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1 Rico, vivia a sós, desde longínqua data.
Afagava o metal resplandecente e louro…
Nem um pão a ninguém. Somente ouro e mais ouro,
Entre pedras faiscando e baixelas de prata.
2 Conservava o vintém com a devoção de um mouro. n
Surge, porém, a dor que o despreza e maltrata
E, depois, vem a morte erguendo a foice ingrata,
Que o lança em desespero a fundo sorvedouro…
3 Sem o corpo de carne é um louco que esbraveja,
Quer governar, ainda, a migalha e a bandeja;
Enjaulado na sombra, excita-se e reage.
4 E conquanto pranteie e se lamente embora,
O infeliz Harpagão possui somente, agora,
Uma cama de terra e um cobertor de laje.
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1 “Ouro, luxo e prazer é o que a vida resume!” (29) n
Brada jovem mulher sobre doirada escória; (30)
Vive, bela, a voejar na carne ardente e flórea
E morre num salão, em vagas de perfume…
2 No pesadelo, a sós, loucamente presume
Resguardar no sepulcro o carro de vanglória;
Mentaliza brasões na caverna marmórea,
Ergue em franco delírio a cabeça de nume…
3 Supõe-se em pleno baile e dança, viva, lesta,
Exige a gargalhar mais música na festa,
Pede vinho e caviar sem que ninguém a acoite… (39) n
4 Súbito, acorda e grita, a encravar as mãos finas
Nos troncos espectrais das tristes casuarinas (41)
Que gemem a chorar, sob os ventos da noite…
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1 Do castelo feudal que o vento forte enrija,
Brame Dom Gil Mendonça, em subida almenara:
— “Agasalho a ninguém!…” — Ressoa a voz preclara,
De florão a florão, de cornija a cornija.
2 Sempre à noite, há quem chore e beije a pedra rija.
— “É a neve!… Abra Dom Gil!…” — Cada rogo dispara
E assopra anseio e dor nos brasões de Carrara,
Sem que o dono feroz se comova ou transija.
3 Certo dia, no entanto, ouvem-se augúrios de algo…
Surge uma sombra leve e procura o fidalgo
Que, em vão, se estorce e ruge à porta que não cerra.
4 — “Que bandido me assalta?” — exclama, braço em riste,
Mas o vulto era a morte, e a morte, calma e triste, n
Acomoda Dom Gil numa fossa de terra.
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1 O Espírito de Luz desce à noite umbralina…
Doce nume a lenir as feridas da furna,
Escuta um malfeitor de face taciturna,
Que a estorcer-se, mordaz, acusa e desatina.
2 Anjo à frente de um monstro… A compaixão divina
Oferta ao frio e à sombra o bem por flâmea urna. n
Rende-se a fera humana e conta, em voz soturna,
A história de si mesmo, expondo a senda em ruína…
3 Amaldiçoava o pai que outrora lhe trouxera
A riqueza e o prazer em dourada quimera, n
Sem jamais dar-lhe amor ao peito maltrapilho…
4 Cala-se… O benfeitor beija-lhe o férreo pulso n
E cai-lhe, humilde, aos pés, sob pranto convulso…
O emissário dos Céus achara o próprio filho.
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[1] José Júlio da SILVA RAMOS — Emérito professor de Português do Colégio Pedro II, um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras, onde ocupou a cadeira nº 37, prosador primoroso e poeta lírico de profunda inspiração, Silva Ramos fez o curso de Direito na Universidade de Coimbra. Filólogo dos mais eminentes, soube influenciar Espíritos de escol quais Antenor Nascentes, Manuel Bandeira e Sousa da Silveira. Colaborou em diversas publicações, como A Semana, Revista da Academia Brasileira de Letras, Renascença, etc. “A magnanimidade de Silva Ramos” — disse Alcântara Machado — “é atestada não por este ou aquele capítulo, mas por todas as páginas da sua existência.” (Recife, Pernambuco, 6 de Março de 1853 — Rio de Janeiro, Gb, 16 de Dezembro de 1930.)
BIBLIOGRAFIA: Adejos; Pela Vida Fora; A Reforma Ortográfica; Centenário de João de Deus, conferência; etc.
[2] Verso 5 - Leia-se com a, numa sílaba (Ectlipse).
[3] Versos 29-30. - doirada. Tendo usado a forma ouro no 1º verso, é natural que o filólogo e poeta, no 2º verso, preferisse a forma doirada, fazendo que os versos se tornassem mais eufônicos. A propósito, cf. uma observação de Garrett, em Camões citada por Sousa da Silveira, Trechos Seletos, pág. 433.
[4] Versos 39-41. - Leia-se ca-viar e ca-sua-ri-nas, com sinérese.
[5] Verso 55 - Atente-se na epanástrofe: “…era a morte, e a morte…”
[6] Verso 62 - Leia-se com hiato: flâ/me/a ur/na.
[7] Verso 66 - dourada. Cf. a nota aos versos 29-30 deste capítulo.
[8] Verso 68 - Observe-se a aposiopese: “Cala-se…”