1 Encarcerado, enfim, nas grades da memória,
Tudo tresanda em mim o sinistro bafio
Da torva escuridão a que me sentencio,
Na câmara de fel da sombra merencória.
2 Mocidade, ilusão, tudo é lodo e vanglória
Esbarrando na morte — horrendo desafio:
Para a descida ao caos ignoto, imenso, frio,
E ser lama pensante, escória sob a escória.
3 Ó minhalma infeliz, porque assim te sublevas? n
Corvo triste da mágoa a crocitar nas trevas, n
Volve em prece a dormir na paz inerme do ovo!
4 Sepulta, coração, no tremedal medonho,
A aflição derradeira e o derradeiro sonho n
Para tudo esquecer e começar de novo!
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[1] Não se identificando por óbvias razões, ensina-nos o poeta que, após a desencarnação, se carregamos frustrações e culpas, debalde procuraremos fugir às “grades da memória”. Só a reencarnação, com efeito, representa a terapêutica ideal, quando teremos de “começar tudo de novo”.
[2] Verso 9 - Notem-se os adjetivos usados pelo vate: sinistro, torva, merencória, horrendo, ignoto, frio, infeliz, inerme, medonho — indicativos todos de profundo sofrimento. Aliás, os próprios substantivos e verbos de todo o soneto dão-nos ideia do estado de espírito do aedo que, felizmente, está convicto de que, muito em breve, voltará ao educandário físico.
[3] Verso 10 - “corvo triste da mágoa” — bela imagem, conquanto negativa do ponto de vista espiritual.
[4] Verso 13 - “A aflição derradeira e o derradeiro sonho”: Poliptoto — “Nome dado à FIGURA que resulta da repetição da mesma palavra em vários casos, graus, tempos e pessoas, etc.” (Geir Campos, Op. cit.)