1. — Aqui não se trata, como poderiam supor, de uma demonstração aprobativa da doutrina, mas, ao contrário, de uma nova forma de ataque, sob um título atraente e algo enganador, pois aquele que, confiando no cartaz publicitário, lá fosse pensando assistir a lições de Espiritismo, ficaria muito desapontado. Os sermões estão longe de ter tido o resultado esperado; aliás, só se dirigem aos fiéis; depois exigem uma forma muito solene, excessivamente religiosa, ao passo que a tribuna de ensino permite atitudes mais livres, mais familiares; o orador eclesiástico faz abstração de sua condição de sacerdote: torna-se professor. Essa tática dará bons resultados? Só o futuro dirá.
O abade Barricand, professor da Faculdade de Teologia de Lyon, n começou no Petit-Collège uma série de lições públicas sobre, ou melhor, contra o magnetismo e o Espiritismo. O jornal Vérité, em seu número de 10 de abril de 1864, analisa uma sessão consagrada ao Espiritismo e destaca várias asserções do ora.dor; promete manter os leitores informados da continuação, ao mesmo tempo que se encarrega de refutar o que, não temos dúvida, fará maravilhosamente, a julgar por seu começo. A conveniência e a moderação de que deu prova até hoje em sua polêmica nos são garantia de que não se apartará dessa linha, mesmo que o seu contraditor dela se afaste.
Enquanto o abade Barricand ficar no terreno da discussão dos princípios da doutrina, estará no seu direito; não podemos censurá-lo por não ser de nossa opinião, de dizer e tentar provar que tem razão. Gostaríamos que o clero em geral fosse tão partidário do livre-exame quanto nós mesmos. O que está fora do direito de discussão são os ataques pessoais e, sobretudo, os personalismos malévolos; é quando, pelas necessidades de sua causa, um adversário desnatura os fatos e os princípios que quer combater, as palavras e os atos dos que os defendem. Semelhantes meios são sempre provas de fraqueza e testemunham a pouca confiança nos argumentos tirados da própria coisa. São esses desvios da verdade que devem ser destacados no caso, mas dentro dos limites da conveniência e da urbanidade.
2. — O Vérité assim resume uma parte da argumentação do abade Barricand:
“Quanto aos espíritas, que são muito mais numerosos, igualmente me esforço por provar que hoje descem do pedestal pretensioso sobre o qual o Sr. Allan Kardec os entronizava em 1862. Com efeito, em 1861 o Sr. Kardec realizava uma viagem por toda a França, viagem da qual complacentemente dava contas ao público. Oh! senhores, então tudo corria de vento em popa; os adeptos dessa escola se contavam por trinta mil em Lyon, † por dois ou três mil em Bordeaux, † etc., etc. O Espiritismo parecia ter invadido toda a Europa! Ora, o que se passa em 1863? O Sr. Allan Kardec não faz mais viagens… nem relatórios enfáticos! É que, provavelmente, constatou bom número de deserções e, para não desencorajar o que ainda possa restar de espíritas, por um estado pouco favorável, julgou prudente e correto abster-se. Perdão senhores, eu me engano: o Sr. Allan Kardec consagra algumas páginas de sua Revista Espírita (janeiro de 1864), dando-nos algumas informações gerais sobre a campanha de 1863. Mas aqui, não mais cifras ambiciosas! Ele se guarda e com razão!… O Sr. Allan Kardec se contenta em anunciar que o Espiritismo está sempre florescente, mais florescente que nunca. Como provas de apoio, cita a criação de dois novos órgãos da escola, o Ruche de Bordeaux, e o Vérité de Lyon; sobretudo o Vérité que, como ele diz, veio postar-se como atleta temível, por seus artigos de uma lógica tão cerrada, que não deixam nenhuma margem à crítica. Espero, senhores, vos demonstrar sexta-feira que o Vérité não é tão terrível quanto dizem.
“É fácil ao Sr. Allan Kardec fazer esta afirmação: O Espiritismo está mais forte que nunca, e citar como principal prova a criação do Ruche e do Vérité! Senhores, tudo comédia!… Esses dois jornais bem podem existir, sem que se deva concluir obrigatoriamente que o Espiritismo tenha dado um passo à frente… Se me objetardes que tais jornais têm despesas e que para as pagar são necessários assinantes ou a imposição de sacrifícios esmagadores, ainda responderei: Comédia!… Ao que dizem, a caixa do Sr. Allan Kardec é bem abastecida. Não é justo e racional que venha ajudar os seus discípulos?”
O redator do Vérité, Sr. Edoux faz acompanhar esta citação da seguinte nota: “Ao sair do curso, tivemos breve entrevista com o abade Barricand que, aliás, nos recebeu de maneira muito cortês. Nosso objetivo era oferecer-lhe uma coleção do Vérité, para lhe facilitar meios de falar à vontade.”
Veremos se o Sr. Barricand será mais feliz que seus confrades e se encontrará o que tantos outros buscaram inutilmente: argumentos esmagadores contra o Espiritismo. Mas, para que tanto trabalho, desde que este está morrendo? Já que o abade Barricand o crê, deixemos-lhe essa doce crença, pois não será nem mais nem menos. Não temos nenhum interesse em dissuadi-lo. Apenas diremos que se não tem motivos mais sérios de convicção, que os que faz valer, suas razões não são muito concludentes e se todos os seus argumentos contra o Espiritismo têm a mesma força, podemos dormir tranquilos.
Causa admiração que um homem sério tire consequências tão arriscadas do que teríamos feito na viagem que realizamos o ano passado e se intrometa em nossos atos particulares a ponto de supor as razões que nos teriam levado a empreendê-la. De uma suposição ele tira uma consequência absoluta, o que não é lógica rigorosa, porquanto, se as premissas não forem certas, a conclusão não o poderá ser. Direis que isto não é responder; mas não temos a menor intenção de satisfazer a curiosidade de quem quer que seja. O Espiritismo é uma questão humanitária, seu futuro está nas mãos de Deus e não depende deste ou daquele passo do homem. Lamentamos que o Sr. abade Barricand o veja de um ponto de vista tão estreito.
Quanto a saber se nossa caixa está bem ou mal abastecida, parece-nos que calcular o que existe no bolso de alguém que não deu o direito de examiná-lo, poderia passar por indiscrição; fazer disto o texto de uma informação pública é profanar a vida privada; supor o uso que alguém deva ter feito do que se supõe que ele possua, pode, conforme as circunstâncias, chegar à calúnia.
Parece que o sistema do Sr. Barricand é proceder por suposições e insinuações. Com tal sistema, pode expor-se a receber desmentidos. Ora, nós lhe damos um formal desmentido a respeito de todas as alegações, suposições e deduções acima relatadas. Discuti tanto quanto quiserdes os princípios do Espiritismo, mas o que fazemos ou não fazemos, o que temos ou não temos, está fora de questão. Um curso não é uma diatribe; é uma exposição séria, completa e conscienciosa do assunto de que se trata; se for contraditório, exige a lealdade argumentos pró e contra, a fim de que o público julgue de seu valor recíproco; às provas, é preciso opor provas mais preponderantes. É dar uma pobre ideia da força de seus próprios argumentos tentar lançar o descrédito sobre as pessoas. Eis como compreendemos um curso, sobretudo da parte de um professor de Teologia que, antes de tudo, deve procurar a verdade.
3. — Bordeaux também tem seu curso público de Espiritismo, isto é, contra o Espiritismo, pelo reverendo padre Delaporte, professor da Faculdade de Teologia daquela cidade. O Ruche o anuncia nestes termos:
“Quarta-feira última, 13 do corrente, assistimos ao curso público de dogma, no qual o padre Delaporte tratava esta questão: Da hipótese de uma nova religião revelada pelos Espíritos, ou o Espiritismo. Não tendo concluído ainda o ilustre professor, seguiremos com atenção suas lições e delas daremos conta com a imparcialidade e a moderação de que um espírita jamais deve abdicar.”
O Sauveur des peuples, n em seus números de 17 e 24 de abril, relata as duas primeiras lições e faz a sua crítica cerrada, o que não deve deixar de causar alguns embaraços ao orador. Assim, eis dois professores de teologia de incontestável talento que, nos dois principais centros do Espiritismo na França, empreendem contra ele uma nova guerra, altercando, nos dois pontos, com campeões que têm o que lhes responder. É que hoje se encontra aquilo que era mais raro há alguns anos: homens que estudaram seriamente e não temem se expor. Que sairá daí? Um primeiro resultado inevitável: o exame mais aprofundado da questão para todo o mundo; os que não leram, quererão ler; os que não viram, quererão ver. Um segundo resultado será o de fazê-lo tomar a sério por aqueles que nele ainda não veem senão mistificação, pois os sábios teólogos o julgam assunto digno de séria discussão pública. Um terceiro resultado, enfim, será calar o temor do ridículo, que ainda retém muita gente. Quando uma coisa é discutida publicamente por homens de valor, pró e contra, não se tem mais receio de dela falar.
Da cátedra religiosa a discussão naturalmente passará para a cátedra científica e filosófica. Esta discussão, pela nata dos homens inteligentes, terá por efeito esgotar os argumentos contraditórios, que não poderão resistir à evidência dos fatos.
Sem dúvida a ideia espírita está muito espalhada, embora, pode-se dizer, ainda como opinião individual. O que hoje se passa tende a lhe abrir espaço na opinião geral e, em pouco tempo, lhe assinalará um lugar oficial entre as crenças aceitas.
Aproveitamos com satisfação a oportunidade que nos é oferecida para dirigir felicitações e encorajamentos a todos os que, afrontando o medo, resolutamente chamam a si a causa do Espiritismo. Somos felizes por ver seu número crescer dia a dia. Que perseverem, e logo verão se multiplicarem os apoios; mas que se persuadam também de que a luta não terminou e que a guerra a céu aberto não é mais para temer. O inimigo mais perigoso é o que age na sombra, ocultando-se muitas vezes sob uma falsa máscara. Então diremos: Desconfiai das aparências; não julgueis os homens pelas palavras, mas pelos atos; temei, sobretudo, as armadilhas.
[Revista de julho de 1864.]
4 RECLAMAÇÃO DO ABADE BARRICAND.
O número da Revista do mês de junho já estava composto e impresso parcialmente quando nos chegou a seguinte carta, do abade Barricand, ao qual mandamos responder o que se segue adiante:
“Senhor.
“O Sr. Allan Kardec encarrega-me de acusar o recebimento da carta que lhe dirigistes, e de vos dizer que era supérfluo requerer a sua inserção na Revista. Bastaria que lhe tivésseis pedido uma retificação motivada e ele teria considerado como um dever de imparcialidade reconhecer o vosso direito. Como o número da Revista de 1º de junho já estava pronto quando da recepção de vossa carta, ela só poderá aparecer na edição seguinte.
“Recebei, etc.”
“Lyon, 19 de maio de 1864.
“Senhor,
“Acabo de ler na Revista Espírita, fascículo do mês de maio de 1864, um artigo no qual meu curso é de tal modo fantasiado e desfigurado que me vejo na obrigação de lhe dar uma resposta, para destruir a impressão desfavorável que o artigo deve ter deixado em vossos leitores, no tocante à minha pessoa e ao meu ensino.
“O artigo é intitulado: Cursos públicos de Espiritismo em Lyon. Jamais se viu tal designação figurar em nenhum de meus programas, e se alguém veio ao meu curso na crença de que assistiria a lições de Espiritismo, não foi, como insinuais, porque tivesse sido seduzido por um título atraente e um pouco enganador, mas unicamente porque não se deu ao trabalho de ler o que dizem nossos cartazes.
“Informais aos vossos leitores que o jornal Vérité destaca várias de nossas asserções e, além disso, que se encarregará de nos refutar; disto não temos dúvida, acrescentais, pois, a julgar por seu começo, ele se desobrigará às maravilhas. Mas não dais a conhecer essas asserções. É verdade que o nosso contraditor afirma não ser necessário haver cursado teologia para tomar de uma pena, e que não temerá enfrentar-nos usando apenas as armas da razão e da fé em Deus, dadas pelo Espiritismo;… que a tese paradoxal que sustentamos não se discute;… que não nos faríamos de rogado para acompanhar o Espiritismo ao cemitério, mas que não devemos ter muita pressa em dobrar por finados;… que, por sua própria conta, está em condições de alimentar, por si mesmo e sem muito trabalho, essa criancinha que se chama Verdade;… que o sangue do futuro corre mais quente que nunca nas veias do espírita, e que ele tem a confiança íntima de que um dia nos será dado o tom definitivo do mais magnífico Te Deum.
“Por certo o Sr. Allan Kardec se supõe em perfeitas condições de contestar os nossos argumentos e de prometer aos seus leitores que, a julgar pelo começo, o diretor do Vérité se desobrigará maravilhosamente da tarefa que se impôs, de nos refutar. Mas é difícil acreditar que, fora da escola espírita, as pessoas tenham a mesma opinião; chegaríamos até mesmo a suspeitar que se o Sr. Diretor da Revista Espírita publicasse na íntegra, aos olhos de seus assinantes, o artigo em que o nosso antagonista aceita a luta, muitos deles teriam hesitado em considerá-lo como um princípio que promete uma refutação maravilhosa de nossas lições contra o Espiritismo.
“Mas talvez digais: o resumo que dá o Vérité de uma parte de vossa argumentação não a reproduz fielmente? Não, senhor, esse resumo não passa de uma paródia burlesca. Tudo aí é falsificado: nossa linguagem, nossas ideias e nosso raciocínio. Estas expressões arrogantes: Julgo-me capaz de provar; pedestal pretensioso…; relatório enfático; cifras ambiciosas; tudo comédia; a caixa do Sr. Allan Kardec está hem abastecida e é justo que venha em auxílio de seus discípulos, etc., jamais entraram em nossas lições e o Sr. Diretor do Vérité se teria poupado ao trabalho de no-las atribuir, se tivesse compreendido, ou querido compreender, o verdadeiro estado da questão que tratávamos à sua frente.
“Com efeito, de que se tratava? De dar a conhecer ao nosso auditório qual era, no final de 1862 e de 1863, a situação do Espiritismo em Lyon. Ora, para nos apoiarmos tão somente em dados que nenhum espírita pode recusar, em vez de falar de vossas viagens e calcular o que pudesse conter vossa caixa, contentamo-nos em confrontar vossa brochura intitulada: Viagem Espírita em 1862 e o vosso artigo da Revista Espírita (janeiro de 1864), no qual dais conta aos assinantes da situação do Espiritismo em 1863. Da diferença tão evidente de tom e de linguagem notados nesses dois documentos, julgamos dever concluir, não como nos faz dizer o Vérité, que o Espiritismo está morto ou agonizante, mas que sofre, ao menos em Lyon, de uma paralisação, se já não entrou num período de decadência. Em apoio a esta conclusão, lembramos as confissões do diretor do Vérité, porque, enquanto o Sr. Allan Kardec afirma que em 1862 podiam-se contar, sem exagero, 25 a 30 mil espíritas lioneses, o Sr. Edoux não tem dificuldade em reconhecer que o seu número hoje não passa de dez mil. Ora, que outro nome, senão de decadência, pode ser dado a tão notável diminuição?
“Parece-nos que nada é mais fácil do que apreender o verdadeiro sentido de tão simples argumentação e lhe fazer uma análise exata. Mas o Sr. Diretor do Vérité, em vez de limitar-se a reproduzir fielmente a nossa exposição, julgou que fosse mais interessante dar aos leitores uma bonita amostra de nosso curso, inserindo-a no seu jornal.
“E, contudo, é esse relato, onde cada linha põe a descoberto a falta de lógica e de sinceridade, que julgastes dar como fundamento a essas insinuações malévolas, que tendem a nos apresentar aos vossos leitores como um homem que se imiscui nos vossos atos privados, que de uma simples suposição tira uma consequência absoluta; que calcula o que há no fundo de vossa caixa para disso fazer o texto de um ensinamento público. Tais acusações, assacadas irrefletidamente e sem sombra de provas, caem por si mesmas. Conforme a palavra de um autor antigo basta divulgá-las para as refutar: Vestra exposuisse refellisse est [Vossa explanação é refutável].
“Ao concluir o vosso artigo, julgastes dever ensinar-nos como deve ser feito um curso de teologia. Por nossa vez, guardamo-nos de vos querer dar lições, mas que nos seja permitido, ao menos, vos dar um caridoso conselho, se quiserdes evitar muitos desmentidos, o de não aceitar mais, senão com certa desconfiança, os relatórios de vossos correspondentes, porque, tomando por empréstimo a linguagem de nosso bom La Fontaine, um amigo ignorante é mais perigoso que um inimigo sábio.
“Peço-vos, e se necessário exijo, a inserção integral desta resposta no vosso próximo número.
“Recebei os protestos de meus mais elevados sentimentos.”
A. Barricand.
Deão da Faculdade de Teologia.
5. — As palavras contra as quais reclama o abade Barricand são estas: “É fácil ao Sr. Allan Kardec fazer esta asserção: O Espiritismo está mais forte que nunca, e citar como principal prova a criação do Ruche e do Vérité! Senhores, tudo comédia!… Esses dois jornais bem podem existir, sem que se deva concluir obrigatoriamente que o Espiritismo haja dado um passo à frente… Se me objetardes que tais jornais têm despesas e que para as pagar são necessários assinantes ou a imposição de sacrifícios esmagadores, ainda responderei: Comédia!… Ao que dizem, a caixa do Sr. Allan Kardec é bem abastecida. Não é justo e racional que venha ajudar os seus discípulos?”
Elas são extraídas textualmente do jornal Vérité de 10 de abril
de 1864. Apenas acrescentamos as reflexões muito naturais que elas sugeriram,
dizendo que não reconhecemos em ninguém o direito de calcular o fundo
de nossa bolsa, nem de prejulgar o uso que fizermos do que pensam que
possuímos e, ainda menos, de fazer disto o texto de um ensinamento público.
(Vide a Revista do mês de maio.) [Artigo
anterior.]
Sem investigar se o abade Barricand pronunciou as palavras que contesta, ou o equivalente, é de admirar não tenha ele, em primeiro lugar, pedido a retificação ao jornal do qual as tomamos por empréstimo. Esse jornal é de 10 de abril; aparece em Lyon todas as semanas e lhe é remetido. Ora, sua carta é de 19 de maio e, nesse intervalo, cinco números tinham aparecido. De duas, uma: estas palavras são justas, ou são falsas; se são falsas, é que o redator, que declara no artigo haver assistido à lição do professor, as inventou. Então, como é que no mesmo artigo ele protesta contra a alegação de ser subvencionado por nós, dizendo que não necessita do auxílio de ninguém e pode andar sozinho? Ter-se-ia equivocado estranhamente. Como é que em presença dessa dupla asserção o abade Barricand tenha deixado passar mais de um mês sem protestar? Seu silêncio, quando não podia ignorá-lo, deve ter sido considerado por nós como um assentimento, pois é muito evidente que se tivessem sido retificadas no Vérité, nós não as teríamos reproduzido.
Em sua carta, o abade Barricand volta à tese que sustentou, relativa à pretensa decadência do Espiritismo, restringindo, no entanto, o alcance de suas expressões. Já que tal pensamento o tranquiliza, deixamo-lo de boa vontade, pois não temos o menor interesse em dissuadi-lo. Assim, que ele tire da ausência de estipulações precisas sobre o número de espíritas as conclusões que quiser, o que não impedirá que as coisas sigam o seu curso. Pouco importa se os nossos adversários acreditem ou não no progresso do Espiritismo; ao contrário, quando menos acreditarem, menos dele se ocuparão e mais nos deixarão em paz. Far-nos-emos de mortos se isto lhes for agradável. A eles caberia não nos despertar; mas, enquanto vociferarem, fulminarem, anatematizarem, usarem de violências e de perseguições, não farão ninguém acreditar que estamos mortos e bem mortos.
Até agora o clero havia pensado que um meio de apavorar, no que respeita ao Espiritismo, fazendo que o repelissem, era exagerar o número de seus adeptos além da medida. Em quantos sermões, pastorais e publicações de todo o gênero estes não foram apresentados como invasores da sociedade e, por seu aumento, pondo a Igreja em perigo? Confirmamos o progresso das ideias espíritas, pois, melhor do que ninguém, estamos em condições de constatar; mas jamais caímos em cálculos hiperbólicos e nunca dissemos, como certo pregador [Sermões contra o Espiritismo], que só em Bordeaux foram vendidos mais de 170.000 francos de nossos livros. Não fomos nós que dissemos que havia 20 milhões de espíritas na França [Orçamento do Espiritismo ou exploração da credulidade humana], nem, como numa obra recente, 600 milhões no mundo inteiro, o que equivaleria a mais da metade da população total do globo. O resultado desses quadros foi completamente diverso do que esperavam. Ora, se quiséssemos proceder por indução, suspeitaríamos que o abade Barricand quisesse seguir uma tática contrária, atenuando os progressos do Espiritismo, em vez de os exaltar.
Seja como for, a estatística exata dos espíritas é uma coisa impossível, tendo em vista o número imenso de pessoas simpáticas à ideia e que não têm qualquer motivo para se porem em evidência, já que os espíritas não estão arregimentados como numa confraria. Grande seria o equívoco de quem tomasse por base o número de grupos oficialmente conhecidos, considerando-se que nem um milésimo dos adeptos os frequentam. Conhecemos algumas cidades onde não há nenhuma sociedade regular e nas quais há mais espíritas que em outras, que contam diversas. Aliás, já dissemos que as sociedades não são uma condição necessária à existência do Espiritismo; algumas se formam hoje e encerram suas atividades amanhã, sem que sua marcha seja entravada no que quer que seja. O Espiritismo é uma questão de fé e de crença, e não de associação.
Quem quer que partilhe de nossas convicções a respeito da existência e da manifestação dos Espíritos e das consequências morais daí decorrentes, é espírita de fato, sem que haja necessidade de estar inscrito num registro ou matrícula, ou de receber um diploma. Basta uma simples conversa para dar a conhecer os que são simpáticos à ideia ou a repelem, e por aí se julga se ela ganha ou perde terreno.
A avaliação aproximada do número de adeptos repousa em relatórios íntimos, pois não existe qualquer base para o estabelecimento de uma cifra rigorosa, cifra, aliás, incessantemente variável. Uma carta, por exemplo, vai nos revelar toda uma família espírita e, por vezes, várias famílias, de que não tínhamos nenhum conhecimento. Se o abade Barricand visse a nossa correspondência talvez mudasse de opinião; mas não nos preocupamos com isso.
A oposição feita a uma ideia está sempre na razão de sua importância. Se o Espiritismo fosse uma utopia, dele não se teriam ocupado, como de tantas outras teorias. A obstinação da luta é indício certo de que o levam a sério. Mas se há luta entre o Espiritismo e o clero, a História dirá quais foram os agressores. Os ataques e as calúnias de que foi objeto o forçaram a devolver as armas que lhe atiravam e a mostrar o lado vulnerável de seus adversários. Perseguindo-o, detiveram sua marcha? Não, certamente. Se o tivessem deixado em paz, nem o nome do clero teria sido pronunciado e talvez este tivesse vencido. Atacando-o em nome dos dogmas da Igreja, forçaram-no a discutir o valor das objeções e, por isto mesmo, a entrar num terreno que ele não tinha intenção de enveredar. A missão do Espiritismo é combater a incredulidade pela evidência dos fatos, reconduzir a Deus os que o desconheciam, provar o futuro aos que criam no nada. Então, por que hoje a Igreja lança mais anátemas sobre aqueles aos quais dá fé, do que quando em nada criam? Repelindo os que creem em Deus e na alma pelo Espiritismo, é constrangê-los a buscar refúgio fora da Igreja. Quem primeiro proclamou que o Espiritismo era uma religião nova, com seu culto e seus sacerdotes, senão o clero? Onde se viu, até agora, o culto e os sacerdotes do Espiritismo? Se algum dia tornar-se uma religião, é o clero que o terá provocado.
[Revista
de agosto de 1864.]
6 CORRESPONDÊNCIA.
RESPOSTA DO REDATOR DO VÉRITÉ À RECLAMAÇÃO DO ABADE BARRICAND.
Caro Senhor Allan Kardec,
Faríeis a gentileza de inserir algumas linhas no próximo número de vossa Revista?
Fiquei deveras surpreso ao abrir o último número do vosso jornal (julho de 1864) e aí encontrar uma carta assinada Barricand, na qual esse teólogo investe contra mim a propósito de um relato que publiquei sobre um de seus cursos antiespíritas (Vérité de 10 de abril de 1864).
As observações muito judiciosas, que fizestes acompanhar esse inqualificável e muito tardio protesto, certamente me teriam dispensado de o responder pessoalmente, se não tivesse temido que, aos olhos de alguns, o meu silêncio passasse por uma derrota ou um erro. Declaro com todas as letras que minha consciência não poderia associar-se à grave censura que ele me fez de haver fantasiado, falsificado o curso de que se trata. Eu o afirmo perante Deus: Se nem sempre reproduzi as mesmas frases, as mesmas palavras pronunciadas por meu contraditor, continuo convicto de lhes haver dado o verdadeiro sentido.
Depois disto, que a alta inteligência do abade Barricand julgue a minha muito ínfima ou muito pesada para ter podido captar o verdadeiro tema de seu discurso, através de caminhos sinuosos, mas floridos, por onde passeou; que o abade Barricand tire desta premissa a indução que, em semelhante circunstância, não me é mais permitido afirmar nem infirmar; palavra de honra, é bem possível! Neste caso, e para ser fiel aos meus princípios de tolerância, eu quase consentiria em me censurar por haver defendido o Vérité e os outros jornais espíritas contra acusações ilusórias, nascidas de meu cérebro em delírio; em me bater no peito por haver compreendido que, em vez de dobrar a finados sobre as nossas cabeças, contentavam-se, ao que parece, em nos tomar o pulso.
Assim se apaziguará, espero, a ira do Sr. deão da Faculdade de Teologia; desse modo serão reabilitados, aos olhos do mundo, a sua pessoa e o seu ensino.
Aceitai, etc.
E. Edoux.
Diretor do Vérité.
[1]
[Rapport
de M. l’abbé Barricand,… lu à la rentrée solennelle des Facultés
de Lyon, le 1er décembre 1857 — Google Books.]
[2] [Le
Sauveur des peuples, journal du spiritisme… 1re [-2e]
année… A. Lefraise — 1864 — Google Books.]