Apresentação.
(1)
— Preâmbulo. (2)
— Primeira Carta: Sobre o estado da alma após a morte.(3) — 2ª Carta.(4) — Comentário.(5) — Comunicação
de Paulo I.(6)
— 3ª Carta.(7)
— 4ª Carta.(8)
— Carta de um defunto ao seu amigo da Terra sobre o estado dos
Espíritos desencarnados.(9)
— 5ª Carta.(10)
— Carta de um Espírito Bem-aventurado ao seu amigo da Terra
sobre a primeira visão do Senhor.(11)
— 6ª Carta.(12)
— Carta de um defunto ao seu amigo sobre as relações existentes
entre os Espíritos e aqueles que eles amaram na Terra.(13)
— Comentário: Da importância destas cartas de Lavater.(14)
— Opinião atual de Lavater sobre o Espiritismo.(15) |
1.
[APRESENTAÇÃO.]
Os espíritas são numerosos em São Petersburgo † e contam entre si homens sérios e esclarecidos, que compreendem o objetivo e o elevado alcance humanitário da doutrina. Um deles, que não tínhamos a honra de conhecer, houve por bem nos dirigir um documento, tanto mais precioso para a história do Espiritismo, quanto era desconhecido e toca nas mais altas regiões sociais. Eis o que diz o nosso honrado correspondente, na carta que nos enviou:
“A Biblioteca Imperial de São Petersburgo publicou, em 1858, num pequeno número de exemplares, uma coletânea de cartas inéditas do célebre fisionomista Lavater. Essas cartas, até então desconhecidas na Alemanha, foram dirigidas à imperatriz Maria da Rússia, esposa de Paulo I e avó do imperador reinante. A leitura dessas cartas me impressionou pelas ideias filosóficas, eminentemente espíritas, que encerram, sobre as relações que existem entre o mundo visível e o mundo invisível, a mediunidade intuitiva e a influência dos fluidos que a produzem.
“Presumindo que estas cartas, provavelmente desconhecidas na França, poderiam interessar aos espíritas esclarecidos desse país, mostrando-lhes que suas convicções íntimas eram partilhadas pelo eminente filósofo suíço e por duas cabeças coroadas, tomo a liberdade, senhor, de vos remeter anexa a tradução quase literal dessas cartas, que talvez julgueis oportuno inserir em vossa sábia e tão interessante publicação mensal.
“Aproveito a ocasião, senhor, para vos exprimir os sentimentos de minha profunda e perfeita estima, partilhada pelos espíritas sinceros de todos os países, que sabem dignamente apreciar os serviços eminentes que o vosso zelo infatigável prestou ao desenvolvimento científico e à propagação da sublime e tão consoladora Doutrina Espírita. Esta terceira revelação terá por consequência a regeneração, o progresso moral e a consolidação da fé na pobre Humanidade, infelizmente extraviada, e que flutua entre a dúvida e a indiferença, em matéria de religião e de moral.”
W. de F.
Publicamos integralmente o manuscrito do Sr. de F. Sua extensão nos obriga a dele fazer objeto de três artigos.
2.
PREÂMBULO.
No castelo do grão-duque de Pawlowsk, † situado a vinte e quatro quilômetros de Petersburgo, onde o imperador Paulo da Rússia passou os mais felizes anos de sua vida, e que, em consequência, tornou-se a residência favorita da imperatriz Maria, sua augusta viúva, verdadeira benfeitora da humanidade sofredora, acha-se uma seleta biblioteca, fundada pelo casal imperial, na qual, entre muitos tesouros científicos e literários, se encontra um pacote de cartas do próprio punho de Lavater, que ficaram desconhecidas dos biógrafos do célebre fisionomista.
Estas cartas são datadas de Zurique, † em 1798. Dezesseis anos antes, Lavater tivera oportunidade, naquela cidade e em Schaffouse, † de conhecer o conde e a condessa do Nord † (título sob o qual o grão-duque da Rússia e sua esposa viajavam pela Europa), e, de 1796 a 1800, ele mandara à Rússia, endereçada à imperatriz Maria, reflexões sobre a fisionomia, às quais juntava cartas, tendo por objetivo descrever o estado da alma depois da morte.
Nessas cartas, Lavater toma como ponto de partida que uma alma, tendo deixado seu corpo, inspira suas ideias a um homem de sua escolha, apto para a luz (lichtfaehing) e lhe faz escrever cartas dirigidas a um amigo que ficou na Terra, para o instruir sobre o estado em que ela se encontra.
Estas cartas inéditas de Lavater foram descobertas durante uma verificação na biblioteca grão-ducal, pelo doutor Minzloff, bibliotecário da biblioteca imperial de Petersburgo, e por ele postas em ordem. Com a autorização do detentor atual do castelo de Pawlowsk, Sua Alteza Imperial o grão-duque Constantino, † e sob os auspícios esclarecidos do barão de Korff, atualmente membro do conselho do império, antigo diretor-chefe dessa biblioteca, que lhe deve seus mais notáveis melhoramentos, elas foram publicadas em 1858, em Petersburgo, sob o título: Johann-Kaspar Lavater’s briefe, an die Kaïserin Maria Feodorowna, gemahlin kaïser Paul I von Russland (Cartas de João Gaspar Lavater à imperatriz Maria Feodorowna, esposa do imperador Paulo I da Rússia). n Essa carta foi impressa por conta da biblioteca imperial e oferecida em homenagem ao senado da Universidade de Iena, † por ocasião do 300º aniversário de sua fundação.
Essas cartas, em número de seis, apresentam o mais alto interesse, por provarem positivamente que as ideias espíritas e, notadamente, a possibilidade das relações entre o mundo espiritual e o mundo material, já germinavam na Europa há bem setenta anos, e que não só o célebre fisionomista tinha convicção dessas relações, mas era ele próprio o que no Espiritismo se chama médium intuitivo, isto é, um homem que recebia por intuição as ideias dos Espíritos e transcrevia suas comunicações. As cartas de um amigo morto, que Lavater juntara às suas, são eminentemente espíritas. Elas desenvolvem e esclarecem de maneira tão engenhosa quanto espiritual, as ideias fundamentais do Espiritismo, e vêm apoiar tudo o que esta doutrina oferece de mais racional, de mais profundamente filosófico, religioso e consolador para a Humanidade. As pessoas que não conhecem o Espiritismo poderão supor que essas cartas de um Espírito ao seu amigo da Terra não passam de uma forma poética, que Lavater dá às suas próprias ideias espiritualistas; mas os que são iniciados nas verdades do Espiritismo as encontrarão nessas comunicações, tais como foram e ainda são dadas pelos Espíritos, por meio de diferentes médiuns intuitivos, audientes, escreventes, falantes, extáticos, etc. Não é natural supor que Lavater tenha podido conceber ele próprio e expor com tão grande lucidez e tanta precisão, ideias abstratas e tão elevada sobre o estado da alma após a morte, e seus meios de comunicação com os Espíritos encarnados, isto é, os homens. Essas ideias não podiam provir senão dos próprios Espíritos desencarnados. É incontestável que um deles, tendo guardado sentimentos de afeição por um amigo ainda habitante da Terra, lhe deu, por intermédio de um médium intuitivo (talvez o próprio Lavater fosse esse amigo), noções sobre esse assunto, para o iniciar nos mistérios do túmulo, na medida do que é permitido a um Espírito desvendar aos homens, e que estes estejam em estado de compreender.
Damos aqui a tradução exata das cartas de Lavater, escritas em alemão, bem como das comunicações de além-túmulo, que dirigia à imperatriz Maria, conforme o desejo que esta havia manifestado, de conhecer as ideias do filósofo alemão sobre o estado da alma após a morte do corpo.
3.
PRIMEIRA CARTA.
Sobre o Estado da alma Após a Morte.
IDEIAS GERAIS.
Mui venerada Maria da Rússia!
Dignai-vos conceder-me permissão para não vos dar o título de majestade, que vos é devido da parte do mundo, mas que não se harmoniza com a santidade do assunto que desejastes que eu vos entretivesse, e a fim de vos poder escrever com franqueza e inteira liberdade.
Desejais conhecer algumas das minhas ideias sobre o estado das almas após a morte.
A despeito do pouco que é dado saber sobre isto ao mais douto entre nós, já que nenhum dos que partiram para o país desconhecido de lá voltou, o homem pensante, o discípulo d’Aquele que do céu desceu entre nós, está, no entanto, em condições de dizer, sobre isto, tanto quando nos é necessário saber para nos encorajar, nos tranquilizar e nos fazer refletir.
Desta vez limitar-me-ei a vos expor, a respeito, algumas das ideias mais gerais.
Penso que deve existir uma grande diferença entre o estado, a maneira de pensar e de sentir de uma alma separada de seu corpo material, e o estado no qual se encontrava durante sua união com este último. Essa diferença deve ser, no mínimo, tão grande quanto a que existe entre o estado de um recém-nascido e o de uma criança vivendo no seio materno.
Estamos ligados à matéria, e são os nossos sentidos e os nossos órgãos que dão à nossa alma as percepções e o entendimento.
Conforme a diferença que exista entre a construção do telescópio, do microscópio e dos óculos, de que se servem os nossos olhos para ver, os objetos que olhamos por seu intermédio nos aparecem sob uma forma diferente. Nossos sentidos são os telescópios, os microscópios e os óculos necessários à nossa vida atual, que é uma vida material.
Creio que o mundo visível deve desaparecer para a alma separada de seu corpo, assim como lhe escapa durante o sono. Ou então o mundo, que a alma entrevia durante sua existência corporal, deve aparecer à alma desmaterializada sob um aspecto completamente diverso.
Se, durante algum tempo, ela pudesse ficar sem corpo, o mundo material não existiria para ela. Mas se ela for, logo depois de haver deixado o seu corpo — o que acho muito verossímil — provida de um corpo espiritual, que teria retirado do seu corpo material, o novo corpo lhe dará indispensavelmente uma percepção muito diferente das coisas. Se, o que facilmente pode acontecer às almas impuras, esse corpo ficasse, durante algum tempo, imperfeito e pouco desenvolvido, todo o Universo apareceria à alma num estado de perturbação, como se fosse visto através de um vidro fosco.
Mas se o corpo espiritual, o condutor e o intermediário de suas novas impressões, fosse ou se tornasse mais desenvolvido ou mais bem organizado, o mundo da alma lhe pareceria, conforme a natureza e as qualidades de sua harmonia e de sua perfeição, mais regular e mais belo.
Os órgãos se simplificam, adquirem harmonia entre sei e são mais apropriados à natureza, ao caráter, às necessidades e às forças da alma, conforme ela se concentre, se enriqueça e se depure aqui na Terra, perseguindo um só objetivo e agindo num sentido determinado. Existindo na Terra, a alma aperfeiçoa, ela mesma, as qualidades do corpo espiritual, do veículo no qual continuará a existir após a morte de seu corpo material, e que lhe servirá de órgão para conceber, sentir e agir em sua nova existência. Esse novo corpo, apropriado à sua natureza íntima, a tornará pura, amante, vivaz e apta a mil belas sensações, impressões, contemplações, ações e gozos.
Tudo o que se pode, e tudo o que ainda não podemos dizer sobre o estado da alma após a morte, sempre se baseará neste único axioma, permanente e geral: O homem recolhe o que semeou.
É difícil encontrar um princípio mais simples, mais claro, mais abundante e mais próprio a ser aplicado a todos os casos possíveis.
Existe uma lei geral da Natureza, estreitamente ligada, mesmo idêntica, ao princípio acima mencionado, concernente ao estado da alma após a morte, uma lei equivalente em todos os mundos, em todos os estados possíveis, no mundo material e no mundo espiritual, visível e invisível, a saber:
“O que se assemelha tende a se reunir. Tudo o que é idêntico se atrai reciprocamente, se não existirem obstáculos que se oponham a sua união.”
Toda a doutrina sobre o estado da alma após a morte é baseada neste simples princípio. Tudo quanto chamamos ordinariamente: julgamento prévio, compensação, felicidade suprema, danação, pode ser explicado desta maneira: “Conforme semeaste o bem em ti mesmo, nos outros e fora de ti, pertencerás à sociedade dos que, como tu, semearam o bem em si mesmos e fora de si; gozarás da amizade daqueles com os quais te assemelhaste em sua maneira de semear o bem.”
Cada alma separada de seu corpo, livre das cadeias de matéria, aparece a si mesma tal qual é na realidade. Todas as ilusões, todas as seduções que a impedem de se reconhecer e de ver suas forças, suas fraquezas e seus defeitos desaparecerão. Experimentará uma tendência irresistível para se dirigir às almas que se lhe assemelham e afastar-se das que lhe são desiguais. Seu próprio peso interior, como obedecendo à lei da gravitação, a atrairá para abismos sem fundo (pelo menos é assim que lhe parecerá); ou, então, conforme o grau de sua pureza, ela se precipitará nos ares, como uma fagulha levada por sua leveza, e passará rapidamente pelas regiões luminosas, fluídicas e etéreas.
A alma se dá a si mesma um peso que lhe é próprio, por seu sentido interior; seu estado de perfeição a impele para frente, para trás ou para o lado; seu próprio caráter, moral ou religioso, lhe inspira certas tendências particulares. O bom se elevará para os bons; a necessidade que sente do bem o atrairá para eles. O mau é forçosamente impelido para os maus. A queda precipitada das almas grosseiras, imorais e irreligiosas para as almas que se lhes assemelham, será também tão rápida e inevitável quanto a queda de uma bigorna num abismo, quando nada a detém.
Por ora é bastante.
Zurique, † 1º de agosto de 1798.
João Gaspar Lavater. n
(Com a permissão de Deus, continua semanalmente.)
4.
SEGUNDA CARTA.
As necessidades experimentadas pelo espírito humano, durante seu exílio no corpo material, continuam as mesmas, logo depois que o deixou. Sua felicidade consistirá na possibilidade de poder satisfazer suas necessidades espirituais; sua danação, na impossibilidade de poder satisfazer seus apetites carnais, num mundo menos material.
As necessidades não satisfeitas constituem a danação; sua satisfação constitui a felicidade suprema.
Gostaria de dizer a cada homem: “Analisa a natureza de tuas necessidades; dá-lhes o seu verdadeiro nome; pergunta a ti mesmo: são admissíveis num mundo menos material? Podem aí encontrar sua satisfação?” E se, verdadeiramente, aí pudessem ser contentadas, seriam as que um Espírito intelectual e imortal possa honestamente confessar e desejar a sua satisfação, sem sentir uma profunda vergonha diante de outros seres intelectuais e imortais como ele?
A necessidade que sente a alma de satisfazer as aspirações espirituais de outras almas imortais; de lhes proporcionar os puros deleites da vida, de lhes inspirar a segurança de sua existência após a morte, de cooperar assim no grande plano da sabedoria e do amor supremos, o progresso adquirido por essa nobre atividade, tão digna do homem, assim como o desejo desinteressado do bem, dão às almas humanas a aptidão, e, portanto, o direito de serem recebidas nos grupos e nos círculos de Espíritos mais elevados, mais puros, mais santos.
Mui veneranda imperatriz, quando temos a íntima persuasão de que a necessidade mais natural e, no entanto, muito rara, que possa nascer numa alma imortal: a de Deus, a necessidade de dele se aproximar cada vez mais, sob todos os respeitos e de se assemelhar ao Pai invisível de todas as criaturas, é uma vez tornada predominante em nós, oh! então não devemos experimentar o menor receio concernente ao nosso estado futuro, quando a morte nos tiver desembaraçado de nosso corpo, esse muro espesso que nos ocultava Deus. Esse corpo material, que nos separava dele, está caído, e o véu que nos escondia a vista do mais santo dos santos está rasgado. O Ser adorável, que amávamos acima de tudo, com todas as suas graças resplandecentes, terá então livre acesso em nossa alma dele faminta e o recebendo com alegria e amor.
Logo que o amor sem limites por Deus tiver triunfado em nossa alma, em consequência dos esforços que ela tiver feito para dele se aproximar e a ele se parecer em seu amor vivificante da Humanidade, e por todos os meios que tinha em seu poder, essa alma, desembaraçada de seu corpo, passando necessariamente por muitos degraus para se aperfeiçoar sempre mais, subirá com uma facilidade e uma rapidez espantosas para o objeto de sua mais profunda veneração e seu amor ilimitado, para a fonte inesgotável e a única suficiente para a satisfação de todas as suas necessidades, de todas as suas aspirações.
Nenhum olho fraco, doente ou velado está em condições de olhar o Sol de frente; do mesmo modo, nenhum Espírito não depurado, ainda envolto no nevoeiro grosseiro de uma vida exclusivamente material, mesmo no momento de sua separação do corpo, não estaria em condições de suportar a vista do mais puro sol dos Espíritos, em sua claridade resplandecente, seu símbolo, seu foco, de onde escapam essas ondas de luz, que penetram mesmo os seres finitos do sentimento de sua infinidade.
Quem melhor que vós, senhora, sabe que os bons não são atraídos senão pelos bons! Que só as almas elevadas sabem fruir da presença de outras almas de escol! Todo homem que conhece a vida e os homens, aquele que muitas vezes foi obrigado a encontrar-se na companhia desses lisonjeadores desonestos, efeminados, baldos de caráter, sempre apressados em revelar e fazer valer a palavra mais insignificante, a menor alusão daqueles cujo favor disputam, ou então desses hipócritas, que procuram astuciosamente penetrar as ideias alheias, para em seguida as interpretar num sentido absolutamente contrário, aquele, digo eu, deve saber quanto essas almas vis e escravas se embaraçam subitamente a uma simples palavra pronunciada com firmeza e dignidade; quanto um só olhar severo os confunde, fazendo-lhes sentir profundamente que são conhecidos e julgados em seu justo valor! Como então se lhes torna penoso suportar a presença de um homem honesto! Nenhuma alma manhosa e hipócrita é feliz ao contato de uma alma proba e enérgica, que a penetre. Cada alma impura, tendo deixado o seu corpo, deve, segundo sua natureza íntima, como impulsionada por uma força oculta e invencível, fugir à presença de todo ser puro e luminoso, para lhe ocultar, tanto quanto possível, a vista de suas numerosas imperfeições, que não está em estado de ocultar a si própria, nem aos outros.
Mesmo que não tivesse sido escrito: “Ninguém, sem ser depurado, poderá ver o Senhor”; estaria perfeitamente na ordem das coisas. Uma alma impura se acha numa impossibilidade absoluta de entrar em qualquer relação com uma alma pura, nem de sentir por ela a menor simpatia. Uma alma assustada pela luz não pode, por isto mesmo, ser atraída para a fonte da luz. A claridade, privada de toda obscuridade, deve queimá-la como um fogo devorador.
E quais são as almas, senhora, que chamamos impuras? Penso que são aquelas nas quais o desejo de se depurarem, de se corrigirem e de se aperfeiçoarem jamais predominou. Penso que são aquelas que não estão submetidas ao princípio elevado do desinteresse em todas as coisas; as que se elegem como centro único de todos os seus desejos e de todas as suas ideias; as que se olham como o objeto de tudo o que está fora delas, que não buscam senão o meio de satisfazer suas paixões e seus sentidos; enfim, aquelas nas quais reinam o egoísmo, o orgulho, o amor-próprio e o interesse pessoal, que querem servir a dois mestres que se contradizem, e isto simultaneamente.
Penso que semelhantes almas, após a separação de seus corpos, devem achar-se no miserável estado de uma horrível contemplação de si mesmas; ou então, o que dá no mesmo, do desprezo profundo que sentem por si próprias, e serem arrastadas por uma força irresistível para a horrorosa sociedade de outras almas egoístas, condenando-se elas próprias incessantemente.
É o egoísmo que produz a impureza da alma e a faz sofrer. Ele é combatido em todas as almas humanas por alguma coisa que lhe é contrário, algo de puro, de divino: o sentimento moral. Sem esse sentimento, o homem não é capaz de nenhum prazer moral, de nenhuma estima, de nenhum desprezo por si mesmo, não compreendendo nem o céu, nem o inferno. Esta luz divina lhe torna insuportável toda obscuridade que descobre em si, e é a razão pela qual as almas delicadas, as que possuem o senso moral, sofrem mais cruelmente quando o egoísmo delas se apodera e subjuga esse sentimento.
Da concordância e da harmonia que subsistem no homem, entre ele próprio e a sua lei interior dependem a sua pureza, a sua aptidão para receber a luz, sua felicidade, seu céu, seu Deus. Seu Deus lhe parece na sua semelhança consigo mesmo. Àquele que sabe amar, Deus aparece como o supremo amor, sob mil formas amantes. Seu grau de felicidade e sua aptidão a tornar felizes os outros são proporcionados ao princípio do amor que nele reina. Aquele que ama com desinteresse fica em harmonia incessante com a fonte de todo amor e com todos os que aí bebem o amor.
Tratemos de conservar em nós o amor em toda a sua pureza, senhora, e seremos sempre arrastados por ele para as almas mais amantes. Purifiquemo-nos todos os dias, cada vez mais, das manchas do egoísmo, e, então ainda que tivéssemos de deixar este mundo hoje mesmo ou amanhã, devolvendo à terra o nosso invólucro mortal, nossa alma tomará o seu voo com a rapidez do relâmpago para o modelo de todos os que amam, e se reunirá a eles com uma felicidade inexprimível.
Nenhum de nós pode saber em que se tornará sua alma após a morte do corpo e, no entanto, estou plenamente persuadido de que o amor depurado deve necessariamente dar ao nosso Espírito, liberto do corpo, uma liberdade sem limites, uma existência cêntupla, um gozo contínuo de Deus, e um poder ilimitado para tornar felizes todos os que estão aptos para desfrutar da felicidade suprema.
Oh! como é incomparável a liberdade moral do Espírito despojado de seu corpo! com que leveza a alma do ser amante, cercada de uma luz resplandecente, efetua a sua ascensão! Como a ciência infinita, como a força de se comunicar aos outros, se tornam o seu apanágio! Quanta luz jorra dela mesma! Que vida anima todos os átomos de que é formada! Torrentes de gozos se lançam de todos os lados ao seu encontro, para satisfazer suas necessidades mais puras e mais elevadas! Legiões inumeráveis de seres amantes lhe estendem os braços! Vozes harmoniosas se fazem ouvir nesses coros numerosos e radiantes de alegria e lhe dizem: “Espírito de nosso Espírito! Coração de nosso coração! Amor bebido na fonte de todo amor! Alma amante, tu nos pertences a nós todos, e nós somos todos de ti! Cada um de nós é teu e tu pertences a cada um de nós. Deus é amor e Deus é nosso. Estamos todos cheios de Deus e o amor encontra sua felicidade na felicidade de todos.”
Desejo ardentemente, mui venerada imperatriz, que vós, vosso nobre e generoso esposo, o imperador, tão voltados um e outro para o bem, e eu convosco, jamais possamos nos tornar estranhos ao amor que é Deus e homem ao mesmo tempo; que nos seja concedido nos preparamos para os gozos, por nossas ações, nossas preces e nossos sofrimentos, aproximando-nos daquele que se deixou pregar na cruz do Gólgota.
João Gaspar Lavater.
Zurique, † 18 de agosto de 1798.
(Continua proximamente, se Deus o permitir.)
[COMENTÁRIO.]
5. — Já se pode ver em que ordem de ideias Lavater escrevia à imperatriz Maria, e até que ponto possuía a intuição dos princípios do Espiritismo moderno. Poder-se-á julgá-lo melhor ainda pelo complemento dessa correspondência notável. Esperando as reflexões com que a seguiremos, cremos dever, desde já, fazer notar um fato importante: é que para sustentar uma correspondência sobre semelhante assunto com a imperatriz, era preciso que esta partilhasse dessas ideias, e várias circunstâncias não permitem duvidar que o mesmo se passava com o czar, seu esposo. Era a pedido dela, ou melhor, a pedido de ambos, que Lavater escrevia, e o tom de suas cartas prova que ele se dirigia a pessoas convictas. Como se vê, as crenças espíritas, nas altas regiões, não datam de hoje. Aliás, pode-se ver, na Revista de abril de 1866, o relato de uma aparição tangível de Pedro, o Grande, a esse mesmo Paulo I.
6. — Lidas na Sociedade de Paris, † as cartas de Lavater provocaram uma conversação a propósito. Paulo I, sem dúvida atraído pelo pensamento que na ocasião lhe era dirigido, manifestou-se espontaneamente e sem evocação, por um dos médiuns, ao qual ditou a seguinte comunicação.
[COMUNICAÇÃO DE PAULO I.]
(Sociedade de Paris, 7 de fevereiro de 1868 – Médium: Sr. Leymarie.)
O poder é coisa pesada, e os aborrecimentos que deixa impressionam dolorosamente a nossa alma! Os dissabores são contínuos; é preciso conformar-se aos hábitos, às velhas instituições, ao preconceito, e Deus sabe quanta resistência é necessária para se opor a todos os apetites que vêm bater no trono, como ondas tumultuosas. Assim, que felicidade quando, deixando um instante essa túnica de Nessus, chamada realeza, a gente possa recolher-se a um lugar pacífico, a fim de poder repousar em paz, longe do ruído e do tumulto das ambições!
Minha cara Maria gostava da calma. Natureza sólida, doce, resignada, amante, teria preferido o esquecimento das grandezas para se devotar completamente à caridade, para estudar as altas questões filosóficas que eram da alçada de suas faculdades. Como ela, eu gostava desses recreios intelectuais; eram um bálsamo para as minhas feridas de soberano, uma força nova para me guiar no dédalo da política europeia.
Lavater, esse grande coração, esse grande Espírito, esse irmão predestinado, nos iniciava em sua sublime doutrina; suas cartas, que hoje possuís, eram por nós esperadas com ansiedade febril. Tudo o que elas encerram eram a miragem dos nossos ideais pessoais; líamos essas cartas queridas com uma alegria infantil, felizes por depor a nossa coroa, a sua gravidade, a sua etiqueta, para discutir os direitos da alma, sua emancipação e seu curso divino para o eterno.
Todas essas questões, hoje muito ardentes, nós as aceitamos há setenta anos; elas faziam parte de nossa vida, de nosso repouso. Muitos efeitos estranhos, aparições e ruídos tinham fortificado a nossa opinião a esse respeito. A imperatriz Maria via e ouvia os Espíritos; por eles ela tinha sabido dos acontecimentos passados a grandes distâncias. Um príncipe Lopoukine, † morto em Kiew, † a várias centenas de léguas, tinha vindo nos anunciar a sua morte, os incidentes que tinham precedido a sua partida, a expressão de suas últimas vontades. A imperatriz tinha escrito, ditado pelo Espírito de Lopoukine, e só vinte dias depois se ficou sabendo na corte de todos os detalhes que possuíamos. Foram para nós uma confirmação estrondosa, e também a prova de que Lavater e nós éramos iniciados nas grandes verdades.
Hoje, conhecemos melhor, por vós, a Doutrina cuja base alargastes. Viremos vos pedir alguns instantes e vos agradecer antecipadamente, se vos dignardes escutar Maria da Rússia e aquele que teve o privilégio de a ter por companheira.
Paulo I. n
[1] [Briefe an die Kaiserin Maria Feodorowna, Gemahlin Kaiser Pauls I. von … Johann Caspar Lavater - Google Books.]
[2] [v.
João
Gaspar Lavater.]
[3] [v.
Paulo
I da Rússia.]