1. — No número das curiosidades atraídas a Paris † pela Exposição, † uma das mais estranhas é seguramente a dos exercícios executados pelos árabes da tribo dos Aïssaouas. O Monde illustré, de 19 de outubro de 1867, dá uma relação, acompanhada de vários desenhos das diversas cenas que o autor do artigo testemunhou na Argélia. Começa assim o seu relato:
“Os Aïssaouas n formam uma seita religiosa muito espalhada na África e, sobretudo, na Argélia. Não conhecemos o seu objetivo; dizem que sua fundação remonta a Aïssa [Muhammad Ben Aïssâ (1465–1526)], o escravo favorito do Profeta; pretendem outros que sua confraria foi fundada por Aïssa, piedoso e sábio marabu do século dezesseis. Seja como for, os Aïssaouas sustentam que o seu piedoso fundador lhes dá o privilégio de serem insensíveis ao sofrimento.”
2. — Tiramos do Petit Journal, de 30 de setembro de 1867, o relato de uma das sessões que uma companhia de Aïssoua deu em Paris, durante a Exposição, primeiro no teatro do Campo de Marte, † depois na sala da arena atlética da rua Le Peletier. † Sem dúvida a cena não tem o caráter imponente e terrível das que se realizam nas mesquitas, cercadas pelo prestígio das cerimônias religiosas; mas, à parte algumas nuanças de detalhes, os fatos são os mesmos e os resultados idênticos, e isto é que é essencial. Aliás, tendo-se as coisas passado em plena Paris, aos olhos de numeroso público, o relato não pode ser suspeito de exagero. É o Sr. Timothée Trimm † quem fala:
“Confesso mesmo que, ontem à noite, vi coisas que deixam muito para trás os irmãos Davenport e os pretensos milagres do magnetismo. Os prodígios se dão numa pequena sala, ainda não classificada na hierarquia dos espetáculos. Isto se passa na arena atlética da rua Le Peletier. Sem dúvida, eis porque se trata tão pouco dos feiticeiros, dos quais falo hoje.
“É evidente que tratamos com iluminados, porque eis vinte e seis árabes que se agacham, servindo-se de castanholas de ferro para acompanhar seus cantos.
“Do corpo de balé muçulmano saiu, em primeiro lugar, um jovem árabe que tomou um carvão aceso. Não suspeitei que pudesse ser um carvão de calor fictício, preparado de propósito, porque senti o seu ardor quando ele passou em minha frente, e queimou o soalho, quando escapou das mãos que o seguravam. O homem tomou esse carvão ardente; colocou-o na sua boca com gritos horríveis e ali o conservou.
“Para mim é evidente que esses selvagens Aïssaouas são verdadeiros convulsionários maometanos. No século passado houve os convulsionários de Paris. Os Aïssaouas da rua Le Peletier certamente acharam essa curiosa descoberta do prazer, da volúpia e do êxtase na mortificação corporal.
“Théophile Gautier, com seu estilo inimitável, descreveu as danças desses convulsionários árabes. Eis o que dizia no Moniteur de 29 de julho último:
“O primeiro interlúdio de dança era acompanhado por três grandes caixas e três oboés, tocando em modo menor uma cantilena de uma melancolia nostálgica, sustentada por esses ritmos implacáveis, que acabam se apoderando de nós e dão vertigem. Dir-se-ia uma alma lamentosa, que a fatalidade força a marchar com um passo sempre igual para um fim desconhecido, mas que se pressente doloroso.
“Logo se levantou uma dançarina, com esse ar oprimido que têm as dançarinas orientais, como uma morta que despertasse de um encantamento mágico e, por imperceptíveis deslocamentos dos pés aproximou-se do proscênio; uma de suas companheiras juntou-se a ela e começaram, animando-se pouco a pouco, sob a pressão da medida, essas torções de ancas, essas ondulações do torso, esses balanços de braços agitando lenços de seda raiados de ouro e essa pantomima languidamente voluptuosa, que forma o fundo da dança das bailarinas orientais. Levantar a perna para uma pirueta ou um passo de dança seria, aos olhos dessas dançarinas, o cúmulo da indecência.
“No fim, todo o elenco tomou parte, e notamos, entre outras, uma dançarina de uma beleza selvagem e bárbara, vestida de haiks brancos e penteada com uma espécie de chachia de cordões dobrados. Suas sobrancelhas negras unidas com surmeh à raiz do nariz, sua boca vermelha como um pimentão, em meio à face pálida, davam-lhe uma fisionomia ao mesmo tempo terrível e encantadora; mas a atração principal da noite era a sessão dos Aïssaouas, ou discípulos de Aïssa, a quem o mestre legou o singular privilégio de devorar impunemente tudo o que lhes apresentam.”
“Aqui, para dar a compreender a excentricidade dos nossos convulsionários argelinos, prefiro minha prosa simples e sem arte à fraseologia elegante e sábia do mestre. Eis, então o que vi:
“Chega um árabe; dão-lhe um pedaço de vidro para comer! Ele o toma, põe na boca e o engole inteiro!… Por alguns minutos ouvem-se os seus dentes triturando o vidro. Aparece sangue na superfície dos lábios trêmulos… Engole o pedaço de vidro moído, dançando e se ajoelhando ao som dos tantãs de praxe.
“A este sucede um árabe que traz na mão galhos de figueira da Barbária, † o cacto de longos espinhos. † Cada aspereza da folhagem é como uma ponta acerada. O árabe come essa folhagem picante, como comeríamos uma salada de alface ou de chicória.
“Quando a folhagem mortal de cacto foi ingerida, veio um árabe que dançava com uma lança na mão. Apoiou a lança no olho direito, dizendo versículos sagrados, que bem deveriam compreender os nossos oculistas… e o olho direito saiu completamente da órbita!… Todos os assistentes soltaram um grito de terror!
“Então veio um homem que se deixou amarrar ao corpo por uma corda… vinte homens puxam; ele luta, sente a corda entrar nas carnes; ri e canta durante essa agonia.
“Eis um outro energúmeno diante do qual trazem um sabre turco. Passei os dedos em sua lâmina fina e cortante como a de uma navalha. O homem desata o cinto, mostra seu ventre nu e se deita sobre a lâmina; empurram-na, mas o sabre respeita sua epiderme; o árabe venceu o aço.
“Passo em silêncio os Aïssaouas que comem fogo, colocando os pés descalços sobre um braseiro ardente. Fui ver o braseiro nos bastidores e atesto que é ardente e composto de lenha inflamada. Também examinei a boca dos chamados comedores de fogo. Os dentes estão queimados, as gengivas calcinadas, a abóbada palatina parece ter-se endurecido. Mas é mesmo fogo, todos esses tições que engolem, com contorções de danados, procurando aclimatar-se no inferno…, que passa por um país quente.
“O que mais me impressionou nessa estranha exibição dos convulsionários da rua Le Peletier foi o comedor de serpentes. Imaginai um homem que abre um cesto. Dez serpentes de cabeça ameaçadora saem sibilando. O árabe apalpa as serpentes, provoca-as e faz que se enrolem ao redor de seu tronco nu. Depois escolhe a maior e mais vivaz e com os dentes morde e lhe arranca a cauda. Então o réptil se retorce nas angústias da dor. Ela apresenta a cabeça irritada ao árabe, que põe a língua à altura do dardo; de repente, com uma dentada, arranca a cabeça da serpente e a come. Ouve-se o crepitar do corpo do réptil nos dentes do selvagem, que mostra através dos lábios ensanguentados o monstro decapitado.
“E, durante esse tempo, a música melancólica dos tantãs continua seu ritmo sagrado. E o devorador de serpentes vai cair, perdido e atordoado, aos pés dos cantores místicos. Até a semana passada tinham feito este exercício com serpentes da Argélia, que se poderiam ter civilizado a caminho mas as serpentes argelinas se acabam, como todas as coisas. Ontem era a estreia das cobras de Fontainebleau; † e o argelino parecia cheio de desconfiança em relação aos nossos répteis nacionais.
“Vá lá quanto ao fogo devorado, suportado ao excesso… na planta dos pés e na palma das mãos… mas o triturador de vidro e o comedor de cobras!… são fenômenos inexplicáveis.
“Nós os tínhamos visto outrora num aduar, nas cercanias de Blidah, diz o Sr. Théophile Gautier, e esse sabá noturno nos deixou lembranças ainda arrepiantes. Os Aïssaouas, depois de excitados pela música, pelo vapor dos perfumes e esse balanço de fera que agita como uma juba sua imensa cabeleira, morderam folhas de cacto, mastigaram carvões ardentes, lamberam pás rubras, engoliram vidro moído, que se ouvia crepitar em seus maxilares, atravessaram a língua e as bochechas com agulhas para lardear, fizeram saltar os olhos fora das órbitas e andaram sobre o fio de uma iatagã de aço de Damasco; um deles, cingido num nó corrediço por sete ou oito homens, parecia cortado em dois, o que não os impediu, acabados os exercícios, de nos vir saudar em nosso camarote à maneira oriental e receber o seu bacchich.
“Das horríveis torturas a que acabam de se submeter, não restava qualquer marca. Que alguém mais sapiente nos explique o prodígio, já que de nossa parte o renunciamos.”
“Sou da opinião de meu ilustre colega e venerado superior na grande arte de escrever, tão difícil quanto a de engolir répteis. Não procuro explicar estas maravilhas; mas era meu dever de cronista não as deixar passar em silêncio.”
3. — Nós mesmos assistimos a uma sessão dos Aïssaouas e podemos dizer que este relato nada tem de exagerado. Vimos tudo o que aí está relatado e ainda mais: um homem atravessar a bochecha e o pescoço com um espeto cortante em forma de lardeadeira. Tendo tocado o instrumento e examinado a coisa bem de perto, convencemo-nos de que não havia nenhum subterfúgio, e que o ferro realmente atravessava as carnes. Mas, coisa bizarra, o sangue não corria e a ferida cicatrizava-se quase instantaneamente. Vimos um outro manter na boca carvões de pedra em brasa, grandes como ovos, cuja combustão ativava pelo sopro, passeando ao redor da sala e lançando chispas. Era fogo tão real que vários espectadores com ele acenderam seus charutos.
Aqui não se trata, pois, de golpes de mágica, de simulacros, nem de malabarismos, mas de fatos positivos; de um fenômeno fisiológico que confunde as mais vulgares noções da Ciência. Entretanto, por mais estranho que seja, não pode ter senão uma causa natural. O que é mais estranho ainda é que a Ciência parece não lhe haver prestado a menor atenção. Como é que sábios, que passam a vida procurando as leis da vitalidade, ficam indiferentes à vista de semelhantes fatos e não buscam suas causas? Julgam-se dispensados de qualquer explicação, dizendo que “são meros convulsionários, como os havia no século passado.” Seja, estamos de acordo. Mas, então, explicai o que se passava com os convulsionários. Já que os mesmos fenômenos se produzem hoje, aos nossos olhos, diante do público, que qualquer um pode ver e tocar, então não era uma comédia. Esses pobres convulsionários, dos quais tanto zombaram, não eram, então, prestidigitadores e charlatães, como o pretenderam? Os mesmos efeitos, repetindo-se à “vontade, por infiéis, em nome de Alá e de Maomé, não são, pois, milagres, como outros pensaram? Dirão que são iluminados; seja, ainda; mas, então, seria preciso explicar o que é ser iluminado. É preciso que a iluminação não seja uma qualidade tão ilusória quanto supõem, desde que seria capaz de produzir efeitos materiais tão singulares; em todo o caso, seria uma razão a mais para o estudar com cuidado. Uma vez que esses efeitos não são milagres, nem jogos de mágica, deve-se concluir que são efeitos naturais, cuja causa é desconhecida, mas que sem dúvida pode ser encontrada. Quem sabe se o Espiritismo, que já nos deu a chave de tantas coisas incompreendidas, não nos dará ainda esta? É o que examinaremos num próximo artigo. [Sobre o mesmo gênero, vide Convulsionários de Saint-Médard e História dos Calvinistas das Cévennes, por Eug. Bonnemère.]
[1] [O Aissawa (também Aïssâwa, Issâwa, Aïssaoua, Issaoua) é uma irmandade religiosa e mística da ordem fundada em Meknès, Marrocos, por Mohamed Ben Aïssa (1465-1526), mais conhecido como o Chaykh Al-Kamil. Os termos Aïssâwiyya (Isâwiyya) e Aïssâwa (Isawa), vem do nome de seu fundador, e designam, respectivamente, a fraternidade (tariqa litt. “Forma”) e seus discípulos (fuqarâ, cantar. Ao faquir, Litt. “Pobres”).] †