1. — Algumas páginas sinceras sobre o Espiritismo, escritas por um homem de boa-fé, não poderiam ser inúteis nesta época e talvez seja tempo de se fazer justiça e luz sobre uma questão que, embora contando hoje no mundo inteligente numerosos adeptos, não tem sido menos relegada para o domínio do absurdo e do impossível por espíritos levianos, imprudentes e pouco preocupados com o desmentido que o futuro lhes possa dar.
Seria curioso interrogar hoje esses pretensos sábios que, do alto de seu orgulho e de sua ignorância, decretavam, ainda há pouco, com soberbo desdém, a loucura desses homens gigantes que procuravam novas aplicações para o vapor e a eletricidade. Felizmente a morte lhes poupou essas humilhações.
Para firmar claramente a nossa situação, faremos ao leitor uma profissão de
fé em algumas linhas:
Espírita - Google books,
Avatar - Google Books, Paul d’Apremont provam-nos
incontestavelmente o talento de
Théophile Gautier, esse poeta a quem o maravilhoso sempre atraiu;
estes livros encantadores são pura imaginação e seria erro neles procurar
outra coisa; o Sr.
Home era um prestidigitador hábil; os
irmãos Davenport, saltimbancos desajeitados.
Todos os que quiseram fazer do Espiritismo um negócio de especulação, são, em nossa opinião, da alçada da polícia correcional ou do tribunal do júri, e eis por quê: Se o Espiritismo não existe, são impostores passíveis da penalidade infligida pelo abuso de confiança; ao contrário, se existe, é com a condição de ser coisa sagrada por excelência, a mais majestosa manifestação da divindade. Se se admitisse que o homem, passando sobre o túmulo, pudesse de pé firme penetrar na outra vida, corresponder-se com os mortos e ter assim a única prova irrecusável – porque seria material – da imortalidade da alma, não seria um sacrilégio entregar a esses palhaços de rua o direito de profanarem o mais santo dos mistérios e violarem, sob a proteção dos magistrados, o segredo eterno dos túmulos? O bom-senso, a moral, a segurança mesma dos cidadãos exigem imperiosamente que esses novos ladrões sejam expulsos do templo, e que nossos teatros e nossas praças públicas sejam fechados a esses falsos profetas que lançam nos espíritos fracos o terror, de que a loucura muitas vezes é a consequência.
Isto posto, entremos no âmago mesmo da questão.
Ao ver as escolas modernas, que fazem tumulto em torno de certos princípios fundamentais e de certezas conquistadas, é fácil compreender que o século da dúvida e do desencorajamento em que vivemos está tomado de vertigem e de cegueira.
Entre todos esses dogmas o mais agitado foi, sem contradita, o da imortalidade da alma.
Com efeito, tudo está aí: é a questão por excelência, é o homem todo inteiro, é o seu presente, é o seu futuro; é a sanção da vida, é a esperança da morte. É a ela que se vêm ligar todos os grandes princípios da existência de Deus, da alma, da religião revelada.
Admitida esta verdade, não é mais a vida que deve inquietar-nos, mas o termo da vida; os prazeres se apagam para dar lugar ao dever; o corpo não é mais nada, a alma é tudo; o homem desaparece e só Deus resplandece em sua eterna imensidade.
Então a grande palavra da vida, a única, é a morte, ou antes, a nossa transformação. Sendo chamados a passar pela Terra como fantasmas, é para esse horizonte que se entreabre do outro lado que devemos lançar o olhar; viajores de alguns dias, é ao partir que convém nos informemos sobre o objetivo de nossa peregrinação, perguntemos à vida o segredo da eternidade, finquemos as balizas do nosso caminho e, passageiros da morte à vida, sustentemos com mão firme o fio que atravessa o abismo.
Disse Pascal: “A imortalidade da alma é uma coisa que nos importa tanto e que nos toca tão profundamente, que é preciso ter perdido todo sentimento para estar na indiferença de saber o que ela é. Todas as nossas ações, todos os nossos pensamentos devem tomar caminhos tão diferentes, conforme haja ou não bens eternos a esperar, que é impossível empregar esforços com senso e raciocínio, senão se regendo pela vista deste plano, que deve ser o nosso primeiro objetivo.”
Em todas as épocas o homem teve por patrimônio comum a noção da imortalidade da alma e procurou apoiar em provas essa ideia consoladora; acreditou achá-la nos usos, nos costumes dos diversos povos, nos relatos dos historiadores, nos cantos dos poetas; sendo anterior a todo sacerdote, a todo legislador, a todo escritor, não tendo saído de nenhuma seita, de nenhuma escola, e existindo nos povos bárbaros como nas nações civilizadas, de onde viria ela senão de Deus, que é a verdade?
Ai! essas provas que o medo do nada criou não são senão esperanças de um futuro construído sobre um areal duvidoso, sobre a areia movediça; e as deduções da lógica mais cerrada jamais chegarão à altura de uma demonstração matemática.
Esta prova material, irrecusável, justa como um princípio divino e como uma adição ao mesmo tempo, acha-se inteira no Espiritismo e não poderia encontrar-se alhures. Considerando-a deste ponto de vista elevado, como uma âncora de misericórdia, como a suprema tábua de salvação, compreende-se facilmente o número de adeptos que este novo altar, inteiramente católico, grupou em torno de seus degraus; porque, não há que se equivocar, é aí e não alhures, que se deve procurar a origem do sucesso que essas novas doutrinas criaram junto a homens que brilham no primeiro plano da eloquência, sagrada ou profana, e cujos nomes gozam de merecida notoriedade nas ciências e nas letras.
O que é, pois, o Espiritismo?
Na sua definição mais ampla, o Espiritismo é a faculdade que possuem certos indivíduos de entrar em relação, por meio de um intermediário ou médium, que não passa de um instrumento em suas mãos, com o Espírito de pessoas mortas e habitando um outro mundo. Esse sistema que, segundo os crentes, se apoia num grande número de testemunhas, oferece uma singular sedução, menos ainda pelos resultados do que por suas promessas.
Nesta ordem de ideias, o sobrenatural não é mais um limite, a morte não é mais uma barreira, o corpo não é mais um obstáculo à alma, que dele se desembaraça após a vida, como durante a vida ela se desembaraça momentaneamente no sonho. Na morte, o Espírito está livre; se for puro, eleva-se nas esferas que nos são desconhecidas; se for impuro, erra em volta da Terra, põe-se em comunicação com o homem, que trai, engana e corrompe. Os espíritas não creem nos bons Espíritos; o clero, conformando-se ao texto da Bíblia, também não crê senão nos maus, e os encontra nesta passagem: “Tomai cuidado, porque o demônio ronda em torno de vós e vos espreita como um leão buscando sua presa, quoerens quem devoret [que busca a quem devorar].”
Assim, o Espiritismo não é uma descoberta moderna. Jesus expulsava os demônios do corpo dos possessos, e Diodoro da Sicília fala aos fantasmas; os deuses lares dos romanos, seus Espíritos familiares, que eram pois?
Mas, então, por que repelir com prevenção e sem exame um sistema, certamente perigoso do ponto de vista da razão humana, mas cheio de esperanças e de consolações? A brucina, sabiamente administrada, é um dos mais poderosos remédios; e porque é um violento veneno em mãos inábeis, é uma razão para proscrevê-la da farmacopeia?
O Sr. Baguenault de Puchesse, n um filósofo e um cristão, de cujo livro faço numerosos empréstimos, porque suas ideias são as minhas, diz no seu belo livro Imortalidade, a propósito do Espiritismo: “Suas práticas inauguram um sistema completo que compreende o presente e o futuro, que traça os destinos do homem, abre-lhe as portas da outra vida e o introduz no mundo sobrenatural. A alma sobrevive ao corpo, pois que aparece e se mostra após a dissolução dos elementos que o compõem. O princípio espiritual se desprende, persiste e, por seus atos, afirma sua existência. Desde então o materialismo é condenado pelos fatos; a vida de além-túmulo se torna um fato certo e por assim dizer palpável; o sobrenatural se impõe à Ciência e, submetendo-se ao seu exame, não lhe permite mais repeli-lo teoricamente e declará-lo, em princípio, impossível.”
O livro que assim fala do Espiritismo é dedicado a uma das luzes da Igreja, a um dos mestres da Academia Francesa, a uma celebridade das letras contemporâneas, que respondeu:
“Um belo livro, sobre um grande assunto, publicado pelo presidente de nossa Academia de Santa-Cruz, será uma honra para vós e para toda a nossa Academia. Talvez não possais escolher uma questão mais alta nem mais importante a estudar na hora presente… Permiti-me, pois, senhor e caríssimo amigo, vos oferecer, pelo belo livro que dedicais à nossa Academia e pelo bom exemplo que nos dais, todas as minhas felicitações e todos os meus agradecimentos, com a homenagem de meu religioso e profundo devotamento.”
Félix, bispo de Orléans. n
Orléans, 28 de março de 1864.
2. — O artigo é assinado por Robert de Salles.
Evidentemente o autor não conhece o Espiritismo senão de maneira incompleta, como o provam certas passagens de seu artigo; todavia, considera-o como coisa muita séria e, salvo algumas exceções, os espíritas não poderão senão aplaudir o conjunto de suas reflexões. Equivoca-se principalmente quando diz que os espíritas não creem nos bons Espíritos, e também na definição que dá como a mais ampla expressão do Espiritismo; é, diz ele, a faculdade que possuem certos indivíduos, de entrar em relação como o Espírito de pessoas mortas.
A mediunidade, ou faculdade de comunicar-se com os Espíritos, não constitui o fundo do Espiritismo, sem o que, para ser espírita, fora preciso ser médium; não passa de um acessório, um meio de observação, e não a ciência, que está toda inteira na doutrina filosófica. O Espiritismo não está mais subordinado aos médiuns do que a Astronomia a uma luneta; e a prova disto é que se pode fazer Espiritismo sem médiuns, como se fez Astronomia muito tempo antes de haver telescópios. A diferença consiste em que, no primeiro caso, se faz ciência teórica, ao passo que a mediunidade é o instrumento que permite assentar a teoria sobre a experiência. Se o Espiritismo se circunscrevesse à faculdade mediúnica, sua importância seria singularmente diminuída e, para muita gente, se reduziria a fatos mais ou menos curiosos.
Lendo esse artigo, pergunta-se se o autor crê ou não no Espiritismo, porque não o expõe, de certo modo, senão como hipótese, mas uma hipótese digna da mais séria atenção. Se for uma verdade, diz ele, é uma coisa sagrada por excelência, que só deve ser tratada com respeito, e cuja exploração não poderia ser perseguida com muita severidade.
Não é a primeira vez que esta ideia é expressa, mesmo pelos adversários do Espiritismo, e é de notar que é sempre o lado pelo qual a crítica julgou pegar a Doutrina em falta, atacando o abuso do tráfico quando encontrou ocasião; é que ela sente que este seria o seu lado vulnerável, e pelo qual poderia acusá-lo de charlatanismo. Eis por que a malevolência se obstina em associá-la aos charlatães, ledores da sorte e outros exploradores da mesma laia, esperando por esse meio enganar e lhe tirar o caráter de dignidade e gravidade, que constitui a sua força. A rebelião contra os Davenport, que tinham julgado poder expor impunemente os Espíritos nos palcos, prestou imenso serviço; em sua ignorância quanto ao verdadeiro caráter do Espiritismo, a crítica da época julgou feri-lo de morte, quando não desacreditou senão os abusos, contra os quais todos os espíritas sinceros sempre protestaram.
Seja qual for a crença do autor, e a despeito dos erros contidos em seu artigo, devemos felicitar-nos por nele ver a questão tratada com a gravidade que o assunto comporta. A imprensa raramente tem ouvido falar dele num sentido tão sério; mas há começo para tudo.
[1] O Voyageur du commerce aparece todos os domingos. – Redação: 3, faubourg Saint-Honoré. † Preço: 22 francos por ano; 12 francos por semestre; 6 francos e 50 por trimestre.
Porque tenha publicado o artigo que se vai ler, que é a expressão do pensamento do autor, nada prejulgamos quanto às suas simpatias pelo Espiritismo, já que só o conhecemos por este número, a nós enviado gentilmente.
[2] [Os Baguenault de Puchesse são uma família de franceses do Saint-Hilaire-Saint-Mesmin † (Loiret), que tiveram dois prefeitos e muitos vereadores na cidade de Orleans, nos séculos XVII e XVIII. Seus diversos ramos foram enobrecidos entre 1695 e 1750.] †
[3] [v.
Félix Dupanloup.]