1.
Na noite imediata, em seguida a serviços rotineiros, Silas procurou-nos
para a continuação da tarefa encetada.
2 De regresso ao lar de Luís,
alimentamos conversação comum, sem qualquer alusão aos temas da véspera,
e, como que sintonizados em nossa onda mental de respeito mútuo, Clarindo
e Leonel receberam-nos com discrição e carinho.
3 Afiguraram-se-nos, ambos,
sobremaneira trabalhados pelas ideias que o Assistente lhes ofertara
indiretamente ao espírito.
4 Em casa do situante, o quadro
não se alterara.
Luís e os amigos cavaqueavam cordialmente, comentando
as pragas do campo e as doenças dos animais, a carestia da vida e os
negócios infortunados… Entretanto, os dois irmãos demonstravam-se agora
claramente desligados de semelhante painel de sombra.
5 Cumprimentaram-nos com a
gentileza irradiante de quem se punha à vontade para acolher-nos e fitaram
Silas com desusado interesse.
Adivinhava-se que haviam tomado a confissão do Assistente para valiosas reflexões.
6 Observando-lhes a metamorfose
com inequívocos sinais de contentamento, o chefe de nossa expedição
nem de leve se reportou ao problema de Luís e convidou-os com lhaneza
de trato a acompanhar-nos.
7 Mostrando a renovação de
que se achavam possuídos, incorporaram-se, de pronto, à nossa pequena
caravana e, atendendo à recomendação de Silas, os dois, de mãos entrelaçadas
com as nossas, conseguiram volitar com certa facilidade e segurança.
8 Findos alguns minutos, chegamos
a vasto hospital de movimentada cidade terrestre.
Na portaria, um dos vigilantes espirituais dirigiu-se carinhosamente a Silas, em saudação fraterna, e o nosso dirigente no-lo apresentou, atencioso:
— Este é o nosso companheiro Ludovino, que no momento se encontra encarregado da necessária vigilância, a benefício de alguns enfermos ligados à nossa casa pelos vínculos da reencarnação.
Abraçamo-nos todos, irmãmente.
9 Logo após, o responsável
por nossa equipe de trabalho tomou a palavra, indagando:
— E a nossa irmã Laudemira? Recolhemos hoje notícias graves…
— Sim, — concordou o interpelado, — tudo faz acreditar que a pobrezinha sofrerá
perigosa intervenção. Envolta nos fluidos anestesiantes que lhe são
desfechados pelos perseguidores, durante o sono, tem a vida uterina
sensivelmente prejudicada por extrema apatia. O cirurgião voltará dentro
de uma hora e, na hipótese de os recursos aplicados não surtirem efeito,
providenciará uma cesariana como remédio aconselhável…
10 Nosso amigo mostrou funda
preocupação a vincar-lhe o semblante habitualmente calmo, e ajuntou:
— Uma operação dessa espécie acarretar-lhe-á grandes prejuízos para o futuro. Consoante o programa organizado, em favor dela, cabe-lhe receber ainda mais três filhos no templo do lar, de modo a utilizar-se do presente estágio humano, com tanta eficiência quanto se torne possível…
O guarda fixou um gesto de respeito e ponderou:
— Creio, então, que não há tempo a perder.
11 Silas tomou-nos a dianteira
e conduziu-nos a pequena enfermaria, onde jovem senhora se lamentava,
aflita.
Simpática matrona de nevados cabelos, em cuja ternura percebíamos a presença materna, velava, atenta, acariciando-lhe as mãos inquietas.
12 Notando a expressão de pavor
que os olhos da doente exibiam em pranto, procurei a palavra de Silas,
quanto à causa de tão agoniado padecimento.
— Nossa irmã, — esclareceu, prestativo, — será novamente mãe, em minutos breves.
13 Encontra-se, porém,
algemada a provas difíceis. Demorou-se muito tempo, em nossa Mansão,
antes de retornar ao corpo denso de carne, sempre vigiada por inimigos
que ela mesma criou em outro tempo, quando se valeu da beleza física
para acumpliciar-se com o crime. Bela mulher, atuou em decisões políticas
que arruinaram a estrada de muita gente. Padeceu muitos anos nas trevas
infernais, entre a carne e a sombra, até que mereceu agora a felicidade
de renascer com a tarefa de restaurar-se, restaurando alguns dos companheiros
de crueldade que, na feição de filhos, com ela se levantarão para mais
amplos serviços regeneradores…
14 Silas, contudo, lançou-me
expressivo olhar e acrescentou:
— Historiaremos o assunto mais tarde. Agora, é indispensável agir…
Sob a atenção de Clarindo e Leonel que nos seguiam, surpresos, convocou-nos, a Hilário e a mim, para o socorro imediato.
15 Determinando permanecêssemos
ambos em oração, com a destra colada ao cérebro da doente, começou a
fazer operações magnéticas excitantes sobre o colo uterino.
Substância leitosa, qual neblina leve, irradiava-se-lhe das mãos, espalhando-se sobre todos os escaninhos do aparelho genital.
Decorridos alguns minutos de pesada expectativa, surgiram contrações que, pouco a pouco, se acentuaram intensamente.
16 Silas, atencioso, controlou
a evolução do parto, até que o médico ingressou no recinto.
Longe de registar-nos a presença, sorriu, satisfeito, reclamando o concurso de competente enfermeira.
A cesariana foi esquecida.
17 Convidou-nos o Assistente
ao regresso, informando-nos mais tranquilo:
— O organismo de Laudemira reagiu brilhantemente. Esperamos possa continuar na obra que lhe compete, com o êxito necessário.
Puséramo-nos, de novo, a caminho.
2.
Leonel, cuja inteligência aguda não perdia os nossos menores movimentos,
perguntou a Silas, com ar respeitoso, se os trabalhos a que se dedicava
exprimiam alguma preparação, diante do porvir, ao que o Assistente respondeu
sem pestanejar:
2 — Sem dúvida. Ainda ontem
lhes falei dos meus desajustes de médico fracassado
e comentei o plano de abraçar a Medicina no futuro, entre os encarnados,
nossos irmãos. Todavia, para que eu mereça a ventura de tal reconquista,
consagro-me, nas regiões inferiores que me servem de domicílio, ao ministério
do alívio, criando causas benéficas para os serviços que virão…
3 — Causas? Causas?
— Murmurou Clarindo, algo espantado.
— Sim, procurando ajudar espontaneamente além dos deveres que me são impostos, na luta pela recuperação moral de mim mesmo, com a Bênção Divina alongarei a sementeira de simpatia em meu favor.
4 E, relanceando significativamente
o olhar sobre nós, acentuou, em seguida a breve minuto de reflexão:
— Um dia, consoante as dívidas que me pedem resgate, estarei novamente entre as criaturas encarnadas e, para solver minhas culpas, também sofrerei obstáculo e dúvida, enfermidade e aflição… Que mãos caridosas e amigas me amparem daqui, em nome de Deus, porque isoladamente ninguém consegue vencer… E para que braços amorosos se me estendam, mais tarde, é imperioso movimente agora os meus no voluntário exercício da solidariedade.
5 O ensinamento era precioso,
não apenas para os dois perseguidores que o registavam, perplexos,
mas também para nós que reconhecíamos, mais uma vez, a Infinita Bondade
do Supremo Senhor, que, ainda mesmo nos mais tenebrosos ângulos da sombra,
nos permite trabalhar pelo incessante engrandecimento do bem, como abençoado
preço de nossa felicidade.
3.
Enquanto volitávamos de retorno, Hilário, antecipando-me na curiosidade,
inclinou a conversação para o caso de Laudemira.
2 Era conhecida de Silas,
desde muito tempo? Assumira, assim, compromissos tão graves para com
a maternidade? Que papel representavam os filhos junto dela? Credores
ou devedores?
3 Silas sorriu complacente
para a arguição cerrada e explicou:
— Inegavelmente, creio que o processo redentor de nossa amiga serve por tema palpitante nos estudos de causa e efeito que vocês vão acumulando.
4 Entregou-se a longa pausa
de consulta à memória e prosseguiu:
— Não podemos, assim de relance, mergulhar pormenorizadamente no pretérito
que lhe diz respeito, nem posso de mim mesmo cometer qualquer indiscrição,
abusando da confiança que a Mansão me outorga, no exercício de meus
encargos. Entretanto, a título de nossa edificação espiritual, posso
adiantar-lhes que as penas de Laudemira, na atualidade, resultam de
pesados débitos por ela contraídos, há pouco mais de cinco séculos.
5 Dama de elevada situação
hierárquica na Corte de Joana II, Rainha de Nápoles, de 1414 a 1435,
possuía dois irmãos consanguíneos que lhe apoiavam todos os planos loucos
de vaidade e domínio. Casou-se, mas sentindo na presença do marido um
entrave ao desdobramento das leviandades que lhe marcavam o caráter,
acabou constrangendo-o a enfrentar o punhal dos favoritos, arrastando-o
para a morte. 6 Viúva
e dona de bens consideráveis, cresceu em prestígio, por haver favorecido
o casamento da rainha, então viúva de Guilherme, Duque da Áustria, com
Jaime de Bourbon, Conde de La Marche. 7
Desde aí, mais intimamente associada às aventuras de sua soberana, confiou-se
a prazeres e dissipações, nos quais perturbou a conduta de muitos homens
de bem e arruinou as construções domésticas, elevadas e dignas, de várias
mulheres do seu tempo. Menosprezou sagradas oportunidades de educação
e beneficência que lhe foram concedidas pela Bondade Celeste, aproveitando-se
da nobreza precária para desvairar-se na irreflexão e no crime. 8
Foi assim que, ao desencarnar, no fastígio da opulência material, nos
meados do século XV, desceu a medonhas profundezas infernais, onde padeceu
o assédio de ferozes inimigos que lhe não perdoaram os delitos e deserções.
9 Sofreu por mais de
cem anos consecutivos nas trevas densas, guardando a mente parada
nas ilusões que lhe eram próprias, voltando à carne por quatro vezes
sucessivas, por intercessão de amigos do Plano Superior, em cruciantes
problemas expiatórios, no decurso dos quais, na condição de mulher,
embora abraçando novos compromissos, experimentou pavorosos vexames
e humilhações da parte de homens sem escrúpulos que lhe asfixiavam todos
os sonhos…
10 — Mas, — perguntou
Hilário, — de cada vez que se retirava da carne, nas quatro existências
a que alude, continuava ligada às sombras?
— Como não? — Exclamou o Assistente, — quando a queda no abismo é de longo
curso, ninguém emerge de um salto. 11
Ela naturalmente entrava pela porta do berço e saía pela porta do túmulo,
transportando consigo desajustes interiores que não podia sanar de momento
para outro.
12 — Se a situação
era assim inalterável, — ponderou meu colega, — para que retomar o corpo
físico? Não lhe bastaria sofrer na dolorosa purgação daqui deste lado,
sem renascer na Esfera carnal?…
— A observação é compreensível, — ajuntou Silas, paciente, — entretanto,
nossa irmã, com o amparo de abnegados companheiros, voltou ao pagamento
parcelado das suas dívidas, reaproximando-se de credores reencarnados,
não obstante mentalmente jungida aos Planos inferiores, desfrutando
a bênção do olvido temporário, com o que lhe foi possível angariar preciosa
renovação de forças.
13 — Mas sempre conseguiu ressarcir,
de alguma sorte, os débitos em que se emaranhou?
— De alguma sorte, sim, porque padeceu tremendos golpes no orgulho
que trazia cristalizado no coração… 14
Contudo, a par disso, contraiu novas dívidas, de vez que, em certas
ocasiões, não conseguiu superar a aversão instintiva, diante dos adversários
aos quais passou a dever trabalho e obediência, chegando ao infortúnio
de afogar uma criancinha que mal ensaiava os primeiros passos, de modo
a ferir a senhora da casa em que servia de ama, tentando vingar-se de
crueldades recebidas. 15
Depois de cada desencarnação, regressava habitualmente às zonas purgatoriais
de que procedia, com alguma vantagem no acerto das suas contas, mas
não com valores acumulados, imprescindíveis à definitiva libertação
das sombras, porque todos somos tardios na decisão de pagar nossos débitos,
até o integral sacrifício…
16 — Contudo, —
tornou Hilário, — sempre que regressava à Esfera espiritual, decerto
contava com o auxílio dos benfeitores que lhe amparam os desatinos, embora se demorasse na treva mental…
17 — Exatamente,
— confirmou Silas; — ninguém está condenado ao abandono. Vocês não ignoram
que o Criador atende à criatura por intermédio das próprias criaturas.
Tudo pertence a Deus.
18 — Ainda mesmo o inferno?
— Acrescentou Leonel, preocupado.
O Assistente sorriu e aclarou:
— O inferno, a rigor, é obra nossa, genuinamente nossa, mas imaginemo-lo, assim,
à maneira de uma construção indigna e calamitosa, no terreno da vida,
que é Criação de Deus. 19
Tendo abusado de nossa razão e conhecimento para gerar semelhante monstro,
no Espaço Divino, compete-nos a obrigação de destruí-lo para edificar
o Paraíso no lugar que ele ocupa indebitamente. Para isso, o Infinito
Amor do Pai Celeste nos auxilia de múltiplos modos, a fim de que possamos
atender à Perfeita Justiça. Entendido?
20 O apontamento não podia ser
mais claro, entretanto, Hilário parecia interessado em solver qualquer
dúvida e, talvez por isso, inquiriu novamente:
— Considera possível venhamos a saber quais seriam as existências de Laudemira, antes de haver ingressado na Corte de Joana II?
21 — Sim, — elucidou
Silas, tolerante, — será fácil conhecê-las, mas não nos convém num simples
estudo efetuar o tentame, porque o assunto em si reclamaria largas quotas
de atenção e de tempo. Basta lhe pesquisemos a condição referida para
definir-lhe as lutas redentoras de agora, 22
porquanto nossos estágios em qualquer eminência social no mundo, seja
no campo da influência ou das finanças, da cultura ou da ideia, servem
como pontos vivos de referência da nossa conduta digna ou indigna, no
usufruto das possibilidades que o Senhor nos empresta, designando com
clareza nosso avanço na direção da Luz ou nosso aprisionamento maior
ou menor nos Círculos da treva, pelas virtudes conquistadas ou pelos
débitos assumidos.
23 A conceituação luminosa
de Silas era verdadeiro jorro solar em meu entendimento…
Ainda assim, meu companheiro insistiu:
— Não obstante os suas valiosas anotações já
expendidas, quanto à memória ( † )
nas regiões inferiores, será interessante saber se Laudemira, antes
da atual reencarnação, chegava a lembrar-se com nitidez dos estágios
por que passou nas difíceis provações a que se refere…
24 Nosso amigo esclareceu com
a maior tolerância:
— Estou na Mansão há oito lustros, e acompanhei-lhe a internação em
nossa casa, faz precisamente trinta anos. Havia encerrado a existência
última, no Plano carnal, no início deste século, e atravessara longos
padecimentos, nas Esferas de baixo nível. Ingressou em nosso instituto
acusando terrível demência e, submetida à hipnose provocada, revelou os fatos
que venho de narrar, fatos esses que constam naturalmente da ficha que
lhe define a personalidade, no arquivo das observações que nos orientam.
Nossos instrutores, porém, não julgaram necessário mais amplo recuo
mnemônico, pelo menos por enquanto, para lhe prestarem auxílio. 25
Sei, no entanto, que Laudemira, conturbada qual se achava, não dispunha
de forças para articular qualquer reminiscência na vigília comum; mesmo
porque foi trazida à reencarnação atual, sob os auspícios de benfeitores
que velam por nossa organização, ainda mentalmente sintonizada com os
laços menos dignos do caminho que escolheu. 26
Deve agora receber cinco de seus antigos cúmplices na queda moral, para
reerguer-lhes os sentimentos, na direção da luz, em abençoado e longo
sacerdócio materno. Do seu êxito no presente, dependerão as facilidades
que espera recolher do futuro, para a liberação definitiva das sombras
que ainda lhe ofuscam o Espírito, pois, se conseguir formar cinco almas
na escola do bem, terá conquistado enorme prêmio, diante da Lei amorosa
e justa.
27 O problema de Laudemira,
debatido em nosso regresso, valia por preciosa contribuição no tema
“causa e efeito” que nos decidíramos estudar.
4.
E, reparando que a nossa curiosidade quedara-se, satisfeita, Silas
voltou-se com mais carinho para Leonel e Clarindo, sondando-lhe os ideais.
2 Decerto, para conhecer-lhes
naturalmente as esperanças, reportou-se aos próprios anseios, quanto
aos trabalhos médicos do futuro. Não pretendia perder tempo. Guardava agora
a sede de aprender e servir, para demandar o campo humano com os melhores
valores do espírito, que se lhe exprimiriam na mente, quando encarnado,
em forma de tendência e facilidade na chamada “vocação inata”.
3 Os dois irmãos, sabiamente
tocados pela palavra do amigo que lhes ganhara a confiança, sentiam-se
agora mais à vontade.
A confissão do Assistente e o exemplo de humildade que nos fornecera, espontâneo, penetrara-lhes, fundo.
4 Clarindo, impulsivo
e franco, falou dos ideais de que se inflamara, anos antes. Possuía
entranhado amor ao solo e projetara, quando jovem, a organização de
um reduto agrícola em que lhe fosse possível consagrar-se a nobilitantes
experiências. Anelaria ter vivido largo tempo na propriedade familiar,
criando um setor de ação própria. 5
Entretanto, comentou algo triste, mas sem o tom de revolta de suas anteriores
conversações, a criminosa decisão de Antônio Olímpio aniquilara-lhe
os sonhos. Vira-se esbulhado dos seus ideais, em tremenda frustração
que, depois do sepulcro, lhe dementava a cabeça… Não conseguia disposições
mentais para refazer a esperança… Sentia-se como o desespero em pessoa,
como alguém que se identificasse irremediavelmente agrilhoado a pelourinho
degradante…
6 E Clarindo mostrava agora
inflexão de pranto na voz, revelando-se imensamente transformado.
7 Leonel, cuja inteligência
refinada nos infundia cauteloso respeito, estimulado por Silas, começou
a dizer de sua inclinação para a música…
Quando menino entre os homens, acreditava-se talhado para a arte sublime. Jovem, apaixonara-se pela obra de Beethoven, cuja biografia guardava de cor. Em razão disso, não buscava tão somente o título de bacharel para o qual se preparava, mas também os louros de pianista, com o que se sentiria sumamente feliz…
8 No entanto, e exprimia-se
carregando a voz de insofreável amargura, o homicídio de que fora vítima
turvara-lhe a visão. Albergava no íntimo tão somente o ódio que passara
a reger-lhe a existência e, com o ódio no coração, não sabia rearquitetar
os castelos do princípio…
9 Leonel fez longa pausa e
acentuou com agradável surpresa para nós:
— Entretanto, em nossos contatos pessoais nos dias últimos, começo a perceber que, se tivemos a experiência física ceifada em plena juventude do corpo, indubitavelmente possuíamos débitos que justificavam provação assim tão rude, embora isso não exima Antônio Olímpio, o irmão ingrato, da culpa que carrega, esposando a responsabilidade do horrível assassínio com que nos precipitou nas sombras.
— Exatamente, — acrescentou Silas, emocionado, — seu argumento denuncia grande
renovação…
10 Contudo, o Assistente não
pôde continuar, porque Leonel mergulhou a cabeça nas mãos e clamou em
lágrimas:
— Mas, ó Deus, por que só conhecemos a alta virtude do perdão, quando já nos
enodoamos no crime? Por que só tão tarde o desejo de restaurar o campo
de nossas aspirações, quando a vingança já nos crestou a vida no incêndio
do mal?!…
11 Enquanto Clarindo lhe acompanhava
a explosão de dor e remorso, com sinais de aprovação, e Silas o acolhia,
generoso, de encontro ao peito, pressentimos que Leonel se reportava
à morte de Alzira, debaixo da obsessão que, sem dúvida, ele e o irmão
haviam comandado.
12 O orientador de nossa excursão,
todavia, deu-se pressa em consolá-lo, exortando, bondoso:
— Chora, meu amigo! Chora, que as lágrimas purificam o coração!… Ainda assim, não permitas que o pranto te esmague a lavoura de esperança… Quem de nós, aqui, jaz sem culpa? Todos detemos compromissos a resgatar e o Tesouro do Senhor jamais se empobrece de compaixão. O tempo é a nossa bênção… Com os dias coagulamos a treva ao redor de nós e, com os dias, convertê-la-emos em sublimada luz… Entretanto, para isso, é indispensável perseveremos na coragem e na humildade, no amor e no sacrifício. Levantemo-nos na direção do futuro, dispostos à reconstrução dos nossos destinos.
13 Reparamos que Leonel, naquela
hora, propunha-se vazar o coração em nossos ouvidos. Queria desabafar,
confessar-se…
Silas, no entanto, restituindo-o à meditação, convidou-nos ao regresso,
prometendo voltar na noite seguinte.
5.
Os dois companheiros, completamente modificados, reinstalaram-se no
lar de Luís, e prosseguimos de retorno.
2 A caminho, o Assistente
rejubilava-se. O processo Antônio Olímpio, a nós confiado, atingia bom
termo.
A renovação dos obsessores coroara-se de êxito.
3 E o chefe da nossa expedição
dizia aguardar para a noite imediata o entendimento entre Alzira e aqueles
que lhe seriam filhos no porvir, depois do qual seriam ambos internados
na Mansão, com o pleno assentimento deles mesmos, tendo em vista a preparação
do futuro… Na casa dirigida por Druso, trabalhariam e reeducar-se-iam,
encontrando novos interesses mentais e novos estímulos para a necessária
recuperação…
4 Assim que o nosso amigo
entrou em silêncio, Hilário indagou, preocupado:
— Quanto tempo gastarão Clarindo e Leonel, aplainando os caminhos para a volta ao corpo físico?
— Provavelmente um quarto de século…
5 — Por que tanto?
— Precisarão reconstituir as ideias, no campo do bem, plasmando-as de modo
indelével na mente, a fim de que se consagrem à efetivação dos novos
planos. Refugiar-se-ão no serviço ativo, ajudando aos outros e criando,
assim, preciosas sementeiras de simpatia, que lhes facilitarão as lutas
na Terra, amanhã… No trabalho e no estudo, tanto quanto nos empreendimentos
da pura fraternidade, amealharão incorruptíveis valores morais, e a
reeducação; dessa forma, aperfeiçoar-lhes-á as tendências, predispondo-os
à vitória de que necessitam nas provações remissoras.
6 — E Antônio Olímpio?
— Insistiu Hilário, — pelo que deduzo, permanecerá muito menos tempo
na Mansão…
— Sim, — aprovou o Assistente, — Antônio Olímpio, depois de breve reconciliação
com os manos, renascerá, sem dúvida, dentro de dois a três anos.
7 — Por que tão grande diferença?
— Não podemos esquecer, — explicou Silas, sereno, — que foi ele quem
começou a criminosa trama sob nosso estudo. Por isso, do grupo de reencarnantes,
será o companheiro menos favorecido na Lei, durante a viagem prevista
à Esfera humana, pelas agravantes que lhe marcam o problema individual.
Com o Espírito ainda sombreado de angústia e arrependimento, ressurgirá
no berço da família que ele prejudicou, pela prática da usura, movimentando-se
num horizonte mental muito restrito, de vez que, instintivamente, a
sua maior preocupação será devolver aos irmãos espoliados a existência
física, o dinheiro e as terras que deles furtou… Em razão disso, apenas
disporá de facilidades íntimas para a cultura e o aprimoramento de si
mesmo, na idade madura do corpo, quando houver encaminhado os filhos
para o triunfo que a eles compete alcançar.
8 — Entretanto, —
ponderou meu colega, — Clarindo e Leonel também mataram…
— E decerto pagarão por isso; contudo, não podemos negar-lhes atenuantes no lamentável delito… Antônio Olímpio planejou o crime, friamente, para acomodar-se nas vantagens materiais que lhe adviriam da crueldade e da violência, e os irmãos infelizes agiram no pesadelo do ódio, traumatizados de pavorosa dor… Inegavelmente, Clarindo e Leonel padecem angústia e remorso e farão jus a doloroso resgate, em momento oportuno, mas, ainda assim, são credores do irmão que lhes retardou os passos evolutivos…
9 — E Alzira nessa história?
— Alzira já conseguiu entesourar bastante amor para entender, perdoar e auxiliar… Por esse motivo, dispõe, diante da Lei, do poder de ajudar, tanto ao esposo como aos cunhados, até agora infelizes, tanto ao filho Luís, ainda na carne, como a todos os descendentes de sua organização familiar, porque, quanto mais amor puro no Espírito, mais amplos recursos da alma perante Deus…
10 E, lançando expressivo olhar
sobre nós, acentuou:
— Aqueles que amam realmente, governam a vida.
11 Sentia-me satisfeito. Os
apontamentos não poderiam ser mais claros.
Hilário, contudo, pedindo desculpas pela insistência, levantou ainda nova questão.
Por que sofrera Alzira aflitiva desencarnação no lago?
12 Silas, no entanto, considerou:
— Compreendendo-se que nossa amiga já conquistou a felicidade do perdão irrestrito, filho do amor que não se preocupa em ser amado, não nos convém mais profunda imersão no pretérito, tornando nosso estudo fastidioso.
13 E sorrindo:
— Alzira, diante de nós outros, já é alguém que possui larga faixa de Céu no coração… Os assuntos que lhe dizem respeito devem ser analisados no Céu…
14 Atingíramos a Mansão e,
recolhidos a nós mesmos, passamos a digerir as lições da hora em curso…
As peças de amor e ódio, sofrimento e vingança do processo Antônio Olímpio
eram as mesmas de nossos dramas pessoais, destacando a necessidade de
amor e perdão em nossas vidas, para que, através do sentimento puro,
pudéssemos avançar da sombra para a luz…
6.
Nessas graves reflexões, aguardamos ansiosamente a noite seguinte.
2 E, em chegando a hora abençoada
de nossos estudos, o Assistente entendeu-se com a irmã Alzira, em longa
conversação particular, solicitando-lhe nos reencontrasse, a determinada
hora, no lago em que ocorrera a desencarnação dela. Em seguida, recomendou
a duas cooperadoras da casa lhe acompanhassem a viagem, instruindo-as
para que nossa amiga somente viesse até nós quando chamada por nosso
grupo em serviço.
3 Depois da costumeira excursão,
entrávamos no lar de Luís, onde Clarindo e Leonel nos aguardavam com
carinhoso interesse.
4 Silas reconduziu-nos ao
hospital que visitáramos na véspera, administrando passes magnéticos
em Laudemira e no filhinho recém-nato e, findas essas ligeiras atividades
de assistência, transportou-nos para vasto domicílio, em cujo umbral
um velhinho desencarnado, de fisionomia simpática, recebeu-nos amavelmente.
— É o nosso irmão Paulino, que vem amparando as obras do filho, dedicado à engenharia na Terra, — explicou o orientador de nossas tarefas.
5 E Paulino deu-nos acesso
ao interior familiar, situando-nos num espaçoso gabinete em que um homem
maduro jazia debruçado sobre um livro.
6 O generoso anfitrião no-lo
apresentou como sendo o filho encarnado, cuja missão técnica assistia
com invariável desvelo. E, porque indagasse ao diretor de nossa excursão
em que poderia servir-nos, Silas rogou-lhe os bons ofícios, junto ao
filho, para que nos fosse propiciado, ali, o prazer de alguns momentos
de música, solicitando-lhe, se possível, alguma página especial de Beethoven.
7 Com surpresa, vimos nosso
amigo abeirar-se do engenheiro, segredando-lhe algo aos ouvidos. E,
longe de assinalar-nos a presença, qual se estivesse constrangido por
si mesmo a ouvir música, o cavalheiro interrompeu a leitura, dirigiu-se
à eletrola e consultou pequena discoteca, de que retirou a Pastoral
do grande compositor a que nos referimos.
8 Em breves momentos, o recinto
povoava-se para nós de encantamento e alegria, sonoridade e beleza.
Silas, com alma e coração, ouvia conosco a sinfonia admirável, toda ela estruturada em bênçãos da Natureza sublimada.
9 Com Clarindo, atraído
para as lides campestres, sentíamos mentalmente a presença do bosque,
repleto de pássaros cantores sobrevoando um regato cristalino a deslizar
sobre leitosos seixos, e, qual se a paisagem imaginária obedecesse à
narração melódica, vimo-la transformar-se, de repente, dando-nos a ideia
de que o céu, dantes azul, se cobria de nuvens pesadas e pardacentas,
a despejarem faíscas e trovões, para depois retornar ao quadro florido,
entre cânticos e preces… 10
E, com Leonel, apaixonado pela arte divina, registávamos o império
da música, em sua majestade soberana, arrebatando-nos às mais sublimes
emoções.
11 Aqueles minutos valiam para
nós como abençoada oração.
Os lances da magnífica sinfonia como que nos elevavam a Círculos harmoniosos
de ignota beleza e todos trazíamos lágrimas abundantes, de vez que os
encantadores acordes em movimento guardavam a faculdade de lavar-nos,
miraculosamente, os refolhos do ser.
12 Findas as notas derradeiras,
despedimo-nos, maravilhados.
Nossos pensamentos vibravam em sintonia mais pura, e os nossos corações pareciam mais fraternos.
7.
Por solicitação de Leonel, que parecia atender instintivamente à sugestão
de Silas, demandamos o lago na velha propriedade dos Olímpios.
2 O plenilúnio coroava o campo
de prateadas fulgurações.
A noite ia alta…
3 Tomando a iniciativa, o
irmão de Clarindo passou, então, a relatar-nos quanto já sabíamos, detendo-se
em copioso pranto, ao referir-se à morte da cunhada, sobre quem atirara
as farpas da sua ira…
4 Extremamente surpreendidos,
Hilário e eu anotávamos a paciente atenção de Silas em lhe ouvindo a
confissão, qual se o assunto lhe fora absoluta novidade.
5 Depois de mais de uma hora,
em que nosso companheiro sofredor se mantivera com a palavra, o Assistente,
em particular, chamou-nos a mais nobre compreensão, declarando a Hilário
e a mim que o nosso amigo tinha necessidade de expungir do coração ferido
as suas dores, e que, de nossa parte, embora lhe conhecêssemos o drama
íntimo, não nos cabia cercear-lhe a confissão e sim recolhê-la fraternalmente,
partilhando-lhe a carga de aflição, para que se lhe aliviassem as chagas
do pensamento.
6 Logo após, Silas envolveu
a ambos os irmãos numa interessante palestra, propondo-lhes o reajustamento
à face de luta reparadora.
7 Não desejariam retomar,
porventura, o caminho terrestre? Por que não abraçarem trabalho novo,
buscando o renascimento na mesma família de que provinham? Não seria
mais agradável e mais fácil conquistar a reconciliação e, com isso,
reentrar na posse das antigas aspirações, marchando com elas, no Plano
físico, ao encontro de preciosos degraus para a Vida Superior?
8 Leonel e Clarindo, porém,
quase que de modo simultâneo, lamentaram-se quanto ao problema de Alzira…
Em verdade, no desespero da própria causa, haviam aceitado as sugestões
da loucura, gastaram anos a fio estendendo a crueldade nas trevas; entretanto,
nada lhes doía tanto como a violência praticada contra a esposa de Antônio
Olímpio que, horrorizada ante a perseguição deles, se havia arrojado
naquelas águas de terríveis reminiscências…
9 Mas… e se Alzira lhes trouxesse
em pessoa o abraço de entendimento e de auxílio?
E como sorrissem de esperança, no turbilhão das próprias lágrimas, o Assistente afastou-se por alguns minutos e voltou, trazendo em sua companhia a generosa irmã que, envergando cintilante roupagem, lhes estendeu as mãos, a ofertar-lhes o colo maternal, resplendente de amor.
10 Leonel e Clarindo, qual
se fossem feridos de morte, caíram genuflexos, esmagados de medo e júbilo…
Alzira, no entanto, afagou-lhes as cabeças submissas e falou em tom
comovente:
— Filhos de minhalma, rendamos graças a Deus por esta hora de bênção.
11 E porque Leonel tentasse
debalde pedir-lhe perdão, ensaiando monossílabos cortados pelos soluços,
a genitora de Luís suplicou, humilde:
— Sou eu quem deve ajoelhar-se, implorando-lhes caridoso indulto!…
12 O crime de meu
esposo é também meu crime… Vocês foram espoliados dos mais belos sonhos,
quando a mocidade terrestre começava a sorrir-lhes. Nossa desregrada
ambição, contudo, furtou-lhes os recursos e as possibilidades, inclusive
a existência… Perdoem-nos!… Pagaremos nossas dívidas. Ajudar-nos-á o
Senhor na recuperação de nossa casa… 13
Em breve, Antônio Olímpio e eu estaremos novamente no Plano físico e,
com o apoio da Misericórdia Divina, restituiremos a vocês o sítio que
não nos pertence… 14
Permitam, meus filhos, possa honrar-se minha alma com o privilégio de
ser-lhes amorosa mãe no mundo… Para restaurar-lhes a esperança e refazer-lhes
o ideal, ofereço-lhes o meu coração… Conceder-me-á o Senhor a bênção
de agasalhá-los em meu seio, criando-os com o hálito de meus beijos
e com o orvalho de minhas lágrimas… 15
Para isso, porém, é necessário que o olvido de nossos pesares nasça,
puro, do amor que devemos uns aos outros… Esqueçamos ressentimentos
e Deus nos suprirá de recursos para que venhamos a solver nossos débitos…
16 Ergam-se, filhos
queridos… Sabe Jesus que desejo conchegá-los de encontro ao meu peito
e guardá-los nos meus braços!…
17 Alzira, porém, não conseguiu
continuar. O pranto copioso a perolar-lhe a face, como que se
lhe represava na garganta, asfixiando-lhe a voz.
18 Ainda assim, vimos a gloriosa
vitória do amor, naqueles momentos rápidos… Do tórax de Alzira, chispas
flamejantes emergiam em sucessivas ondas de safirino esplendor, dando-nos
a ideia de que a sua grandeza íntima se havia transformado em fonte
de imensa luz. Amparados por ela, Clarindo e Leonel levantaram-se, à
maneira de duas crianças atraídas pela ternura materna, e enlaçaram-na
em comovedores soluços.
19 Nossa companheira, acariciando-os,
reconhecida, acolheu-os no regaço, como se passasse a reter consigo
dois tesouros do coração.
20 Atendendo a mudo sinal do
orientador de nossa excursão, auxiliamo-la como se fazia preciso, e,
depois de algum tempo, transportando conosco os dois novos amigos, dávamos
entrada no grande instituto.
21 Após interná-los em departamento
adequado, falou Silas, contente:
— Graças a Deus, nossa tarefa está cumprida. Agora, esperemos se habilitem todos, ante a nova batalha que ferirão na Terra, para o serviço salvador em que se misturam afeto e aversão, alegria e dor, luta e dificuldade, em busca da redenção.
22 Em meu entendimento, perguntas
diversas nasciam, imperiosas, mas compreendi que a lei de causa e efeito
agiria, infatigável, para as personagens de nossa história, e meditei
nas minhas próprias dívidas… Foi então que, ao invés de indagar, beijei,
respeitoso, as mãos do Assistente, na condição do aprendiz reconhecido
ao instrutor generoso, e recolhi-me à prece em silêncio, agradecendo
a Jesus a valiosa lição.
André Luiz