1. — Uma obra intitulada Os profetas do passado, n por Barbey d’Aurévilly, encerra o elogio de Joseph de Maistre e de Bonald, porque ficaram ultramontanos durante toda a vida, ao passo que Chateaubriand aí é censurado e Lamennais insultado e apresentado sob aspecto odioso.
A passagem seguinte mostra com que espírito o livro é concebido:
“Neste mundo, onde o espírito e o corpo estão unidos por um mistério indissolúvel, o castigo corporal tem sua razão espiritual de existir, porque o homem não tem a missão de desdobrar a criação. Pois bem! se em vez de queimar os escritos de Lutero, cujas cinzas caíram na Europa como uma semente, tivessem queimado o próprio Lutero, o mundo estaria salvo pelo menos por um século. Queimado Lutero, vão gritar; mas não me atenho essencialmente à fogueira, desde que o erro seja suprimido na sua manifestação do momento e em sua manifestação contínua, isto é, o homem que o disse ou escreveu e que o chama verdade. É muito para os cordeiros da anarquia, que não balem senão a liberdade! Um homem de gênio, o mais positivo que viveu desde Maquiavel e que absolutamente não era católico, mas, ao contrário, um tanto liberal, dizia, com a brutalidade de uma decisão necessária: “Minha política é matar dois homens, quando necessário, para salvar três.” Ora, matando Lutero, não são três homens que se salvariam à custa de dois: eram milhares de homens à custa de um só. Aliás, há mais que a economia do sangue dos homens: há o respeito da consciência e da inteligência do gênero humano. Lutero falseava uma e outra. Depois, quando há um ensinamento e uma fé social — era, então, o catolicismo — é preciso defendê-los e protegê-los, sob pena de perecer, um dia ou outro, como sociedade. Daí tribunais e instituições para conhecerem delitos contra a fé e o ensino. A Inquisição é, pois, de necessidade lógica em qualquer sociedade.”
2. — Se os princípios que acabamos de citar não passassem de opinião pessoal do autor dessa obra, não haveria por que se preocupar com muitas outras excentricidades. Mas ele não fala apenas em seu nome, e o partido do qual ele se faz órgão, não as desaprovando, ao menos lhe dá uma adesão tácita. Aliás, não é a primeira vez que, em nossos dias, essas mesmas doutrinas são preconizadas publicamente e é bem certo que elas ainda constituem a opinião de certa classe de pessoas. Se não se comove bastante, é que a sociedade tem muita consciência de sua força para se assustar. Cada um compreende que tais anacronismos prejudicam, antes de tudo, aos que os cometem, porque cavam mais profundamente o abismo entre o passado e o presente; esclarecem as massas e as mantêm despertas.
Como se vê, o autor não disfarça o seu pensamento e não toma precauções oratórias; não vai por quatro caminhos: “Teria sido necessário queimar Lutero; teria sido preciso queimar todos os fautores de heresias, para maior glória de Deus e salvação da religião.” É claro e preciso. É triste para uma religião fundar a sua autoridade e estabilidade em semelhantes expedientes; é mostrar pouca confiança em seu ascendente moral. Se a sua base é a verdade absoluta, deve desafiar todos os argumentos contrários; como o Sol, basta que se mostre para dissipar as trevas. Toda religião que vem de Deus nada tem a temer do capricho nem da malícia dos homens; haure sua força no raciocínio; e se estivesse no poder de um homem derrubá-la, de duas uma: ou não seria obra de Deus, ou esse homem seria mais lógico do que Deus, já que seus argumentos prevaleceriam contra os de Deus.
O autor teria preferido antes queimar Lutero que os seus livros, porque, diz ele, as cinzas destes caíram sobre a Europa como uma semente. É de convir, pois, que os auto-de-fé de livros aproveitam mais à ideia que se quer destruir do que a prejudicam. Eis aí uma grande e profunda verdade constatada pela experiência. Por isso, queimar o homem lhe parece mais eficaz, porque, em sua opinião, é deter o mal na fonte. Mas, então, ele acredita que as cinzas do homem sejam menos fecundas que as dos livros? Refletiu em todos os rebentos que produziram as cinzas de quatrocentos mil heréticos queimados pela Inquisição, sem contar o número muito maior dos que pereceram em outros suplícios? Os livros queimados dão apenas cinzas; mas as vítimas humanas dão sangue, produzindo marcas indeléveis que caem sobre os que o derramam. Foi desse sangue que saiu a febre de incredulidade que atormenta o nosso século, e se a fé se extingue é que a quiseram cimentar pelo sangue, e não pelo amor de Deus. Como amar um Deus que faz queimar os seus filhos? Como crer em sua bondade, se a fumaça das vítimas é incenso que lhe é agradável? Como crer em seu poder infinito, se precisa do braço do homem para fazer prevalecer a sua autoridade pela destruição?
Dirão que isto não é religião, mas abuso. Se tal fosse, com efeito, a essência do Cristianismo, nada haveria a invejar ao paganismo, mesmo quanto aos sacrifícios humanos, e o mundo quase não teria ganho com a troca. Sim, certamente é abuso; mas quando o abuso é obra de chefes que têm autoridade, que dela fazem uma lei e a apresentam como a mais santa ortodoxia, não é de admirar se, mais tarde, que as massas pouco esclarecidas confundam o todo na mesma reprovação. Ora, foram precisamente os abusos que engendraram as reformas, e os que os preconizaram colhem o que semearam.
É de notar que nove décimos das trezentas e sessenta e tantas seitas que dividiram o Cristianismo desde a sua origem tiveram por objetivo aproximar-se dos princípios evangélicos, sendo racional concluir que, se dele não se tivessem afastado, essas seitas não se teriam formado. E com que armas as combateram? Sempre com o ferro, o fogo, as proscrições e as perseguições; tristes e pobres meios de convencer! Foi no sangue que as quiseram abafar. Em falta de raciocínio, a força pôde triunfar dos indivíduos, destruí-los, dispersá-los, mas não pôde aniquilar a ideia. É por isto que, com algumas variantes, nós as vemos reaparecer incessantemente, sob outros nomes ou sob novos chefes.
Como se viu, o autor desse livro é favorável aos remédios heroicos. Entretanto, como teme que a ideia de queimar faça gritar no século em que estamos, declara “não se ater essencialmente à fogueira, contanto que o erro seja suprimido na sua manifestação do momento e na sua manifestação contínua, isto é, o homem que o disse ou escreveu, e que o chama verdade.” Assim, desde que o homem desapareça, pouco lhe importa a maneira. Sabe-se que os recursos não faltam: o fim justifica os meios. Eis para a manifestação do momento; mas, para que o erro seja destruído na sua manifestação contínua, é preciso, necessariamente, que desapareçam todos os aderentes que não tiverem querido render-se de boa vontade. Vê-se que isto nos leva longe. Aliás, se o meio é duro, é infalível para se desembaraçarem de qualquer oposição.
No século em que estamos, tais ideias não podem deixar de ser importações e reminiscências de existências precedentes. Quantos aos cordeiros que balem a liberdade, é ainda um anacronismo, uma lembrança do passado; com efeito, outrora só podiam balar, mas hoje os cordeiros tornaram-se aríetes: não balem mais a liberdade; eles a tomam.
Vejamos, no entanto, se queimando Lutero teriam detido o movimento, do qual ele foi o instigador. O autor não parece muito certo disto, pois diz: “O mundo estaria salvo, ao menos por um século.” Um século de prazo, eis tudo o que teriam ganho! E por quê? Eis a razão.
Se os reformadores só exprimissem as suas ideias pessoais, não reformariam absolutamente nada, porque não encontrariam eco. Um homem só é impotente para agitar as massas se estas forem inertes e não sentirem em si vibrar alguma fibra. É de notar que as grandes renovações sociais jamais chegam bruscamente; como as erupções vulcânicas, são precedidas por sintomas precursores. As ideias novas germinam, estão em efervescência numa porção de cabeças; a sociedade é agitada por uma espécie de estremecimento, que a põe à espera de alguma coisa.
É nesses momentos que surgem os verdadeiros reformadores, que assim se veem como representantes, não de uma ideia individual, mas de uma ideia coletiva, vaga, à qual o reformador dá uma forma precisa e concreta, e só triunfa porque encontra espíritos prontos a recebê-la. Tal era a posição de Lutero. Mas Lutero não foi o primeiro, nem o único promotor da reforma. Antes dele houve apóstolos como Wicklef, João Huss, Jerônimo de Praga; estes dois últimos foram queimados por ordem do concílio de Constança; os hussitas, perseguidos com rigor após uma guerra encarniçada, foram vencidos e massacrados. Destruíram os homens, mas não a ideia, que foi retomada mais tarde sob outra forma e modificada em alguns detalhes por Lutero, Calvino, Zwingle, etc., donde é permitido concluir que, se tivessem queimado Lutero, isto para nada teria servido e nem mesmo dado um século de prazo, porque a ideia da reforma não estava somente na cabeça de Lutero, mas na de milhares de cabeças, de onde deveriam sair homens capazes de a sustentar. Teria sido apenas um crime a mais, sem proveito para a causa que o tivesse provocado; tanto isto é verdade que, quando uma corrente de ideias novas atravessa o mundo, nada poderá detê-la.
Lendo tais palavras, dir-se-iam escritas durante a febre das guerras religiosas, e não nos tempos em que se julgam as doutrinas com a calma da razão.
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[Les
prophètes du passé - Google Books.]