava que Júpiter Máximo era o orientador invisível de todas as vitórias imperiais, e, conquanto ainda jovem, guardava ideias próprias nesse sentido, afirmando sempre que os romanos deviam oferecer-lhe sacrifícios em caráter obrigatório, ou morrer.
4 Por isso mesmo, não obstante os dotes de espírito que lhe exornavam a personalidade, não conseguia afinar-se com os princípios do Cristianismo.
O Evangelho, examinado por ele, de escantilhão, em conversa com Vetúrio ou com rapazes de sua idade, parecia-lhe um amontoado de ensinamentos incompreensíveis, destinados a sombrear o mundo, caso vencessem na esfera da filosofia e da religião.
Perguntava a si mesmo por que motivo tantos homens e tantas mulheres caminhavam para o martírio, como se a vida não fosse uma dádiva dos deuses, digna de espalhar a ventura entre os mortais, e confrontava Apolo, o inspirador da fecundidade e da beleza, com Jesus-Cristo, o crucificado, admitindo no movimento cristão simples loucura coletiva que o poder governamental devia coibir.
Poderia um patrício, — pensava ele, — amar um escravo como se fosse a si mesmo? Seria justo perdoar aos inimigos, com pleno olvido da ofensa? Seria aconselhável dar sem retribuição? Como conciliar a fraternidade geral com a defesa da elite? Um magistrado romano poderia ombrear com um africano analfabeto e categorizá-lo à conta de irmão? Por que processos rogar o favor celeste para os adversários? Como aceitar um programa de bondade para com todos, quando os maus se multiplicavam; em toda a parte, exigindo as repressões da justiça? A própria Natureza não constituía, por si, um campo de batalha perene, em que as ovelhas eram ovelhas e os lobos não passavam de lobos? De que modo aguardar vitórias sociais e políticas, sob a orientação de um salvador que expirara na cruz? Os destinos da pátria estavam presididos por gênios tutelares, que lhe conferiam a púrpura do poder. Porque desprezá-los em troca dos loucos que morriam, miseravelmente, nas prisões e nos circos?
5 Em muitas ocasiões, enquanto Cíntia admirava a conversação brilhante do filho, Vetúlio ponderava a diferença que separava os dois rapazes, criados sob os mesmos princípios e tão distanciados moralmente um do outro, lastimando a condição de inferioridade em que se colocava Galba, o filho de sua esperança.
Num dia quente, ao crepúsculo, vamos encontrar nossos conhecidos num amplo terraço, em cordial aproximação.
Cíntia, silenciosa, tecia delicado trabalho de lã, não longe de Helena, que se fazia acompanhada de Anacleta, a governanta que Opílio lhe escolhera, entre antigos laços de parentela da primeira esposa.
Pouco mais velha que a filha de Heliodora, Anacleta nascera em Cipro (Chipre) ( † ) e, desde cedo, fora cambiada para Roma, aos cuidados de Vetúrio, a pedido da genitora, antes de falecer. Órfã, a menina crescera sob a proteção de Cíntia, fazendo companhia à enteada, que lhe devotava profunda afeição.
Transigente e bondosa, sabia acobertar todas as faltas de Helena, constituindo para ela não somente uma servidora leal, mas também um refúgio afetivo, em todas as circunstâncias.
6 Enquanto as duas moças conversavam, algo apreensivas, perto de Cíntia, que parecia exclusivamente interessada no trabalho do fio, em outro ângulo, Vetúrio e os rapazes entendiam-se animadamente.
A palestra versava sobre os problemas sociais, com visível entusiasmo de Taciano e indisfarçável retraimento de Galba.
— Concordo em que a luta iniciada, há mais de cem anos, — comentava Opílio, — terminará naturalmente pela vitória do patriciado. Tenho grande confiança em Alexandre, reconhecido como protótipo de prudência e justiça.
— Contudo, — observou Taciano, tocado de juvenil indignação, — o imperador tem a família infestada de mulheres nazarenas. Pelo lado materno, está cercado de senhoras dementadas, que não se envergonham de receber instruções religiosas de vagabundos da Ásia. ( † ) A morte de Ulpiano, sem nenhuma providência disciplinar, lhe revela o caráter enfermiço. É fraco e indeciso. Pode ser um padrão de virtudes individuais, mas não mostra aptidão para comandar a nossa vida política.
7 Sorriu, algo sarcástico, e anotou:
— Quando a cabeça é frágil, não vale o corpo forte.
— É provável que a razão esteja contigo, — tornou Opílio bem humorado, — entretanto, hás de convir que o governo não dorme. Não temos tido espetáculos punitivos, mas a perseguição metódica vem sendo levada a efeito, em moldes legais. A morte de Calisto, n por exemplo…
— Quem era Calisto senão um escravo fora da lei?
— Realmente, — concordou Vetúrio, — não podemos comparar um servidor de Carpóforo ( † ) aos magistrados do Império.
— A perda de Ulpiano é irreparável…
— Mas, que temos nós com a vida alheia? — Atalhou Galba, enfadado. — Nunca hesitarei entre um copo de vinho e uma discussão filosófica. Que nos adianta saber se o Olimpo ( † ) está cheio de divindades ou se um louco morreu na cruz há duzentos anos?
— Não te expresses assim, meu filho! — disse Vetúrio, preocupado — não podemos olvidar os destinos do povo e da pátria em que nascemos.
8 O moço gargalhou, irreverente, e, tocando os ombros de Taciano, perguntou:
— Que farias, mano, se a coroa do imperador te buscasse a cabeça?
O rapaz percebeu o sarcasmo da interpelação, mas respondeu, firme:
— Se me fosse confiada qualquer tarefa administrativa, não somente exterminaria o Cristianismo, aniquilando-lhe os prosélitos, mas também todos os cidadãos relaxados e viciosos de que as nossas tradições se envergonham.
Galba corou, buscando o olhar paterno, como pedindo reprovação para o filho de Cíntia, mas notando a firmeza com que Opílio, em silêncio, o censurava, pronunciou algumas interjeições desrespeitosas e afastou-se.
A essa altura, Helena e Anacleta retiraram-se, de rosto sombrio, em direção ao jardim.
Reparando que a jovem enxugava lágrimas, Taciano esqueceu-se dos problemas sociais que lhe escaldavam a cabeça e indagou do pai adotivo sobre as razões de semelhante transformação da irmã, habitualmente despreocupada, sendo então informado de que o jovem Emiliano Secundino, de quem a moça se aproximara com grande esperança de ligação afetiva, fora assassinado em Nicomédia, ( † ) segundo notícias chegadas por um correio de horas antes.
Taciano comoveu-se.
9 Conhecia o rapaz e admirava-lhe a inteligência. Como quem se valia da hora azada para entendimento difícil, Vetúrio abeirou-se do enteado, com visível emoção, e falou-lhe, em voz baixa:
— Meu filho, os anos ensinam-nos, pouco a pouco, a necessidade de refletir. Gostaria de ter em Galba um continuador seguro de meu trabalho, entretanto, sabes que teu irmão, até agora, não se decidiu pela responsabilidade. Apesar da verde juventude, é jogador e rixento contumaz. Tenho estudado com tua mãe os problemas de nossa família e admito que precisamos de tua cooperação nas Gálias, ( † ) onde as nossas propriedades são importantes e numerosas. Possuíamos, em Viena, ( † ) um amigo prestimoso na pessoa de Lamprídio Treboniano, mas Lamprídio morreu, há tempos. Alésio e Pontimiana, nossos fiéis servidores em Lião, ( † ) estão velhos e fatigados… Perguntam, incessantemente, por ti e aguardam-te a presença, a fim de que sejas ali o meu representante legal.
Opílio fez ligeiro intervalo, verificando o efeito de suas palavras, e interrogou:
— Concordarias em seguir, ao encontro da preservação de nosso patrimônio provincial? Nossa residência lionesa, a meu ver, é mais confortável que o nosso domicílio de Roma e a cidade desfruta a estima das famílias mais representativas de nossa nobreza. Estou convencido de que farás valiosas relações e encontrarás grande estímulo no trabalho. Nossas terras produzem regularmente, mas não devemos relegá-las ao abandono.
10 O rapaz mostrou-se satisfeito e observou:
— Várias vezes minha mãe me tem falado sobre essa transferência. Estou pronto a obedecer. O senhor é meu pai.
Vetúrio sorriu, confortado, e aduziu:
— Mas, não é tudo.
E, fixando nele os olhos com insistência, interrogou:
— Já pensaste em casar, meu filho?
O moço riu-se, acanhado, e explicou:
— Positivamente, os livros ainda me não permitiram qualquer excursão mental no assunto. É difícil sair da intimidade com Minerva para ouvir qualquer conversação de Afrodite…
O tutor achou graça e prosseguiu:
— Para todos nós, porém, chega invariavelmente o instante de madureza interior, que nos impele ao refúgio do lar.
11 Após longa pausa, dando ideia da questão delicada que a sua palavra suscitaria, continuou:
— Ante a notícia da morte prematura de Emiliano, Cíntia está naturalmente aflita com a mágoa de Helena, e, mãe devotada que é, depois de ouvi-la, instou comigo para permitir-lhe um passeio até Salamina, ( † ) onde Anacleta possui vários parentes. Apolodoro, tio dela, segue para Cipro, ( † ) na quinzena próxima, e tenho a intenção de entregar-lhe as meninas para uma excursão que, a nosso ver, lhes será extremamente proveitosa. Helena descansaria alguns meses das agitações de Roma, refazendo-se para abraçar mais sérios deveres. Como pai interessado na segurança do futuro, tenho pensado… pensado…
Diante do silêncio de Taciano, Opílio completou a exteriorização do propósito que o atormentava:
— Confesso alimentar a esperança de que teu casamento com ela se converta, mais tarde, em realidade… Não guardo a intenção de impor-lhes meus desejos. Sei que a ligação esponsalícia deve obedecer às afinidades de sentimento, antes de tudo, e reconheço que o dinheiro não traz a ventura do amor; entretanto, nossa tranquilidade seria perfeita, se pudéssemos conservar nossas possibilidades financeiras e territoriais tão sólidas amanhã, quanto hoje. Não posso esperar que o nosso Galba nos compreenda as preocupações, à frente do porvir. Perdulário e indisciplinado, tudo nos diz que será para nós um companheiro difícil de carregar…
12 As considerações de Vetúrio eram ditas num timbre tão particularmente enternecedor, que o moço sentiu incoercível emotividade a constringir-lhe o peito. Apertou as mãos do padrasto, com ternura, e respondeu:
— Meu pai, disponha de mim, como desejar. Seguirei para Lião, quando for de seu agrado e, quanto ao futuro, os deuses decidirão.
A palestra prosseguiu carinhosa e íntima, evidenciando a segurança espiritual do filho de Quinto Varro. Mas, em gracioso caramanchão do pátio florido, a posição da filha de Heliodora revelava-se diferente.
Abraçada à governanta, Helena chorava sob forte irritação, clamando em desespero:
— Anacleta, haverá infortúnio maior que o meu? O desastre aniquila-me a vida. Emiliano prometera falar a meu pai, tão logo voltasse da Bitínia… ( † ) E agora? Que será feito de mim?! Estávamos comprometidos, faz mais de três meses… Sabes que a nossa união secreta devia ser consagrada pelo matrimônio… Ó deuses imortais, compadecei-vos de meu amargo destino!…
13 A moça cipriota afagava-lhe os lindos cabelos, que dourada rede enfeitava, e dizia, maternal:
— Acalma-te! O valor é qualidade para as grandes horas. Nem tudo está perdido. Já nos entendemos com tua mãe, acerca das tuas necessidades de medicação e repouso… Tio Apolodoro está de viagem para a ilha. Conseguiremos a permissão de teu pai e seguiremos com ele. Lá, tudo será fácil. Esperaremos com relativo descanso aquilo que os deuses nos reservam. Tenho bons amigos em minha terra. Escravas fiéis auxiliar-nos-ão em segredo… Não temas.
A jovem, contudo, voluntariosa e rebelde, objetava, inquieta:
— Como suportar a expectativa de tantos meses? Concordo com a viagem como expediente de último recurso… Emiliano não podia morrer…
— Que sugeres então? — Indagou Anacleta, aflita.
— Procuremos Orósio… Ele deve conhecer algum remédio que me liberte…
— O feiticeiro?
— Sim, ele mesmo. Não posso entregar-me à maternidade, com escândalo público. Meu pai nunca me perdoaria…
14 A governanta, que lhe conhecia a luta interior, tentou apaziguar-lhe a alma opressa.
A menina, porém, a recriminar-se, em pranto, só muito tarde se recolheu aos aposentos particulares, não conseguindo a bênção do sono.
Noite inteira, suspirou e chorou, atribulada.
Embora relutando, Anacleta conduziu-a, pela manhã, à residência de Orósio, um velho de vil aparência que se escondia em miserável casebre do Velabro. ( † )
Encarquilhado, entre pilhas de raízes e vasos diversos, transbordantes de tisanas de odor desagradável, recebeu as visitantes, procurando sorrir.
Helena, que se ocultava com nome suposto, tentou explicar a razão que as trazia.
Não era a primeira vez que o procurava, esclareceu, atenciosa. Em outra ocasião já lhe rogara socorro, com êxito, para certa amiga desamparada. Agora, pedia para si mesma. Achava-se doente, desesperançada, aflita. Desejava uma consulta aos poderes sobrenaturais.
15 O mago recolheu, cuidadosamente, as moedas que a moça lhe oferecia, por remuneração antecipada, e sentou-se à frente de uma trípode, sobre a qual uma concha simbólica deixava escapar balsamizantes espirais de incenso.
Orósio repetiu algumas fórmulas em idioma desconhecido para elas, estendeu as mãos descarnadas para a trípode e, de membros inteiriçados, cerrou os olhos, exclamando:
— Sim!… Vejo um homem que se levanta do abismo!… Oh! foi assassinado!… Mostra larga ferida no peito!… Pede perdão pelo mal que lhe fez, mas declara-se ligado, há muitos anos, ao seu destino de mulher… Chora! Quão amargosa é a dor que lhe explode no pranto!… Que lágrimas densas prendem essa alma ao lodo da Terra!… Fala de alguém que nascerá… Estende os braços e roga socorro para uma criança…
Depois de ligeira pausa, inquiriu o velho em transe:
— Oh! sim, tão jovem e será mãe? Por todas as bênçãos que descem das Divindades, ele suplica de joelhos para que a senhora lhe poupe mais uma dor… Não se desfaça do anjinho que tomará nova roupa na carne!…
16 Nesse ponto da estranha revelação, Orósio cobriu-se de tremenda palidez.
Suor abundante corria-lhe da face.
Parecia escutar, atentamente, o fantasma, cuja presença Helena e Anacleta pressentiam, terrificadas.
Findos alguns momentos de torturante expectação, o mago retomou a palavra e profetizou:
— Senhora, não recuseis a maternidade!… Ninguém foge, impunemente, aos desígnios do Céu!… A criança ser-lhe-á proteção e consolo, reajuste e arrimo… Mas, se for consumado o seu propósito de desvencilhar-se dela…
A voz de Orósio fez-se rude e cavernosa, qual se fosse mais diretamente influenciado pela entidade que o assistia.
Ergueu-se animado de misterioso impulso e, dirigindo-se à filha de Vetúrio, afirmou:
— … Então, a senhora morrerá banhada em sangue, vencida pelo poder das trevas!…
17 Helena atirou-se aos braços de Anacleta, soluçando agitadamente.
Compreendeu que o Espírito de Emiliano interferia, ali, para acordar-lhe a consciência na responsabilidade maternal, e, sentindo-se incapaz de prosseguir em contato com a inesperada manifestação, gritou para a companheira:
— Não posso mais! Arrasta-me! Quero viajar, esquecer…
Orósio caíra novamente em torpor, deixando perceber extremo interesse no colóquio com o invisível, mas ambas as moças, apavoradas, amparando-se uma à outra, afastaram-se à pressa buscando a viatura que as esperava, a distância.
Helena, em vez de encontrar remédio que a libertasse do compromisso assumido, foi colhida por maior aflição.
Tão intensa se lhe exteriorizou a melancolia em casa que o genitor, inquieto, tratou de organizar-lhe o roteiro no mar.
Apolodoro, o amigo cipriota, foi chamado para entender-se com a família.
18 Vetúrio e Cíntia, depois de lhe entregarem respeitável quantia, confiaram-lhe as meninas para o longo passeio.
Embora garantidas por grandes economias particulares, as moças empreenderam a viagem sem alegria. Profunda tristeza velava-lhes os semblantes.
Absortas na contemplação das águas calmas do Mediterrâneo, muitas vezes se encontraram em conversação quanto ao futuro…
Em muitas ocasiões, Helena divagava em silêncio, perguntando a si mesma: — Seria lícito crer nas palavras que ouvira? Orósio era um bruxo. O miraculoso poder de que se revestira, a fim de impressioná-la, derivava-se, certo, da influência de seres infernais, ou quem sabe? Talvez que a visão de Emiliano não passasse de simples demência. Achava-se jovem, no começo da vida. Sentia-se no direito de escolher o seu próprio caminho… Não seria mais aconselhável desfazer-se da obrigação que lhe constituía escuro fardo? Com que direito a alma do amante regressava do túmulo para impor-lhe tão pesado dever?
Sob constantes vacilações, chegou à ilha, carinhosamente assistida por Anacleta e pelo velho tio.
19 Salamina, a antiga capital, dantes linda e próspera, fora destruída por uma tremenda revolução judaica, no Império de Trajano. ( † )
O êxodo da população era lento, mas progressivo. Diversas aldeiotas e fazendas formavam-se nos arredores da cidade em decadência.
Num desses burgos pequeninos, Apolodoro situara o ninho doméstico.
Recebida com inequívocas provas de respeito e de estima, Helena, invariavelmente amparada por Anacleta, adquiriu os serviços de encanecida escrava nubiana, Balbina, a quem prometeu libertação e retorno à pátria, logo se visse desobrigada do tratamento de saúde a que se propunha submeter. E, contra todos os protestos afetuosos do anfitrião, alugou uma vila confortável, em pleno campo, alegando a necessidade de ar puro e absoluto descanso.
20 Os dias corriam sobre os dias.
Tomada de tédio e desesperação, a moça patrícia deliberou tentar algum método de fuga.
Sutilmente conseguiu arrancar de Balbina algumas informações sobre as ervas que pretendia aplicar.
A serva experiente, sem perceber suas intenções, ministrou-lhe os conhecimentos de que dispunha. E a própria Helena, sem qualquer notificação à governanta, preparou a beberagem, certa noite, e recolheu-se ao leito, para sorvê-la, antes do sono.
Depositou a taça num móvel, ao alcance das mãos, e buscou refletir alguns momentos. Mergulhou-se em funda abstração, e, quando se esforçou mentalmente para tomar o prateado copo e beber-lhe o conteúdo, sentiu-se envolvida por estranho torpor. Consciente embora, como quem sonhava desperta, viu Emiliano pálido e abatido junto dela.
21 Colocava a destra sobre o tórax ferido, como na visão de Orósio, e, dirigindo-lhe a palavra, falou, triste:
— Helena, perdoa e compadece-te de mim!… Minha violenta separação do corpo foi prova terrível. Não me recrimines! Daria tudo para permanecer e desposar-te, mas que podemos fazer quando os Céus se pronunciam contra os nossos desejos? Poderás imaginar o martírio de um homem, colocado além do túmulo, sem meios de amparar a mulher que ama?
A moça, transitoriamente desligada do corpo físico, ouvia, aterrada… Se pudesse, fugiria sem detença. Emiliano era apenas uma sombra do atleta invejável que conhecera. Assemelhava-se a um fantasma que a Parca vestira de dor. Somente os olhos vivos e fascinantes eram os mesmos. Fez menção de recuar e esconder-se, entretanto, sentiu-se como que chumbada ao solo e presa por laços imponderáveis ao amante redivivo.
22 Mostrando o propósito de tranquilizá-la, o recém-desencarnado aproximou-se com mais carinho e falou:
— Não receies. A morte é ilusão. Um dia, estarás igualmente aqui, tal qual todos os mortais… Sei quão tempestuoso te parece o horizonte. Quase menina, foste surpreendida por dolorosos problemas do coração… No entanto, sempre vale conhecer, mais cedo, a verdade…
No íntimo, a jovem desejou saber porque tornava ele do mundo das sombras, amargurando-a.
Não possuía já suficientes razões para apoquentar-se?
E, pensando que o amante estivesse exonerado de todos os deveres morais, considerava, no imo da consciência: — Por que insistirá Emiliano em acompanhar-me, quando se encontra livre? Não fora arrebatado da Terra à moradia da paz?
23 Deixando transparecer que lhe percebia as palavras inarticuladas, o inesperado visitante respondeu:
— Não creias seja o sepulcro uma passagem direta para o domicílio dos deuses… Vivemos longe da luz quando não cogitamos de acendê-la no próprio coração. Além da carne, em que nossa alma se agita, somos defrontados por nós mesmos. Os pensamentos que alimentamos são teias escuras que nos prendem à sombra ou às sendas de sublime esplendor, impelindo-nos para a frente…
Aqueles que deixamos para trás retardam nosso passo ou favorecem-nos o avanço, conforme os sentimentos que a nossa memória lhes inspira. Não suponhas haja impunidade nos tribunais da justiça divina!… Recebemos invariavelmente, segundo as nossas obras… ( † )
24 Nesse ponto da singular entrevista, Helena recordou-se mais nitidamente do enigma que a dilacerava…
Acaso Secundino voltava do sepulcro para lembrar-lhe as obrigações de que pretendia desvencilhar-se?!
Súbita aflição assomou-lhe à alma inquieta.
Como alijar o fardo de angústia?
Reconhecia-se entre o Espírito de Emiliano, a relembrar-lhe uma felicidade que não mais lhe sorriria na Terra, e uma criança intrusa a ameaçar-lhe a existência.
No fundo, queria ser mãe e desenvolver no próprio coração os potenciais de ternura que lhe explodiam no peito, mas não nas circunstâncias em que se achava.
Jamais sentira tão grande flagelação moral.
Lágrimas ardentes escaldavam-lhe os olhos.
25 Ajoelhou-se, desesperada, e gritou:
— Como me pedes compaixão, se sou mais desventurada? Compreenderás, porventura, o tormento da mulher sob o grilhão de compromissos que lhe deslustram a dignidade pessoal? Sabes o que significa esperar um acontecimento desonroso, sem o braço que nos prometeu segurança e carinho? Ah!… os mortos não conseguem penetrar o infortúnio dos vivos, porque, se assim não fora, me levarias também… A convivência dos seres infernais deve ser mais benigna que o contato dos homens cruéis!…
O desfigurado mensageiro acariciou-lhe a cabeleira sedosa e observou:
— Não blasfemes! Venho para rogar-te valor… Não desprezes a coroa da maternidade. Se aceitares a prova difícil, com submissão aos Divinos Desígnios, não nos separaremos. Juntos, em espírito, prosseguiremos em busca da alegria imortal… Suporta, com serenidade, os golpes do destino que hoje nos fere. Não menoscabes o rebento do nosso amor… Às vezes, nos braços tenros de uma criança, encontramos a força que nos regenera e nos salva… Não recuses, pois, a determinação dos Céus! Guarda contigo a flor que desabrocha entre nós. O perfume de suas pétalas alimentar-nos-á a comunhão… E um dia reunir-nos-emos, de novo, nas esferas da beleza e da luz!…
26 A jovem tentou prolongar o entendimento daquela hora inesquecível, contudo, talvez porque expandisse a sensibilidade em desequilíbrio, a figura de Emiliano como que se fundia em névoa esbranquiçada, afastando-se… afastando-se…
Chamava-o, em alta voz, mas debalde.
Acordou a gesticular, no leito, bradando, desvairada:
— Emiliano!… Emiliano!…
Um dos braços agitados derrubou, involuntariamente, a taça próxima, entornando-lhe o conteúdo.
Perdera-se a criminosa tisana.
27 Helena enxugou o pranto copioso e, porque não mais pudesse conciliar o sono, levantou-se e procurou o ar fresco da madrugada num terraço vizinho.
A visão do firmamento estrelado como que lhe suavizou o tormento íntimo e as veludosas virações que vinham do mar secaram-lhe os olhos úmidos, acalmando-lhe o coração.
Mais reservada e mais abatida, esperou resignada a obra do tempo.
Anacleta, leal e amiga, obteve indiretamente, em conversações reiteradas e supostamente sem importância, com Balbina, todos os informes imprescindíveis à assistência que devia prestar-lhe e, depois de, longas semanas, em que se manteve acamada, a moça patrícia deu à luz uma pequenina.
Assistida exclusivamente por Anacleta, que se desvelou pela tutelada na posição de verdadeira mãe, Helena contemplou a filhinha, com insopitáveis conflitos no coração.
Não sabia se a odiava com violência ou se lhe queria com ternura.
28 A governanta fê-la notar a coincidência de a menina haver herdado certo sinal materno — uma grande mancha negra no ombro esquerdo.
Vestindo-a, carinhosamente, observou:
— Isso a tornará reconhecível em qualquer ocasião.
Não obstante fatigada, Helena respondeu resoluta:
— Não pretendo reencontrá-la.
— Entretanto, — conjeturou a amiga, — o tempo corre atrás do tempo. Um dia, será talvez possível a reaproximação. Custa-me pensar que nos desvencilharemos de uma bonequinha como esta. Não surgirá um meio…
29 Helena, contudo, atalhou, firme:
— Ela deve desaparecer. É uma filha que não pedi e que não me cabia esperar.
Anacleta, desapontada, conchegou-a, de encontro ao coração, envolveu-a em panos de lã e em seguida, apresentou-a ao angustiado olhar materno, acrescentando:
— É tua… Dá-lhe alguma lembrança. Pobre avezinha! Como se portará na ventania?
A moça, estranhamente dominada de pensamentos contraditórios, sufocou as lágrimas nos olhos úmidos e, tomando de móvel próximo um belo camafeu, em que se via a imagem de Cíbele, admiravelmente esculpida em marfim, adornou com ele o corpo da pequenina.
30 Logo após recomendou, decidida:
— Anacleta, organiza-lhe a viagem. É preciso despachá-la num cesto grande, sob qualquer árvore do campo. Evita confiá-la à porta de determinada pessoa, de vez que não pretendo estabelecer qualquer laço de ligação com o passado, que considero morto, a partir deste instante.
— Helena!… — Suspirou a moça, com o evidente intuito de aconselhar.
— Não interfiras, — afirmou a jovem mãe; — quando o dia clarear, serei portadora de novo destino. Não me fales mais nisso. Saberei recompensar-te. Dispõe de mim como quiseres.
Anacleta procurou ainda impor-se, mas a filha de Vetúrio, sem tergiversar, exclamou:
— Não discutas. Os deuses decidirão…
31 A sobrinha de Apolodoro cumpriu a ordem, choramingando, e, munindo-se de agasalho, saiu conduzindo o pequeno fardo.
O dia estava prestes a alvorecer.
No horizonte, o Sol não tardaria em anunciar-se.
Anacleta foi visitada pela tentação de deixar a criança no limiar de alguma herdade, onde conseguisse acompanhar-lhe a evolução, indiretamente; todavia, embora não concordasse com a atitude de Helena vivia, por sua vez, na condição de subalternidade. Dependia da casa de Opílio e muito particularmente da menina Vetúrio. Seguir a criança, ainda que de longe, seria atrair aflições sobre a própria cabeça. Não desejava abandonar o destaque social da casa de Cíntia. Era exageradamente feliz para perder com facilidade as vantagens de que se rodeava na vida. Contudo, cortava-lhe o coração a dor de abandonar a pequenina completamente à própria sorte. Seria justo entregar, daquele modo, um ser humano, à furna dos animais? que destino poderia esperar a inocentinha, em pleno matagal?
Fitou o rosto miúdo, mal velado pela cobertura envolvente, e a compaixão intensificou-se-lhe ainda mais, em reconhecendo que a menina se deixava conduzir, sem chorar.
32 Soprava o vento fresco, qual se fora uma carícia do céu.
A corajosa governanta havia caminhado aproximadamente três quilômetros, no rumo de pequeno povoado próximo.
Não poderia prolongar demasiado a excursão, sob pena de denunciar-se. Mas, como abandonar a criança aos imprevistos da charneca? Não se conformava à ideia de perpetrar semelhante crueldade. Guardá-la-ia num ângulo de caminho, até que pudesse sentir-se segura. E, em preces, rogava aos numes de sua fé encaminhassem até ali alguém, cuja presença a tranquilizasse.
33 Preocupada, esperou.
E, quando a diurna claridade começou a espraiar-se, através dos lençóis de névoa, notou que um homem, como quem cultivasse no campo a meditação matutina, apareceu ao longe, caminhando devagar…
A moça ocultou-se, rápida, e a criança, pressentindo talvez o aparecimento de mãos amigas, passou a vagir ruidosamente.
O passeante estugou o passo, abeirou-se dela e, ajoelhando-se, junto ao cesto, bradou:
— Grande Serápis! que vejo? Um anjo, ó deuses!… Um anjo sem ninguém!…
34 Inclinou-se, cuidadoso, afagou a cabecinha nua e, erguendo os olhos para o alto, exclamou:
— Divino Zeus! há quinze anos conduziste Lívia, minha única filha e consolo de minha viuvez, para a glória de teu seio!… Hoje, que me sabes um peregrino sem apoio, ma restituis. Louvado sejas! Doravante não serei mais sozinho…
Com extremada ternura, retirou a menina do berço improvisado e apertou-a, de encontro ao coração, sob as dobras da capa acolhedora em que se envolvia e retomou o caminho por onde viera.
Os primeiros raios de ouro da manhã desvelaram a paisagem, parecendo que o Céu reafirmava a sua proteção à Terra e os pássaros começaram a cantar, melodiosamente, como se agradecessem à Divina Providência a alegria de uma criança perdida, que havia encontrado a bênção de um lar.
Emmanuel
[1] Referência ao Papa Calisto. ( † ) — (Nota do Autor espiritual.)