Apresentação.
(1)
— Preâmbulo. (2)
— Primeira Carta: Sobre o estado da alma após a morte.
(3)
— 2ª Carta. (4)
— Comentário. (5)
— Comunicação de Paulo I. (6)
— 3ª Carta. (7)
— 4ª Carta. (8)
— Carta de um defunto ao seu amigo da Terra sobre o estado dos
Espíritos desencarnados. (9)
— 5ª Carta. (10)
— Carta de um Espírito Bem-aventurado ao seu amigo da Terra
sobre a primeira visão do Senhor. (11)
— 6ª Carta. (12)
— Carta de um defunto ao seu amigo sobre as relações existentes
entre os Espíritos e aqueles que eles amaram na Terra.
(13)
— Comentário: Da importância destas cartas de Lavater.
(14)
— Opinião atual de Lavater sobre o Espiritismo. (15) |
[Revista
de abril.]
7.
TERCEIRA CARTA.
(Continuação. — Vide o número de março de 1868.)
Mui venerada imperatriz,
A sorte exterior de cada alma despojada de seu corpo corresponderá ao seu estado interior, isto é, tudo lhe parecerá tal qual é ela mesma. À boa, tudo parecerá no bem; o mal só aparecerá às almas dos maus. Naturezas amantes cercarão a alma amante; a alma odienta atrairá para si naturezas odientas. Cada alma se verá a si própria refletida nos Espíritos que se lhe assemelham. O bom se tornará melhor e será admitido nos círculos compostos de seres que lhe são superiores; o santo se tornará mais santo pela só contemplação dos Espíritos mais puros e mais santos que ele; o Espírito amante tornar-se-á ainda mais amoroso; mas, também, cada ser malvado tornar-se-á pior unicamente por seu contato com outros seres malévolos. Se já na Terra nada é mais contagioso e mais empolgante que a virtude e o vício, o amor e o ódio, do mesmo modo, no além-túmulo, toda perfeição moral e religiosa, bem como todo sentimento imoral e irreligioso, devem necessariamente tornar-se ainda mais empolgantes e mais contagiosos.
Vós vos tornareis, mui honrada imperatriz, todo amor nos círculos de almas benevolentes.
O que ainda restar em mim de egoísmo, de amor-próprio, de tibieza para o reino e os desígnios de Deus, será inteiramente engolido pelo sentimento de amor, se foi predominante em mim, e se depurará ainda sem cessar, pela presença e o contato dos Espíritos puros e amantes.
Depurados pelo poder de nossa aptidão para amar, largamente exercido neste mundo; purificados ainda mais pelo contato e a irradiação, sobre nós, do amor dos Espíritos puros e elevados, seremos gradualmente preparados para a visão direta do mais perfeito amor, para que não nos possa deslumbrar, nos amedrontar e de nos impedir de o gozar com delícias.
Mas como, venerada imperatriz, um frágil mortal poderia, ousaria fazer uma ideia da contemplação desse amor personificado? E tu, caridade inesgotável! como poderias aproximar-te daquele que bebe em ti só o amor, sem o amedrontar e o deslumbrar?
Penso que no começo aparecerá invisivelmente ou sob uma forma irreconhecível.
Não agiu ele sempre desta maneira? Quem amou mais invisivelmente do que Jesus? Quem, melhor que ele, sabia representar a individualidade incompreensível do desconhecido? Quem, melhor que ele, soube tornar-se irreconhecível, ele que podia fazer-se conhecer melhor que nenhum mortal ou qualquer Espírito imortal? Ele, que todos os céus adoram, veio sob a forma de um modesto operário e conservou até a morte a individualidade de um nazareno. Mesmo depois de sua ressurreição, primeiro apareceu sob uma forma irreconhecível e só depois se fez reconhecer. Penso que conservará sempre esse modo de ação, tão análogo à sua natureza, à sua sabedoria e ao seu amor. É sob a forma de um jardineiro que aparece a Maria no jardim onde ela o procurava e onde já não tinha esperança de o encontrar. Primeiro irreconhecível, só foi reconhecido alguns instantes depois.
Foi também sob uma forma irreconhecível que se aproximou de dois de seus discípulos, que marchavam cheios dele e o aspiravam. Caminhou muito tempo ao lado deles; seus corações queimavam numa chama santa; sentiam a presença de algum ser puro e elevado, mas de outro ser, e não ele; só o reconheceram no momento de partir o pão, no momento de seu desaparecimento e quando, ainda na mesma noite, o viram em Jerusalém. A mesma coisa sucedeu às margens do lago de Tiberíades, e quando, radiante em sua glória deslumbrante, apareceu a Saulo.
Como todas as ações de Nosso Senhor, todas as suas palavras e todas as suas revelações são sublimes e dramáticas! Tudo segue uma marcha incessante que, impelindo sempre para frente, se aproxima cada vez mais de um objetivo que, no entanto, não é o objetivo final. O Cristo é o herói, o centro, a personagem principal, ora visível, ora invisível, nesse grande drama de Deus, tão admiravelmente simples e complicado ao mesmo tempo, que jamais terá fim, embora tendo parecido mil vezes acabado.
Ele aparece sempre, a princípio irreconhecível, na existência de cada um de seus adoradores. Como o amor poderia recusar-se a aparecer ao ser que o ama, no momento exato em que este mais precisa dele?
Sim, tu, o mais humano dos homens, aparecerás aos homens da maneira mais humana! Aparecerás à alma amante a quem escrevo! Tu me aparecerás também, a princípio irreconhecível e depois tu te farás reconhecer por nós. Nós te veremos uma infinidade de vezes, sempre outro e sempre o mesmo, sempre mais belo, à medida que nossa alma se melhorar e jamais pela última vez.
Elevemo-nos mais vezes para esta ideia inebriante que, com a permissão de Deus, tentarei esclarecer mais amplamente em minha próxima carta, e de vos tornar mais comovente, por uma comunicação dada por um defunto.
1º de setembro de 1798.
Lavater. n
8.
QUARTA CARTA.
Em minha carta precedente, mui venerada imperatriz, eu vos prometi enviar a carta de um defunto ao seu amigo da Terra. Ela poderá vos fazer compreender melhor e captar minhas ideias sobre o estado de um cristão após a morte de seu corpo. Tomo a liberdade de juntá-la a esta. Julgai-a do ponto de vista que vos indiquei e dirigi vossa atenção antes para o assunto principal do que para alguns detalhes particulares que o cercam, embora eu tenha razões para supor que estes últimos também encerrem alguma coisa de verdadeiro.
Para a compreensão das matérias que vos exporei na continuação sob essa forma, creio necessário fazer-vos notar que tenho quase certeza de que, malgrado a existência de uma lei geral, idêntica e imutável, de castigo e de felicidade suprema, cada Espírito, segundo o seu caráter individual, não somente moral e religioso, mas mesmo pessoal e oficial, terá sofrimentos a suportar após a sua morte terrestre e gozará de felicidades que não serão apropriadas senão a ele mesmo. A lei geral individualizar-se-á para cada indivíduo em particular, isto é, em cada um produzirá um efeito diferente e pessoal, da mesma forma que um raio de luz, atravessando um vidro colorido, convexo ou côncavo, dele tira, em parte, sua cor e sua direção. Eu queria, pois, que fosse aceito positivamente; que, embora todos os Espíritos bem-aventurados, menos felizes ou sofredores se encontrem sob a mesma lei muito simples de semelhança ou dessemelhança com o mais perfeito amor, deve-se presumir que o caráter substancial, pessoal, individual de cada Espírito constitua para ele um estado de sofrimento ou de felicidade essencialmente diferente do estado de sofrimento ou de felicidade de um outro Espírito. Cada um sofre de uma maneira que difere do sofrimento de um outro, e sente prazeres que um outro não seria capaz de sentir. A cada um dos mundos material e imaterial, Deus e o Cristo se apresentam sob uma forma particular, sob a qual não aparecem a ninguém, exceto a ele. Cada um tem seu ponto de vista que não pertence senão a si próprio. A cada Espírito Deus fala uma língua só por ele compreendida. A cada um se comunica em particular e lhe concede prazeres que só ele está em estado de experimentar e conter.
Esta ideia, que considero uma verdade, serve de base a todas as comunicações seguintes, dadas por Espíritos desencarnados aos seus amigos da Terra.
Sentir-me-ia feliz se soubesse que compreendestes como cada homem, pela formação de seu caráter individual e pelo aperfeiçoamento de sua individualidade, pode preparar para si mesmo prazeres particulares e uma felicidade apropriada só para si.
Como nada se esquece tão depressa, e nada é menos procurado pelos homens que essa felicidade apropriada a cada indivíduo, embora cada um tenha toda a possibilidade de se a proporcionar e dela desfrutar, tomo a liberdade, sábia e venerada imperatriz, de vos rogar com instância que vos digneis analisar com atenção esta ideia que, certamente, não podeis encarar como inútil para a vossa própria edificação e vossa elevação para Deus: Deus colocou-se a si mesmo e colocou o Universo no coração de cada homem.
Todo homem é um espelho particular do Universo e de seu Criador. Envidemos, pois, todos os nossos esforços, mui venerada imperatriz, para mantermos esse espelho tão puro quanto possível, a fim de que Deus aí possa ver a si mesmo e sua mil vezes bela criação, refletidos para sua inteira satisfação.
João Gaspar Lavater.
Zurique, †
14 de setembro de 1798.
9.
CARTA DE UM DEFUNTO AO SEU AMIGO DA TERRA.
(Sobre o estado dos Espíritos desencarnados.)
Enfim, meu bem-amado, me é possível satisfazer, conquanto apenas em parte, meu desejo e o teu, e de te comunicar alguma coisa concernente ao meu estado atual. Desta vez não te posso dar senão pouquíssimos detalhes. No futuro, tudo dependerá do uso que fizeres de minhas comunicações.
Sei que o desejo que experimentas, de ter noções sobre mim, como em geral sobre o estado de todos os Espíritos desencarnados, é muito grande, mas não ultrapassa o meu de te ensinar o que é possível revelar. O poder de amar daquele que amou no mundo material, aumenta inexprimivelmente, quando se torna cidadão do mundo imaterial. Com o amor aumenta também o desejo de se comunicar aos que conheceu, aquilo que ele pode, o que lhe é permitido transmitir.
Devo começar por te explicar, meu bem-amado, a ti que amo cada vez mais, como me é possível te escrever, sem, ao mesmo tempo, poder tocar o papel e conduzir a pena, e como posso falar a ti numa língua inteiramente terrestre e humana que, em meu estado habitual, não compreendo.
Esta só indicação deve servir-te de traço de luz, para poder compreender como deves encarar o nosso estado presente.
Imagina meu estado atual, diferente do anterior, mais ou menos como o estado da borboleta, adejando no ar, difere de seu estado de crisálida. Sou justamente essa crisálida transfigurada e emancipada, já tendo sofrido duas metamorfoses. Exatamente como a borboleta volita em redor das flores, nós voejamos muitas vezes em torno das cabeças dos bons, mas nem sempre. Uma luz, invisível para vós mortais, visível apenas para bem poucos de vós, irradia ou brilha docemente em redor da cabeça de todo homem bom, amante e religioso. A ideia da auréola com que cercam a cabeça dos santos, é essencialmente verdadeira e racional. Simpatizando esta luz com a nossa — todo ser bem-aventurado não o é senão pela luz — o atrai para ela, conforme o grau de sua claridade, que corresponde à nossa. Nenhum Espírito impuro ousa e pode aproximar-se dessa santa luz. Repousando-nos nessa luz, acima da cabeça do homem bom e piedoso, podemos ler incontinenti em seu espírito. Vemo-lo tal qual ele é em realidade. Cada raio que dele sai é para nós uma palavra, por vezes todo um discurso; respondemos aos seus pensamentos. Ele ignora que somos nós que respondemos. Nele excitamos ideias que, sem nossa ação, ele jamais teria estado em condição de as conceber, embora a disposição e a aptidão para as receber sejam inatas em sua alma.
O homem digno de receber a luz torna-se, assim, um órgão útil e muito proveitoso para o Espírito simpático, que deseja comunicar-lhe suas luzes.
Encontrei um Espírito, ou antes, um homem acessível à luz, do qual pude aproximar-me, e é por seu órgão que te falo. Sem sua intermediação, ter-me-ia sido impossível entreter-me contigo humanamente, verbalmente, palpavelmente, numa palavra, escrever-te.
Desta maneira, pois, recebes uma carta anônima da parte de um homem que não conheces, mas que nutre em si uma forte tendência para as matérias ocultas e espirituais. Plano acima dele; posto-me sobre ele, mais ou menos como o mais divino de todos os Espíritos se postou sobre o mais divino de todos os homens, após o seu batismo; suscito-lhe ideias; ele as transmite sob a minha intuição, sob minha direção, por efeito de minha irradiação. Por um leve toque, faço vibrarem as cordas de sua alma de maneira conforme à minha e à sua individualidade. Ele escreve o que desejo fazê-lo escrever; escrevo por seu intermédio; minhas ideias tornam-se as suas. Ele se sente feliz escrevendo. Torna-se mais livre, mais animado, mais rico em ideias. Parece-lhe que vive e plana num elemento mais alegre, mais claro. Marcha lentamente, como um amigo conduzido pela mão de um amigo, e é desta maneira que de mim recebes uma carta. Aquele que escreve supõe-se livre e o é realmente. Não sofre nenhuma violência; é livre como o são dois amigos que, embora andando de braço dado, se conduzem mutuamente.
Tu deves sentir que meu Espírito se acha em relação direta com o teu; concebes o que te digo; escutas os meus mais íntimos pensamentos. É bastante por esta vez. O dia em que ditei esta carta chama-se entre vós 15 de setembro de 1798.
10.
QUINTA CARTA.
Mui venerada imperatriz,
De novo uma cartinha chegada do mundo invisível.
No futuro, se Deus o permitir, as comunicações seguir-se-ão mais de perto.
Esta carta contém uma parte muito pequena do que pode ser dito a um mortal, sobre a aparição e a visão do Senhor. É simultaneamente e sob milhões de formas diferentes, que o Senhor aparece às miríades de seres. Ele quer e se multiplica ele próprio por suas inúmeras criaturas, individualizando-se, ao mesmo tempo, para cada uma delas em particular.
A vós, imperatriz, ao vosso Espírito de luz, ele aparecerá um dia, como apareceu a Maria Madalena, no jardim do sepulcro. De sua boca divina o ouvireis um dia, quando sentirdes a maior necessidade e quando menos o esperardes, vos chamar por vosso nome Maria. Rabi! respondereis ao seu chamado, penetrada do mesmo sentimento de felicidade suprema que penetrou Madalena, ( † ) e, cheia de adoração, como o apóstolo Tomé, direis: “Meu Senhor e meu Deus!” n
Tivemos pressa em atravessar as noites de trevas para chegar à luz; passamos pelos desertos para alcançar a terra prometida; sofremos as dores do nascimento para renascer para a verdadeira vida.
Que Deus e o vosso Espírito estejam convosco e vosso Espírito.
João Gaspar Lavater.
Zurique, †
13 de novembro de 1798.
11.
CARTA DE UM ESPÍRITO BEM-AVENTURADO.
(Ao seu amigo da Terra sobre a primeira visão do Senhor.)
Caro amigo,
De mil coisas com que desejaria entreter-te, desta vez não direi senão uma, que te interessará mais que todas as outras. Obtive autorização para o fazer. Os Espíritos nada podem fazer sem uma permissão especial. Vivem sem a sua própria vontade, somente na vontade do Pai celeste, que transmite suas ordens a milhares de seres ao mesmo tempo, como a um só, e responde instantaneamente a uma infinidade de assuntos, a milhares de suas criaturas, que a ele se dirigem.
Como te fazer compreender de que maneira eu vivo o Senhor? Oh! de uma maneira muito diferente daquela que vós, seres ainda mortais, o podeis imaginar.
Depois de muitas aparições, instruções, explicações e prazeres que foram concedidos pela graça do Senhor, certa vez atravessei uma região paradisíaca, com cerca de doze outros Espíritos, que tinham subido, mais ou menos pelos mesmos degraus da perfeição que eu. Planamos, volitamos um ao lado do outro, em doce e agradável harmonia, como que formando uma leve nuvem, e parecia que experimentávamos o mesmo arrastamento, a mesma propensão para um objetivo muito elevado. Pressionávamos cada vez mais um contra o outro. À medida que avançávamos, tornávamo-nos cada vez mais íntimos, mais livres, mais alegres, mais prazenteiros e cada vez mais aptos a gozar, e dizíamos: Oh! como é bom e misericordioso Aquele que nos criou! Aleluia ao Criador! foi o amor que nos criou! Aleluia ao Ser amante! Animados por tais sentimentos, prosseguimos nosso voo e nos detivemos ao pé de uma fonte.
Aí sentimos a aproximação de uma brisa leve. Ela não trazia nem um homem, nem um anjo; e, contudo, o que avançava para nós tinha qualquer coisa de tão humano, que atraiu toda a nossa atenção. Uma luz resplandecente, de certo modo semelhante à dos Espíritos bem-aventurados, mas não a ultrapassando, nos inundou. “Aquele também é dos nossos!” pensamos simultaneamente e como por intuição. Ela desapareceu, e a princípio pareceu-nos que estávamos privados de alguma coisa. “Que ser particular! dissemo-nos; que atitude real! e, ao mesmo tempo, que graça infantil! que amenidade e que majestade!”
Enquanto assim falávamos a nós mesmos, subitamente uma forma graciosa nos apareceu, saindo de um bosque encantador, e nos saudou amigavelmente. O recém-chegado não se assemelhava à aparição precedente, mas também tinha algo de superior, algo elevado e, ao mesmo tempo, de inexprimivelmente simples. “Sede bem-vindos, irmãos e irmãs!” disse ele. Respondemos em uníssono: “Sê bem-vindo tu, o abençoado do Senhor! o céu se reflete em tua face e o amor de Deus irradia de teus olhos.”
— Quem sois? perguntou o desconhecido. — Somos os alegres adoradores do todo-poderoso Amor, respondemos.
— Quem é o todo-poderoso Amor? perguntou-nos com uma graça perfeita.
— Não conheces o todo-poderoso Amor? perguntamos, por nossa vez, ou antes, fui eu quem lhe dirigiu a pergunta, em nome de todos.
— Eu o conheço, disse o desconhecido, com uma voz ainda mais doce.
— Ah! se pudéssemos ser dignos de o ver e ouvir a sua voz! mas não nos sentimos bastante depurados para merecer contemplar diretamente a mais santa pureza.
Em resposta a estas palavras, ouvimos retinir atrás de nós uma voz que nos disse: “Estais lavados de toda mancha, estais purificados. Sois declarados justos por Jesus-Cristo e pelo Espírito do Deus vivo!”
Uma felicidade inexprimível espalhou-se em nós, no momento que, virando-nos na direção de onde partia a voz, queríamos nos precipitar de joelhos para adorar o interlocutor invisível.
Que aconteceu? Cada um de nós ouviu um nome instantaneamente, que jamais tinha ouvido pronunciar, mas que cada um compreendeu e ao mesmo tempo reconheceu ser o seu próprio novo nome, expresso pela voz do desconhecido. Espontaneamente, com a rapidez do relâmpago, nós nos voltamos, como um ser único, para o adorável interlocutor, que nos apostrofou assim, com uma graça indizível: “Encontrastes o que buscáveis. Aquele que me vê, vê também o todo-poderoso Amor. Conheço os meus e os meus me conhecem. Dou às minhas ovelhas a vida eterna e elas não perecerão na eternidade; ninguém poderá arrancá-las de minhas mãos, nem das mãos de meu Pai. Eu e meu Pai somos um!”
Como poderia eu exprimir em palavras a doce e suprema felicidade em que nos expandimos, quando aquele que, a cada momento, se tornava mais luminoso, mais gracioso, mais sublime, estendeu para nós os seus braços e pronunciou as seguintes palavras, que vibrarão eternamente para nós, e que nenhum poder será capaz de fazer desaparecer de nossos ouvidos e de nossos corações: “Vinde aqui, vós, eleitos de meu Pai: herdai do reino que vos foi preparado desde o começo do Universo.” Depois disto, abraçou-nos a todos simultaneamente, e desapareceu. Guardamos silêncio e, sentindo-nos estreitamente unidos para a eternidade, espalhamos, sem nos mover, um no outro, docemente e cheios de uma felicidade suprema. O Ser infinito tornou-se uno conosco e, ao mesmo tempo, nosso tudo, nosso céu, nossa vida no seu sentido mais verdadeiro. Mil vidas novas pareceram nos penetrar. Nossa existência anterior acabou-se para nós; recomeçamos a ser; ressentimos a imortalidade, isto é, uma superabundância de vida e de forças, que trazia a marca da indestrutibilidade.
Enfim, recobramos a palavra. Ah! se eu pudesse te comunicar, ainda que um único som, de nossa alegre adoração!
“Ele existe! nós somos! Por Ele, por Ele só! — Ele é, -seu ser não é senão vida e amor! — Aquele que o vê, vive e ama, é inundado de eflúvios da imortalidade e do amor que emana de sua face divina, de seu olhar cheio de felicidade suprema!
“Nós te vimos, amor todo-poderoso! Tu te mostraste a nós sob a forma humana, Tu, Deus dos deuses! E, contudo, Tu não foste nem homem, nem Deus, Tu Homem-Deus!
“Tu não foste senão amor, todo-poderoso apenas como amor! — Tu nos sustentaste por tua onipotência, para impedir que a força, mesmo atenuada por teu amor, nela nos absorvesse.
“És Tu, és Tu? — Tu, que todos os céus glorificam; Tu, oceano de beatitude; — Tu, onipotência; — Tu, que outrora te encarnando nos ossos humanos, levaste os fardos da Terra e, banhado de sangue, suspenso a uma cruz, Te fizeste cadáver?
“Sim, és Tu, — Tu, glória de todos os seres! Ser diante do qual se inclinam todas as naturezas, que desapareciam diante de Ti, para serem chamadas a viver em Ti!
“Num dos teus raios encontra-se a vida de todos os mundos, e de teu hálito não jorra senão o amor!”
Isto, caro amigo, não passa de uma bagatela mínima, caída na terra, da mesa cheia de uma felicidade inefável de que me nutria. Aproveita-a, e logo te será dado mais. -Ama,.e serás amado. — Só o amor pode aspirar à felicidade suprema: — Só o amor pode dar a felicidade, mas unicamente aos que amam.
Oh! meu querido, é porque amas que posso aproximar-me de ti, comunicar-me contigo e te conduzir mais depressa à fonte da vida.
Amor! Deus e o céu vivem em ti, tanto quanto vivem na face e no coração de Jesus-Cristo!
Escrevo isto, conforme a vossa cronologia terrestre, em 13 de novembro de 1798.
Makariosenagape.
(Termina no próximo número.)
[1]
[v.
Lavater.]
[2] N. do T.: João, 20:28. Para alguns exegetas da Boa Nova, tais palavras não teriam sido pronunciadas pelo apóstolo Tomé, mas interpoladas no Evangelho de João para justificar o dogma da divindade do Cristo.