O Caminho Escritura do Espiritismo Cristão
Doutrina espírita - 2ª parte.

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Ave, Cristo! — Emmanuel — 1ª Parte


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Reencontro

1 Ao término de 233, numa sala singela da igreja de São João, em Lião, ( † ) pequena assembleia de companheiros se instalara para o exame de assuntos urgentes, relacionados com a obra do Evangelho.

Três homens de idade avançada, e um outro, em plena madureza, discutiam as necessidades do movimento cristão.

O Império vivia assolado por uma peste que procedia do Oriente, fazendo vítimas inumeráveis.

Em Roma, a situação era das mais graves.

A epidemia penetrara as Gálias e a comunidade cristã, em Lião, mobilizava todos os recursos para amenizar os problemas do povo.


2 O mais jovem integrante do conjunto era o Irmão Corvino, que advogava a causa dos enfermos abandonados e infelizes.

— Se desprezamos o próximo, — comentava ele, inflamado de confiança, — como atender ao nosso mandato de caridade? Cristianismo é viver o espírito do Cristo em nós. Vemos no estudo das narrativas apostólicas que as legiões do Céu se apossam da Terra, em companhia do Senhor, transformando os homens em instrumentos da Infinita Bondade. Desde o primeiro contato de Jesus com a Humanidade, observamos a manifestação do mundo espiritual, que busca nas criaturas pontos vivos de apoio para a obra de regeneração. Zacarias é procurado pelo anjo Gabriel que lhe comunica a vinda de João Batista. Maria Santíssima é visitada pelo mesmo anjo, que lhe anuncia a chegada do Salvador. Um enviado celeste procura José da Galileia, em sonho, para tranquilizá-lo, quanto ao nascimento do Redentor. E, erguendo-se o Mestre Divino, entre os homens, não se limita a cumprir a Lei Antiga, repetindo-lhe os preceitos com os lábios. Sai de si mesmo e coloca-se ao encontro das angústias do povo. Limpa os leprosos da estrada. Estende mãos amigas aos paralíticos e levanta-os. Restitui a visão aos cegos. Reergue Lázaro do sepulcro. Restaura doentes. Reintegra as mulheres transviadas na dignidade pessoal. Infunde aos homens novos princípios de fraternidade e perdão. Ainda na cruz, conversa amorosamente com dois malfeitores, procurando encaminhar-lhes as almas para o mais alto. E, depois dele, os apóstolos abnegados continuam-lhe a gloriosa tarefa do reerguimento humano, prosseguindo no ministério do esclarecimento da alma e da cura do corpo, devotando-se ao Evangelho até ao derradeiro sacrifício.


3 — Compreendemos a sensatez da exposição, — objetou o presbítero Galiano, velho gaulês que se demorara por muito tempo, na Paflagônia, ( † ) — entretanto, é preciso escapar às arremetidas do tentador. Penso haver chegado o momento de cogitar da construção do nosso retiro nas terras que possuímos na Aquitânia. Não podemos atingir o Céu sem a centralização de nossa alma na prece…

— Como conseguiremos, porém, ajudar a Humanidade, simplesmente orando? — Ajuntou Corvino, seguro de si. — Temos companheiros admiráveis estacionados no deserto. Organizam pousos solitários desfiguram-se, atormentam-se e creem auxiliar, por esse modo, a obra de redenção humana. Mas se devêssemos procurar a tranquilidade própria, a fim de servir ao Criador, por que motivo teria Jesus vindo até nós, partilhando conosco o pão da vida? Em que luta condecorar-se-á o soldado que desiste do combate? Em que país haverá colheita valiosa para o lavrador que nada mais faz que contemplar a terra, a pretexto de amá-la? Como semear o trigo, sem contato com o solo? Como plantar o bem, entre as criaturas, sem suportar o assédio da miséria e da ignorância? Não podemos admitir salvação sem a intimidade daquele que salva com aquele que se encontra desviado ou perdido.


4 Ante a pausa que se fez espontânea, Galiano considerou:

— As tuas ponderações são mais que justas, mas não podemos concordar com o pecado e nem permitir que as almas desprevenidas dele se aproximem.

— Os pagãos nos acusam de ladrões da alegria, — acentuou Pafos, um diácono aureolado de cabelos brancos, — acreditam que o Evangelho é um manto de tristeza asfixiando o mundo.

— E não falta quem veja na peste uma vingança das divindades olímpicas, ( † ) — informou Ênio Pudens, excelente companheiro que o tempo encanecera; — muita gente volta a clamar contra nós, supondo sejamos os causadores da ira celeste. Valeriano, um amigo nosso que trabalha no Fórum, contou-me, particularmente, que entre as solicitações formuladas pelo Concílio, n na festa de Augusto, consta um apelo para que sejamos de novo flagelados. E afirmou que a execução de semelhante pedido vem tardando, porque o Imperador Alexandre Severo não está suficientemente seguro.

Galiano sorriu e acrescentou:

— Mais um motivo para o insulamento dos que pretendem adorar a Deus, sem a perturbação dos homens…


5 A frase reticenciosa ficara no ar, mas Corvino, tocado de profundo ardor pela causa do Evangelho, retomou a palavra, decidido:

— Veneráveis irmãos, admito não nos caiba o direito de interferir na resolução dos que buscam a solidão, contudo, creio não devamos incentivar o movimento que podemos classificar por deserção. Estamos numa guerra de ideias. O primeiro legionário que tombou, em holocausto à libertação do espírito humano, foi o próprio Mestre, nosso Comandante Divino. Desde a cruz do Calvário, nossos companheiros, em vasta frente de valoroso testemunho, sofrem o martirológio da fé viva. Há quase duzentos anos somos pasto das feras e objeto desprezível nos divertimentos públicos. Homens e mulheres, velhos e crianças têm sido levados a arenas e cárceres, postes e fogueiras, revelando o heroísmo da nossa confiança num mundo melhor. Não seria lícito trair-lhes a memória. Os adversários de nossa causa têm-nos como amargurados portadores da indiferença pela vida, mas é que ignoram a lição do Benfeitor Celeste que nos indicou no serviço da fraternidade a fonte do verdadeiro bem e da perfeita alegria. Urge, assim, não nos afastemos do trabalho e da luta. Há construções no plano do espírito, como existem no campo da matéria. A vitória do Cristianismo, com a livre manifestação do nosso pensamento, é obra que nos compete concretizar.


6 Surgiu pequeno intervalo na conversação que a palavra de Ênio interrompeu:

— No que se refere a serviço, nossa posição não é das melhores. Muitas famílias, pressentindo a perseguição, vêm dispensando os empregados cristãos. Ainda ontem as oficinas de Popônio demitiram dez companheiros nossos.

— Mas temos o direito de esmolar para a igreja e a igreja precisa sustentá-los, — observou Galiano, cuidadoso.

Corvino, porém, obtemperou, firme:

— Sim, temos o direito de esmolar. Esse, contudo, é também o direito do mendigo. Não nos cabe, segundo nos parece, olvidar a produção de benefícios para o mundo. Temos terra disponível, sob a responsabilidade de vários irmãos. O arado não mente. Os grãos respondem com fidelidade ao nosso esforço. Podemos trabalhar. Não devemos recorrer ao concurso alheio, senão em circunstâncias especiais. Não seria aconselhável manter a comunidade improdutiva. Cabeça vaga é furna de tentações. Creio em nossa possibilidade de auxiliar a todos, através do esforço bem dirigido. O serviço de cada dia é o recurso de que dispomos para testemunhar o desempenho dos nossos deveres, diante dos que nos acompanham de perto, e o trabalho espontâneo no bem é o meio que o Senhor colocou ao nosso alcance, a fim de que sirvamos à Humanidade, com ela crescendo para a Glória Divina.


7 O explicador ainda não havia terminado, quando a porta se entreabriu e um companheiro anunciou:

— Irmão Corvino, a irmã Pontimiana roga-lhe a presença.

O presbítero pediu permissão aos confrades e retirou-se.

Na praça pobre de acesso ao templo, que mal começava a erguer-se, uma senhora respeitável esperava-o.

Era a guardiã do palácio rural de Opílio Vetúrio.

Embora contrariando o esposo, fizera-se amiga fiel da igreja, ouvindo Corvino, que lhe amparara a renovação espiritual, passo a passo.

Não obstante idosa, Pontimiana revelava extrema agudeza nos olhos lúcidos, que sempre refletiam a cristalina bondade de sua alma.

Tantas vezes auxiliada pelo presbítero, convertera-se em prestimosa irmã dele, devotando-lhe estima sincera.


8 Sorridente, saudou-o e foi logo informando:

— Taciano, o menino agora rapaz que o senhor conheceu em Roma, chegou hoje. Tratando-se de alguém cujo destino sempre lhe interessou, vim trazer-lhe a notícia.

O semblante do religioso cobriu-se de extrema palidez.

Enfim, reveria o filho bem-amado.

Quase vinte anos haviam decorrido.

Constantemente, procurava-o no rosto dos órfãos e achara-lhe o carinho no peito das crianças sem lar que o buscavam, trêmulas de frio. Em todas as preces ao Senhor, lembrava-lhe o nome, no imo dalma. Consoante as lições do apóstolo que lhe consolidara a fé, consagrara-se ao trabalho da terra. Distanciara-se dos conhecimentos náuticos, renunciara à vocação do comando, amaciara a voz e aprendera a obedecer. Tomando o velho Corvino por padrão renovador, dividia a existência entre o santuário e o serviço comum. Não se tornara famoso, em Lião, simplesmente pela abnegação com que se dedicava aos enfermos, curando-os e reanimando-os através da oração, mas também pela arraigada ternura com que se empenhava na proteção à infância.

Habitava numa propriedade da igreja com trinta meninos, aos quais servia de mentor e de pai, seguido, de perto, pela cooperação de duas velhinhas.


9 Quinto Varro, convertido em presbítero, encontrara nos pequeninos o alimento espiritual da alma saudosa.

Apesar da prevenção reinante contra a igreja, a cidade respeitava-o.

Os pobres e os infelizes rendiam-lhe rasgado preito de amor. Mas não era somente grande no apostolado da fé. Agigantara-se em humildade, fazendo-se o jardineiro chefe de cinco residências patrícias. Orientava os escravos com tanta mestria no preparo do solo e na educação das plantas, que conquistara, não apenas significativo salário, mas também admiração e preferência.

A casa senhorial de Vetúrio incluía-se entre as mansões aristocráticas cuidadas por ele. Captara a confiança dos mordomos e a estima dos servos. Era na extensa propriedade um cooperador e um amigo.

No fundo, Varro sabia que esse era o único recurso de rever Taciano e oferecer-lhe os braços paternais.

Desvelara-se, por isso, na formação do parque, no meio do qual se levantava a casa de Opílio. Nenhum jardim, em Lião, se lhe igualava em beleza.


10 Informado por Alésio e Pontimiana, que algumas vezes visitavam Roma, de que o filho era apaixonado por rosas rubras, com elas desenhou vastos canteiros, dando-lhes a figura especial de um coração, marginado de flores, em cujo centro acolhedores bancos de mármore, entre repuxos amenos, convidavam à meditação e ao repouso.

Trabalhara muito durante os dezessete anos que o distanciavam do lar, a fim de merecer o contentamento daquela hora.

Fizera-se mais experiente, mais esclarecido. Mantivera longo contato com os mestres do pensamento, em várias línguas. Sobrenadara a corrente de aflições do próprio destino e procurara vencer todos os percalços para comparecer, ainda que para sempre anônimo e irreconhecível, diante do filho incessantemente lembrado, com a dignidade do homem de bem.


11 Como fazer face à surpresa daquela hora? Teria forças para abraçar Taciano, sem comprometer-se?

A voz de Pontimiana veio arrebatá-lo da obcecante reflexão:

— Irmão Corvino, o senhor sente-se mal, porventura?

Como que acordando de um sonho atormentado o presbítero recompôs a fisionomia e respondeu, gentil:

— Desculpe, irmã. Estou bem.

— É que não disponho de muito tempo, — tornou ela, preocupada. — O jovem Taciano chegou doente.

— Doente?

— Sim, tudo indica seja portador da peste maldita.


12 E, ante o coração paterno, amargamente surpreendido, continuou:

— Vim até aqui, não somente para o comunicado, mas também para rogar-lhe o concurso.

Atendendo às perguntas que lhe foram dirigidas, a empregada de Vetúrio esclareceu que o rapaz chegara com febre alta e vômitos frequentes, sofrendo inquietante angina que lhe impedia a deglutição. Os escravos que lhe formavam o séquito adiantavam que o moço parecia muito acabrunhado na viagem, piorando, entretanto, somente na véspera, horas antes de alcançarem a cidade. Ela e o marido haviam movimentado todas as providências. Taciano instalara-se no quarto confortável que, desde muito, o aguardava, e um médico de confiança fora chamado. Não conhecia ainda os efeitos da inspeção, todavia, resolvera pedir-lhe ajuda imediata, em razão da experiência que ele, Corvino, adquirira nas tarefas assistenciais que abraçara, junto dos pestosos. Sabia, de antemão, que a casa seria marcada por zona perigosa e que o esposo e ela não poderiam contar senão com servidores insipientes. Não podia esperar a contribuição de romanos prestigiosos. Os patrícios de nomeada, em maioria, estavam em vilas campestres, a longas distâncias, receosos de contágio.


13 O presbítero ouviu, de coração opresso, desejando colocar-se junto do filho, para o que desse e viesse. Mas, atento às responsabilidades que o prendiam ao templo, prometeu visitar o enfermo, tão logo se desincumbisse das obrigações mais urgentes.

Com efeito, ao entardecer, fez-se substituído no lar dos meninos e, à noitinha, dava entrada no aposento do filho.

Amparado por Alésio, o jovem agitava-se em náuseas aflitivas. O rosto descarnado denunciava-lhe o abatimento.

Por mais que o mordomo apresentasse o religioso, Taciano, febril, não dava conta de si mesmo.

O olhar esgazeado passeava pelo quarto, vagueando inexpressivo.

Enquanto Corvino lhe acariciava a cabeça suarenta, o guardião informava:

— Há duas horas começou a delirar.


14 Realmente, findos alguns minutos de pesada expectação, o doente pousou no visitante os olhos empapuçados, alterando-se-lhes o brilho. Indisfarçável interesse se lhe estampou na máscara fisionômica. Contemplou demoradamente o presbítero, qual se houvesse enlouquecido e, tentando afastar a delicada cobertura, bradou:

— Quem trouxe a informação da morte de meu pai? Onde estão os escravos que o assassinaram? Malditos! Todos serão mortos…

O benfeitor dos enfermos, colhido à queima-roupa por semelhantes palavras, recorreu à prece para não trair-se.

Pálido e semiaterrado, orava em silêncio, enquanto Taciano, como se entrevisse a realidade nos desvarios da febre, prosseguia gritando:

— Conduzamos a galera até Cartago!… Não posso recuar… Conhecerei a verdade por mim mesmo… Faremos um inquérito. Punirei os culpados. Como puderam esquecer tamanho delito? Disse-me Opílio que há muitos crimes na sombra e que a justiça é incapaz de todos os reajustes… mas serei o vingador de meu pai… Quinto Varro será reabilitado. Não perdoarei a ninguém… Aniquilarei todos os patifes…


15 Preocupado talvez com a estranheza do irmão Corvino, o esposo de Pontimiana falou-lhe, reservado:

— O rapaz, fora de si, lembra-se do pai assassinado, faz muitos anos, por escravos nazarenos, na embarcação que o conduzia para a África, em missão punitiva.

E provavelmente porque o interlocutor apenas se manifestasse, através de monossílabos, acrescentou:

— Quinto Varro era o primeiro marido da patroa. Consta que viajava rumo a Cartago, incumbido de providenciar o castigo de vários cristãos insubmissos, quando foi apunhalado por servidores irresponsáveis e inconscientes…

Arejou um dos lençóis que envolviam o paciente e prosseguiu:

— Pobre menino! Embora educado por Vetúrio qual se lhe fora filho, revelou-se, desde cedo, atormentado pela memória paterna.


16 Em seguida, baixou o tom de voz e, abeirando-se, cuidadoso, do presbítero, observou, deixando-lhe perceber o constrangimento com que o recebia na intimidade:

—  A morte de Varro acirrou na família, como é justo, o ódio ao Cristianismo. Taciano foi criado pela genitora na extrema veneração às divindades. A senhora costuma dizer que preparou o filho para combater a mistificação Galileia e não oculta o propósito de faze-lo sustentáculo da munificência imperial. Respeito, assim, a sua cooperação, na qual Pontimiana deposita a maior confiança, contudo, sinto-me no dever de rogar-lhe cautela, a fim de que o rapaz não se sinta ofendido em seus princípios.

O abnegado irmão dos pobres não se surpreendeu com a observação.

Não obstante sentido, agradeceu a advertência.

Que não faria para demorar-se, ali, junto ao doente que ansiava por asilar nos seus braços?

Ocupou-se, carinhoso, em ministrar as beberagens indicadas pelo facultativo, esforçando-se, com todos os recursos de que dispunha, na enfermagem completa.

Taciano piorava sempre.


17 Noite alta, Alésio e a esposa se recolheram, recomendando a três escravos prestimosos se revezassem no trabalho noturno de assistência.

O irmão Corvino, porém, não arredou pé do leito.

Demorava-se o moço na fase culminante da febre insidiosa. A escarlatina complicada atingira o período de invasão.

Por trinta horas consecutivas, o religioso, entre a força da fé e a abnegação do amor, acompanhou-o, com desvelada ternura, conquistando o reconhecimento de todos os circunstantes.

No segundo dia, a erupção surgiu em manchas pequenas e vermelhas, começando no tórax, e, por várias semanas, o rapaz foi objeto de meticulosa atenção.

Muitas vezes, velando-lhe o sono, em lágrimas, o presbítero afagava-o, paternalmente, e sofria a tentação de revelar-se.

Como, porém, abrir uma guerra de morte contra Cíntia? Não esposara ele no Evangelho um novo modo de ser? Que testemunho de lealdade ao Cristo poderia afirmar, semeando ódio e amargura no espírito do filho bem-amado? Adiantaria a Taciano qualquer atitude, tendente a impor-lhe afeição?


18 Em muitas ocasiões, orou, pedindo a Jesus o inspirasse, e vezes frequentes contemplou o velho Corvino, em sonho, aconselhando-o a extrema renúncia, qual se lhe trouxesse a resposta do Alto.

Na posição de expositor da Boa Nova, achava-se ligado a milhares de pessoas, que lhe buscavam o exemplo e a palavra por respeitáveis diretrizes.

Não podia, desse modo, hesitar.

Grande era o amor pelo filho, no entanto, o amor sublime do Mestre era maior e devia conservá-lo digno, nas responsabilidades supremas.

Quando o enfermo recuperou a lucidez, abraçou-o, reconhecidamente, nele identificando, não só o jardineiro chefe da casa, mas também o benfeitor inesquecível.


19 Sentindo-se infinitamente atraído para aquele homem humilde que o visitava, perseverante, Taciano apreciava entreter-se com ele, por longas horas, em explanações sobre ciência e arte, cultura e filosofia.

Ligavam-se nos mesmos temas e nas mesmas preferências.

Discutiam Vergílio e Lucrécio, Lucano e Homero, Epicuro e Timeu de Locros, Sêneca e Papiniano, com análogos pontos de vista.

Todavia, como se temessem perder a fascinante comunhão em que se mergulhavam, pareciam linhas paralelas em religião.

Evitavam, sistematicamente, qualquer comentário em matéria de fé.

Amparado pelo amigo, o rapaz já conseguia efetuar vários passeios no parque enriquecido de suntuosa vegetação, e, ali, à sombra de vigorosos abetos ou entre giestas em flor, entabulavam preciosas conversações, sorridentes e felizes, à maneira dos antigos helenos, que preferiam a permuta de avançados conhecimentos no santuário da Natureza.


20 Certa feita, espicaçado pela curiosidade, Taciano indagou quanto às razões do seu insulamento na Gália, quando poderia ser, em Roma, festejado professor. Donde vinha e porque se condenara à obscuridade colonial?

Relutante, Corvino confessou que nascera na metrópole dos Césares, mas apaixonara-se pelo serviço junto à comunidade gaulesa e vira-se preso por fortes laços do coração.

— Que trabalho, contudo, encarcerar-te-ia em Lião, a ponto de esquecer-te? —  Perguntou o jovem com espontâneo carinho. — Admito que os herdeiros da glória patrícia não deviam abandonar a educação aos escravos. Um egípcio ou um judeu não podem produzir os pensamentos de que carecemos para a garantia da grandeza imperial.

— Sim, sem dúvida, — concordou o amigo, bondoso, — entretanto, acredito que também as províncias nos reclamam acurado interesse. O mundo está repleto de nossos legionários. Possuímos forças incoercíveis de civilização, em todas as frentes. Nossos imperadores podem ser proclamados em variadas zonas da Terra. Em razão disso, não podemos olvidar a necessidade de instrução, em todos os setores.

E, sorrindo, acentuou:

— Por este motivo, converti-me em mestre-escola.


21 Taciano partilhou-lhe o bom humor.

Nesse instante, uma ideia nasceu no cérebro de Varro.

E se lhe trouxesse as crianças para uma visita de amor? Não seria a maneira mais segura de tocar-lhe o coração para o despertamento evangélico? O rapaz poderia ignorar-lhe a condição para sempre, mas seria justo não convidá-lo para o banquete da luz divina? Quem adivinharia as vantagens de semelhante realização? Pela inteligência de que se mostrava portador, o filho, naturalmente, impusera-se na família. Percebia-se logo que as opiniões dele se faziam respeitáveis. Apesar de extremamente jovem, era senhor das próprias convicções. Um cântico infantil conseguiria, decerto, sensibilizá-lo. Taciano provavelmente se inclinaria a estudar as lições de Jesus, se os meninos lhe alcançassem as cordas da alma…

Depois da reflexão de segundos, dirigiu-se ao convalescente, de olhos iluminados por secreta esperança, e indagou como receberia ele a saudação dos pequeninos de que se erigira guardião.

O pupilo de Vetúrio não regateou encômios à ideia.

Sentir-se-ia muito feliz com a homenagem, declarou. Sempre admitira que o futuro pertence à criança. A civilização romana a seu ver, não podia descurar-se da preparação juvenil.


22 No dia previamente marcado, o próprio Taciano, com o auxílio de Alésio e da mulher, organizou, na encantadora Praça das Rosas Rubras, deliciosa criação de Corvino, o ambiente festivo da recepção.

Cestos de frutos e cântaros com abundante provisão de sucos de uvas foram artisticamente espalhados entre os bancos de mármore.

O corpo musical da herdade, constituído por escravos jovens, foi trazido à reunião.

Garbosos moços, empunhando liras e alaúdes tambores e sistros, improvisavam melodias alegres.

Dividia-se a fazenda em duas correntes partidárias: a dos servidores cristãos, inflamados de júbilo e esperança, dirigidos pelo otimismo de Pontimiana, e a dos cooperadores, devotos dos deuses olímpicos, capitaneados por Alésio, que não enxergavam o acontecimento com bons olhos. De um lado, surgiam preces e sorrisos de fraternidade, mas de outro apareciam impropérios e rostos sombrios.


23 Com a sabedoria do apóstolo e com a ingenuidade da criança, o irmão Corvino penetrou o recinto perfumado, conduzindo três dezenas de petizes, em singela apresentação.

Orientados pelo mentor, chegaram cantando um hino simples, que exprimia caricioso voto de paz.


Companheiro,

Companheiro!
Na senda que te conduz,
Que o Céu te conceda à vida
As bênçãos da Eterna Luz!…


Companheiro,
Companheiro!
Recebe por saudação
Nossas flores de alegria
No vaso do coração…


As vozes humildes assemelhavam-se a um coro de anjos que o bosque recebesse pelas asas do vento.


24 Taciano acolheu, bondoso, a colmeia infantil.

Dois bailarinos executaram números cômicos enquanto a petizada se ria, feliz.

Alguns jogos inocentes foram postos em prática.

Seis meninos recitaram poesias de nobre delicadeza, através de monólogos e diálogos que encantaram a assembleia da qual constavam muitas dezenas de escravos em trajes festivos.

Em certo momento, Taciano tomou a palavra, referindo-se aos ideais da pátria e da raça, no engrandecimento da Humanidade.

Logo após, a merenda farta espalhou o contentamento culminante.

O prestimoso jardineiro que se fizera o afortunado credor de tantas atenções, trouxe ao jovem patrício o menor da turma. Era Silvano, um menino de cinco anos apenas, filho de um legionário que morrera no Ponto. A desditosa viúva, atacada pela peste, confiara-lhe o garoto, semanas antes.

Taciano abraçou-o, com sincera ternura, dirigido-lhe a palavra, carinhosamente.


25 O irmão Corvino declarou que lhe cabia providenciar o regresso das crianças e, por isso, designava Silvano para dizer uma prece pela felicidade do anfitrião.

O pequeno, submisso, trocando jubiloso olhar com o orientador, procurou o centro da praça.

O momento era de extrema expectativa.

Todos os circunstantes entreolharam-se, aflitos…

O pupilo de Vetúrio acompanhava a cena, sorridente, certo de que seria lembrado numa oração comum às Divindades.

O pequeno, de cabeça erguida ao céu, como um soldadinho triunfante, começou a falar, comovidamente:

— Jesus, nosso Divino Mestre!… Ajuda-nos…


26 Nesse instante porém, súbita palidez cobriu a face do moço patrício. A fisionomia, dantes calma e educada, tornou-se-lhe irreconhecível. Feroz expressão eclipsou-lhe a alegria. Repentinamente convertido numa fera humana rugindo cólera clamou, terrível:

— Abaixo os nazarenos! abaixo os nazarenos!… Maldito Corvino!… Maldito Corvino!… que desgraça! quem se atreveu a introduzir cristãos em minha casa? Farei justiça, justiça! Acabarei com esta praga!…

Penosa surpresa dominou o recinto.

O paternal benfeitor aproximou-se dele e implorou:

— Piedade! Piedade!…

Taciano, contudo, não viu as lágrimas que fulguravam nos olhos dele.

Recuando, desesperado, respondeu em voz seca:

— Piedade? Reparem o velho refrão dos imundos galileus!…

E agitando um bastão de ponta metálica, rugia, estentórico:

— Fora daqui! Para fora daqui, gênios infernais!… Víboras do monturo, filhos das trevas, para fora daqui!…


27 O jovem parecia possesso de demônios do crime, tal a máscara de indignação e perversidade que lhe surgira no rosto.

Os pequerruchos tremiam imóveis.

Entre eles e o filho encolerizado, o coração de Varro não sabia o que fazer.

Muitos servidores do grupo de Alésio passaram a gargalhar ruidosamente.

Taciano relanceou os olhos na assembleia e bradou para o capataz que conhecia como sendo o mais ferrenho inimigo dos cristãos:

— Epípodo, traze o cão selvagem! Expulsemos a canalha! Aniquilemos os embusteiros!…

O escravo não hesitou. Atendeu, presto, e, em poucos instantes, aproximava-se um cão enorme a ladrar e a rosnar com fúria.

Os meninos debandaram aos gritos, dilacerando-se muitos deles na ramaria espinhosa das roseiras em flor.

O irmão Corvino, atônito, procurava acalmar os ânimos, entretanto, a fera alcançou o caçula, abocanhando-lhe o corpo tenro.


28 Aos gemidos de Silvano, a esposa de Alésio avançou, corajosa, e arrebatou a criança, contendo energicamente os movimentos do furioso mastim, que obedeceu em ganidos estridentes.

Apressou-se Varro a recolher o pequeno ferido que chorava a esvair-se em sangue. Aflito, tentava aliviá-lo, enquanto Taciano, desvairado, se dirigia ao interior doméstico, repetindo:

— Todos pagarão!… Todos pagarão!…

Rufo, velho escravo da quinta, abeirou-se do presbítero, oferecendo-lhe os préstimos.

O religioso aceitou-lhe a cooperação, rogando-lhe reconduzisse os meninos ao lar, de modo a ocupar-se de Silvano, como se fazia mister.

Dispôs-se ao regresso, conchegando a inocente vítima, de encontro ao peito.

Caminhava, lentamente, no trecho isolado que ligava a residência de Vetúrio à cidade, absorto em escuros pressentimentos.

O menino, de tórax aberto, confrangia-lhe a alma. Em dado momento, parou de gritar, embora a hemorragia prosseguisse, abundante.

O irmão Corvino percebeu-lhe a queda de forças e buscou repousar, sob vetusto carvalho, a fim de ouvi-lo.

O pequerrucho fitou nele os olhos embaciados pela agonia…


29 Varro, em pranto inclinou-se, paternalmente, e perguntou, com carinho:

— Estás recordando Jesus, meu filho?

— Estou sim senhor… — respondeu em voz débil.

Mas, revelando-se muito distante das questões transcendentes da fé, — flor humana sequiosa de ternura, — exclamou para o benfeitor:

— Papai, abrace-me… Tenho frio…

Quinto Varro compreendeu.

Estreitou-o contra o coração, como se desejasse aquece-lo com o calor da própria alma.

Tudo em vão. Silvano estava morto.


30 O doloroso acontecimento traçava sombrios horizontes ao futuro da igreja.

Abatido e desencantado, o presbítero perguntava a si mesmo se não fora precipitado na visita. Entretanto, — refletia, — seria leviandade oferecer alguém o que possui de melhor, com pureza de sentimento? Guardava nos pequenos aprendizes do Evangelho a coroa do seu trabalho. Poderia ser acusado pela circunstância de tudo fazer por despertar um filho para a verdade? Como entender-se com Taciano, sem tanger-lhe as fibras mais íntimas? Restabelecido no equilíbrio físico, o jovem seria convocado à vida social intensa. Conhecer-lhe-ia o ministério. Seria constrangido a decidir-se. Não seria, pois, aconselhável informá-lo, indiretamente, quanto às suas atividades cristãs? E que melhor maneira de faze-lo, além daquela de apresentar-lhe os seus princípios numa demonstração prática de trabalho? Se o filho não conseguisse ouvir qualquer referência à Boa Nova, através dos lábios de uma criança, em prece, como suportaria qualquer alusão a Jesus, em discussões estéreis? Não podia ele, Varro, hesitar entre qualquer sentimento pessoal e o Evangelho. Seus deveres para com a Humanidade superavam-lhe as ligações consanguíneas. Embora reconhecesse semelhante verdade, entendia lícito operar, de algum modo, em favor do filho querido.


31 Taciano, porém, mostrara-se impermeável e rígido.

Parecia muito distante de qualquer acesso à própria justiça.

Petrificara-se-lhe a mente no orgulho racial e na falsa cultura. Pela explosão de cólera a que se atirara, ao ouvir a simples enunciação do nome do Cristo, denunciara o antagonismo talvez irremediável que os separava…

Profundamente consternado, entregou-se ao refúgio da oração.

Na comunidade evangélica ninguém comentou desfavoravelmente os tristes sucessos que redundaram na morte da criança. O irmão Corvino era demasiadamente respeitado para provocar qualquer crítica desairosa à sua conduta.

Nos ajuntamentos da cidade, contudo, o assunto crescia esfervilhante.


32 As correntes de opinião nascidas em casa de Vetúrio distendiam-se, agora, por todos os lugares. Para a maioria dos espectadores, Taciano era apresentado na condição de um herói, empunhando o gládio vingador das divindades olímpicas, ( † ) mas para o grupo simpatizante do Cristianismo surgia como símbolo terrível de novas perseguições.

Os cristãos comumente eram acusados de encantamentos vergonhosos e detestáveis e de práticas de bruxaria, das quais o infanticídio fazia parte. E, por isso, não faltou quem visse na morte de Silvano alguma coisa relacionada com feitiçaria e operações mágicas.

Quadros terríveis foram pintados pela imaginação do populacho exaltado e a viúva Mércia, mãe do menino morto, foi convocada à acusação.

Nessa atmosfera asfixiante, o filho de Cíntia começou a receber a visita de romanos destacados, que lhe felicitavam o espírito reacionário e vigilante. Revigorado por semelhantes aplausos, sentia-se o rapaz habilitado para atuação de maior vulto.

O próprio questor Quirino Eustásio, velho patrício aposentado das lides políticas, mas influente junto à Propretura da Gália Lugdunense, ( † ) veio ter com ele para saudações em estilo pomposo.


33 Dentre os assuntos tratados, não podia faltar o tema preferido.

— Acredito que a mocidade romana não poderia enviar-nos à província mais digno embaixador, — encareceu o cortesão, com o calculado timbre de voz das pessoas entregues à bajulice. — A deplorável doutrina dos judeus proscritos insinua-se assustadoramente, ameaçando-nos as tradições. Esta cidade vive cheia de anacoretas da Ásia, de profetas vagabundos, de pregadores e fantasmas. Domiciliado aqui, desde os bons tempos de nosso magnânimo imperador Séptimo Severo, que os deuses conservam em sua glória divina, posso afirmar a minha convicção de que o movimento não passa de loucura coletiva, capaz de arrastar-nos à perdição.

— Sim, sem dúvida, — observou o jovem satisfeito, — compete-nos recuperar o culto da pátria. A nosso ver, grande conjugação de energias se faz indispensável, a fim de extinguirmos a quadrilha maléfica. Não compreendo em que poderia repousar a grandeza de uma doutrina, cujos prosélitos se mostram honrados com o cutelo na cerviz. Em Roma, tive conhecimento de muitos processos alusivos às repressões e espantei-me com o teor das respostas dessa gente infeliz. Repudiam os deuses com uma desfaçatez de assombrar. Creio que as autoridades deveriam promover um expurgo social, em grande estilo.


34 O interlocutor, com o riso irônico de velho fauno, admiravelmente apresentado, acentuou, malicioso:

— Em razão disso, rejubilamo-nos com a sua presença. Se a juventude patrícia não formular uma reação à altura de nossas necessidades, rumaremos para a decadência. A sua coragem na expulsão desse renitente Corvino é um desafogo para nós. Recebi a notícia, com justo regalo. Estou convencido de que a nossa fé se sente agora menos ofendida. Não vemos com bons olhos esse homem estranho, cuja procedência é ignorada de todos. Para mim, não passa de um aventureiro ou de um louco a perturbar-nos o caminho.

O enteado de Vetúrio, mordiscando-se de curiosidade, indagou com interesse:

— Não se sabe, assim, quem é ele? por que mistérios guarda consigo tamanha cultura a estagnar-se em serviços de jardinagem?


35 O interlocutor piscou os olhos astutos e acrescentou:

— Quem sabe? Insinuou-se no espírito popular com incrível desenvoltura. Há quem o tome por santo, contudo, inclino-me a crer que não passe de algum feiticeiro, cercado de seres infernais. Trazia a aparência de um vagabundo quando surgiu aqui. Pouco a pouco, adquiriu a fama de curar pelas preces nazarenas, com imposição das mãos, e a primeira casa importante que lhe caiu nas garras foi a de Artêmio Cimbro, cuja filhinha, ao que dizem, sofria grandes perturbações mentais. Experimentado o tratamento de Corvino, parece que a menina se impressionou favoravelmente, recuperando-se, então, qual se fora um milagre. Daí para cá, fez-se o jardineiro da nobre família, que o introduziu em residências outras. Da sua vida profissional, é tudo quanto sei. Das atividades do mago, porém, muito teria a dizer se pudesse. Refere-se o vulgo a mil coisas. Se fossem apenas os plebeus a se mostrarem maravilhados… Entretanto, temos alguns patrícios ilustres enleados na rede. Dizem alguns que a palavra dele está revestida de miraculoso poder, afirmam outros que ele cura as mais complicadas enfermidades…

— É estranho ver uma cidade como esta, a desvairar-se por este modo! — comentou Taciano, com interesse.

— Por isso mesmo, necessitamos de elementos renovadores. A sua decisão, rechaçando Corvino, é sumamente confortadora. Ele é incompetente para conduzir crianças, mesmo desprezíveis. Sei que Artêmio lhe advoga a causa, mas estou convencido de que poderemos interromper-lhe, doravante, as mistificações. Zenóbio, um velho amigo que foi alto dignitário da imperial munificência, comunicou-me, ontem à noite, informado por fontes dignas de crédito, que o menino morto fora encaminhado aos dentes do cão pelo próprio Corvino, a fim de que a malta cristã obtivesse sangue inocente para os mistérios negros das reuniões que praticam. É notório que ele foi a única testemunha do ato final…


36 E, baixando o tom de voz, perguntou:

— Teria o dileto amigo observado isso? Seria muito importante registar o fato, através de sua própria boca…

Taciano, de rosto esfogueado, a exprimir o choque de contraditórias emoções, esclareceu, presto:

— Nada posso adiantar nesse sentido. Quando ouvi o nome do crucificado, a revolta subiu-me à cabeça. Não tive olhos senão para defender a nossa propriedade contra a influência pestilencial. Determinei a soltura do cão de guarda, possuído de extrema desesperação. Não me cabe, por isso, asseverar aquilo que não verifiquei por mim mesmo.

Quirino, porém, mordeu os lábios, contrariado, e ajuntou:

— Fique certo, contudo, de que as coisas não terão ocorrido de outro modo. Reajamos em conjunto. Nossos escravos não podem continuar à mercê de bruxos inconscientes e nem será lícito permitir que pessoas de nossa condição social se deixem embair sem defesa…


37 — Nisso, achamo-nos de pleno acordo, — salientou o rapaz, resoluto; — de minha parte, pretendo corrigir e selecionar a comunidade de servidores.

— E que plano traçou para esse serviço? Gostaria de agir em minha casa com uniformidade de vistas.

— Aguardo a vinda de meus pais, em breves dias, que trarão consigo Helena, a minha futura esposa. Como passarei a residir aqui depois do meu casamento, antecipei-me a eles, a fim de adaptar a vida da propriedade aos hábitos de minha família e de modo a afeiçoar-me às usanças da província. Não desejo, todavia, que os meus encontrem os disparates surpreendidos por mim. Pretendo reunir todos os servos, a fim de prestarem juramento aos deuses que veneramos. Afastarei quem fugir ao justo compromisso. Em seguida, penso instituir em casa o culto de Cíbele, começando com uma cerimônia processional pelo nosso bosque. É indispensável purificar os costumes e os ares.

Quirino concordou, entusiástico, e prometeu aderir ao programa. Não somente faria o mesmo em seu domicílio, mas convocaria os amigos a acompanhá-lo.

Estimava Opílio Vetúrio, de longos anos, e felicitava-se por ver-lhe a organização doméstica zelosa e bem guardada.


38 Realmente, depois de alguns dias, quando os sofrimentos da peste desapareciam no olvido comum, Taciano promoveu a grande assembleia do lar para a reafirmação de fidelidade aos deuses.

Em vastíssima dependência da herdade, uma soberba estátua de Cíbele fora instalada para a recepção dos votos gerais, enquanto que à direita da imagem, num alto palanque paramentado de seda carmesim e fios dourados, instalaram-se Taciano, dois sacerdotes populares da deusa e o casal de mordomos, Alésio e Pontimiana.

Numa extensa galeria, consideravelmente elevada, junto às portas de acesso ao grande recinto, a nobreza citadina, trazida por Eustásio, rejubilava-se com as cerimônias.

Em baixo, acotovelavam-se todos os servidores da família, dentre os quais alguns artistas repetiam cânticos consagrados à divindade.

Num pequeno altar, graciosamente florido, a imagem que Vetúrio importara de Pessinunte ( † ) figurava-se uma testemunha impassível.

Cíbele, ladeada por dois leões esculpida em mármore imaculado, representava realmente o símbolo de uma civilização bruxuleante, à frente do olhar indagador e triste de dezenas de escravos, sob a orgulhosa exibição dos senhores.


39 O primeiro a aproximar-se, criando naturalmente um padrão para ser imitado, foi Taciano, que, reverente diante do ídolo, declarou em voz alta:

— Sob a invocação da Divina Cíbele, Mãe dos deuses e mãe nossa, juro irrestrita fidelidade às crenças e tradições dos nossos antepassados e perfeita obediência aos nossos eternos imperadores.

Frenéticos aplausos coroaram-lhe as palavras.

Um hino sacro, acompanhado por flautas frígias, fez-se ouvir cadenciado e melodioso.

Em seguida, Alésio desceu do trono improvisado e, dando a ideia de que a cena havia sido previamente estudada, pronunciou respeitosamente os mesmos votos.

Logo após, veio Pontimiana.

A nobre senhora parecia doente e fatigada. Adivinhava-se-lhe a luta íntima.

Palidíssima enviou ao marido suplicante olhar, mas, pela expressão rude com que Alésio a fitou, era possível imaginar os duros conflitos em que se haviam empenhado, antes da cerimônia…

Contida pelos olhos frios do companheiro, a orientadora da casa enxugou as lágrimas e repetiu, pausadamente, as mesmas palavras, negando assim a fé cristã que lhe atribuíam.

Triunfante sorriso pairou na máscara fisionômica de Alésio, enquanto se alastrava cochichado sussurro em enorme agrupamento de servidores.

Notas de amargurado assombro surgiram em vários rostos.


40 Todos os escravos, um a um, alguns enfáticos e outros humilhados, reafirmaram as frases pronunciadas inicialmente pelo senhor.

O último foi Rufo.

Epípodo, o capataz, conhecia-lhe a firmeza de opinião e, por isso, deixara-o para o fim, temendo qualquer irregularidade tendente a estabelecer a indisciplina.

De semblante austero, evidenciando aceitar plenamente as responsabilidades daquela hora, ergueu o bronzeado perfil, como se procurasse o céu e não a estátua impassível, exclamando em voz cristalina e dominadora:

— Juro respeitar os imperadores que nos governam, mas sou cristão e renego os deuses de pedra, incapazes de corrigir a crueldade e o orgulho que nos oprimem no mundo.

Um burburinho percorreu a assembleia.


41 Taciano dirigiu-se, em voz baixa, ao sacerdote mais idoso e esse, assumindo a função de juiz, clamou para o servo, em tom autoritário:

— Rufo, não te esqueças de tua condição.

— Sim, — concordou o interpelado, valoroso, — sou escravo, e sempre servi aos meus senhores com lealdade, mas o espírito é livre… Somente a Jesus-Cristo reconheço por Verdadeiro Senhor!…

— Exijo que te retrates perante Cíbele, a sublime Mãe dos Deuses.

— Nada fiz que não esteja aprovado pela retidão de minha consciência.

— Abjura e serás perdoado.

— Não posso.

— Sabes quais são as consequências de tua irreflexão?

— Creio falar com perfeito conhecimento de minha responsabilidade, entretanto, quaisquer que sejam os resultados de meu gesto, não devo recuar perante a minha fé.

Rufo relanceou o olhar pelos circunstantes e notou que dezenas de companheiros concitavam-no à resistência. Pontimiana, algo desafogada, enviava-lhe, em silêncio, muda mensagem de bom ânimo.

— Abjura! abjura! — Trovejava a voz do padre com aspereza.

— Não posso! — Repetiu Rufo, imperturbável.


42 Depois de ligeira confabulação com o jovem patrício, o improvisado julgador convocou Epípodo ao chicote.

Rufo, por ordem do algoz, despiu a túnica de gala que envergara para a festa e ajoelhou-se de mãos para trás.

O trançado fino e cortante lambeu-lhe a pele nua por três vezes, provocando sangrentos vergões mas o escravo não tremeu.

— Ainda há tempo, infeliz! — Bradou, confundido, o sacerdote da Magna Mater, — abjura e a tua falta será relevada…

— Sou cristão, — reiterava Rufo, sereno.

— O castigo poderá conduzir-te à morte!

— O sofrimento não me intimida… — suspirou a vítima com humildade. — Jesus conheceu o martírio na cruz para salvar-nos. Morrer por fidelidade a Ele é uma honra a que devo aspirar.

O látego visitou-lhe o dorso com violência, abrindo-lhe feridas sangrentas, mas, percebendo o mal-estar que a cena de selvageria impunha ao recinto, Taciano recomendou fosse o escravo recolhido ao cárcere, até resolver quanto à definitiva punição.


43 Terminado o serviço, começou a solenidade processional.

O filho de Cíntia desejava uma purificação completa da propriedade.

Considerável multidão apinhava-se nos pátios da casa, aguardando o cortejo.

A estátua de Cíbele foi colocada sobre riquíssimo andor de prata, ornamentado de lírios.

Jovens pares, rigorosamente vestidos de branco, simbolizando a castidade e a beleza, abriam alas à frente, dançando, em ritmos graciosos, ao toque de flautas e pandeiretas do culto.

Em seguida, todas as senhoras presentes, conduzindo palmas aromáticas, anunciavam o ídolo que, suportado pelos ombros de Taciano e de outros rapazes consagrados à deusa, se fazia seguir pelos sacerdotes em orações do rito frígio e pelos incensadores.

Depois deles, uma jovem de rara beleza carregava o cutelo sagrado.

Acompanhando-a, vinha o conjunto de musicistas, usando trompas, flautas, címbalos, tímpanos e castanholas, nos cânticos votivos, cujos trechos harmoniosos se perdiam no matagal.

Os dignitários e os principais vinham, em fila, silenciosos e reverentes e, ao fim do préstito, congregava-se a massa de escravos, mudos e tristes.

Os hinos de louvor à mãe dos deuses embalsamavam o bosque de doce melodia, interrompendo o chilrear dos pássaros assustados…

A procissão, em diversas fases, contornou a herdade, através do arvoredo bem cultivado e das vinhas extensas, tornando a casa, onde Cíbele foi restituída ao templo minúsculo que Opílio Vetúrio, em outro tempo, lhe erigira em pleno jardim.


44 Taciano, tomando a palavra depois das preces dos sacerdotes, agradeceu a presença dos religiosos, das autoridades e do povo, enaltecendo a sua confiança na proteção das Divindades Olímpicas. ( † )

Dispersou-se a colorida assembleia.

Entardecia…

Sozinho agora no amplo terraço, de onde podia descortinar o horizonte lavado e límpido, o jovem, instintivamente, recordou o irmão Corvino, a morte de Silvano e a reação de Rufo e, sem perceber, começou a lutar com a influência do Cristo, não mais em derredor das próprias ideias, mas dentro mesmo do coração.


Emmanuel



[1] Assembleia gaulesa ( † ) com direito de opinar diante da autoridade de César. — (Nota do Autor espiritual.)


Texto extraído da 1ª edição desse livro.

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