Num catecismo para crianças da diocese de Langres, † por ocasião da pastoral acima referida, foi dada uma instrução sobre o Espiritismo, como assunto a ser tratado pelos alunos.
Eis a narração textual de um deles:
“O Espiritismo é obra do diabo, que o inventou. Entregar-se a isto é pôr-se em relação direta com o demônio. Superstição diabólica! Muitas vezes Deus permite essas coisas para reavivar a fé dos fiéis. O demônio faz-se bom, faz-se santo; cita palavras das Escrituras sagradas.”
Esse meio de reanimar a fé nos parece muito mal escolhido.
“Tertuliano, que viveu no segundo século, conta que faziam falar as cabras e as mesas; é a essência da idolatria. Essas operações satânicas eram raras em certos países cristãos, mas hoje são muito comuns. Esse poder do demônio mostrou-se em todo o seu vigor com o advento do protestantismo.”
Eis crianças bem convencidas do grande poder do demônio. Não seria para temer que isto lhes fizesse duvidar um pouco do poder de Deus, quando se vê o primeiro tantas vezes levar a melhor sobre o segundo?
“O Espiritismo nasceu na América, no seio de uma família protestante chamada Fox. A princípio o demônio manifestou-se por pancadas que despertavam as pessoas em sobressalto; enfim, aborrecidos com as pancadas, procuraram o que podia ser. Um dia a filha do Sr. Fox pôs-se a dizer: Bate aqui, bate ali; e batiam onde ela queria.”
Sempre a excitação contra os protestantes! Assim, eis rapazes educados pela religião no ódio contra uma parte de seus concidadãos, muitas vezes contra membros da própria família! Felizmente o espírito de tolerância que reina em nossa época o contrabalança, sem o que veríamos a renovação de cenas sangrentas dos séculos passados.
“Esta heresia logo se vulgarizou e já conta quinhentos mil sectários. Os Espíritos invisíveis se permitem fazer toda a sorte de coisas. Ao simples pedido de um indivíduo, moviam-se mesas sobrecarregadas com centenas de livros; viam-se mãos sem corpo. Eis o que se passou na América, e isto veio à França pela Espanha. Inicialmente o Espírito foi forçado por Deus e os anjos a dizer que era o diabo, a fim de não apanhar em suas armadilhas as pessoas honestas.”
Julgamo-nos bem ao corrente da marcha do Espiritismo, e jamais ouvimos dizer que tivesse chegado à França pela Espanha. Seria um ponto a retificar na história do Espiritismo?
Pela confissão dos adversários do Espiritismo, vê-se com que rapidez
a ideia nova ganha terreno; uma ideia que, apenas despontada, conquista
quinhentos mil partidários não é sem valor e prova o caminho que fará
mais tarde; dez anos mais tarde um deles eleva a cifra a vinte milhões,
só na França e prediz que em breve a heresia terá ganho os outros vinte
milhões. (Vide
a Revista Espírita de junho de 1863.) Mas, então, se todo o mundo
é herético, que restará para a ortodoxia? Não seria o caso de aplicar
a máxima: Quando todos estão errados, todos têm razão? Que teria respondido
o instrutor, se uma criança insuportável de seu jovem auditório lhe
tivesse feito a pergunta: “Como é possível que a primeira pregação de
São Pedro só converteu três mil judeus, enquanto o Espiritismo, que
é obra de satanás, fez imediatamente quinhentos mil adeptos? Será satanás
mais poderoso do que Deus?” – Talvez ele lhe tivesse respondido: “É
porque eram protestantes.”
“Satã diz que é um bom Espírito; mas é um mentiroso. Um dia quiseram que a mesa falasse; ela não quis responder; julgaram que a presença de eclesiásticos a impedia. Por fim, duas batidas vieram advertir que o Espírito lá estava. Perguntaram-lhe: – Jesus-Cristo é filho de Deus? – Não. – Reconheces a santa eucaristia? – Sim. – A morte de Jesus-Cristo aumentou os teus sofrimentos? – Sim.”
Então há padres que assistem a essas reuniões diabólicas. A criança insuportável poderia ter perguntado por que, quando vêm, não fazem o diabo fugir?
“Eis uma cena diabólica.” Assim dizia o Sr. Allan Kardec: “A velhacaria dos Espíritos mistificadores ultrapassa tudo quanto se possa imaginar. Havia dois Espíritos, um representando o bom, outro, o mau; ao cabo de alguns meses disse um: – Aborreço-me de vos repetir palavras melífluas, nas quais não penso. – Então és o Espírito do mal? – Sim. – Não sofres falando de Deus, da Virgem e dos santos? – Sim. – Queres o bem ou o mal? – O mal. – Não és o Espírito que falava há pouco? – Não. – Onde estás? – No inferno. – Sofres? – Sim. – Sempre? – Sim. —Estás submetido a Jesus-Cristo? – Não, a Lúcifer. – Ele é eterno? – Não. – Gostas do que tenho na mão? (eram medalhas da santa Virgem). – Não; julguei vos inspirar confiança; o inferno me reclama; adeus!”
O relato é muito dramático, sem dúvida, mas seria muito hábil quem provasse que temos algo a ver com isso. É triste ver a que expedientes são obrigados a recorrer para dar fé. Esquecem que essas crianças crescem e refletirão. A fé que repousa em tais provas tem razão de temer as conspirações.
“Acabamos de ver o Espírito do mal forçado a confessar que era o tal. Eis uma outra frase que o lápis do médium escrevia: “Se queres entregar-te a mim, alma, Espírito e corpo, satisfarei os teus desejos; se queres estar comigo, escreve teu nome por baixo do meu”; e escrevia: Giefle ou Satã. O médium tremia e não escrevia; tinha razão. Todas as sessões terminam por estas palavras: “Queres aderir?” O demônio queria que fizessem um pacto com ele. Entrega-me a tua alma! disse um dia a alguém. – Quem és tu? responderam. – Sou o demônio. – Que queres? – Possuir-te. Não há purgatório; os celerados, os maus, tudo isto há no céu.”
Que dirão estes meninos quando testemunharem algumas evocações e, em vez de um pacto infernal, ouvirem os Espíritos dizer: “Amai a Deus acima de todas as coisas, e ao próximo como a vós mesmos; ( † ) praticai a caridade ensinada pelo Cristo; sede bons para com todos, mesmo com os vossos inimigos; orai a Deus e segui os seus mandamentos para serdes felizes neste mundo e no outro?”
“Todos esses prodígios, todas essas coisas extraordinárias vêm dos Espíritos das trevas. O Sr. Home, espírita fervoroso, nos diz que por vezes o solo vibra sob os seus pés, os aposentos estremecem, as pessoas se arrepiam; uma mão invisível nos apalpa os joelhos e os ombros; uma mesa pula. Perguntam: Estás aí? – Sim. – Dá provas disto. E a mesa se ergue duas vezes!”
Ainda uma vez, tudo isto é muito dramático; mas, entre os jovens ouvintes, certamente mais de um desejou vê-lo e não perderá a primeira oportunidade. Também se encontrarão mocinhas impressionáveis, de organização delicada que, ao menor comichão, julgarão sentir a mão do diabo e passarão mal.
“Todas essas coisas são ridículas. A santa Igreja, mãe de todos nós, faz-nos ver que isto não passa de mentira.”
Se tudo isto for ridículo e mentiroso, por que, então, dar tanta importância? Por que apavorar as crianças com quadros sem nenhuma realidade? Se há mentira, não é precisamente nesses quadros?
“Na evocação dos mortos, por exemplo, não se deve crer que sejam os nossos parentes que nos falam; é Satã quem fala e se dá por um morto. Certamente estamos em comunicação pela comunhão dos santos. Na vida dos santos temos exemplos de aparições de mortos; mas é um milagre da sabedoria divina e esses milagres são raros. Eis o que nos dizem: Algumas vezes os demônios se dão por mortos e, também, por santos.”
Algumas vezes não é sempre; portanto, pode acontecer que o Espírito que se comunica não seja um demônio.
“Eles podem fazer muitas outras coisas. Certo dia, um médium que não sabia desenhar reproduziu, com a mão conduzida por um Espírito, as imagens de Jesus-Cristo e da santa Virgem que, apresentadas a alguns de nossos melhores artistas, foram julgadas dignas de ser expostas.”
Ouvindo isto, um aluno bem poderia pensar: E se um Espírito pudesse conduzir-me a mão para fazer meu dever e ganhar um prêmio? Tentemos!
“Saul consultou a pitonisa de Endor ( † ) e Deus permitiu que Samuel lhe aparecesse para dizer: Por que perturbas o meu repouso? Amanhã estarás comigo no túmulo. Nossos Sauis de salão bem que deveriam pensar nesta história. São Felipe de Néri nos diz: Se a santa Virgem vos aparecer, ou mesmo Nosso Senhor Jesus-Cristo, cuspi-lhe no rosto, pois seria apenas uma trapaça do demônio para vos induzir em erro.”
O que vem a ser a aparição de Nossa Senhora da Salette † a duas pobres crianças? Conforme essa instrução de catecismo, deviam ter-lhe cuspido no rosto.
“Nosso santo padre o Papa Pio IX proibiu expressamente entregar-se a essas coisas. O Sr. Bispo de Langres, e ainda muitos outros, fizeram o mesmo. Há perigo de morte: dois velhos se suicidaram porque os Espíritos lhes haviam dito que depois da morte gozariam de infinita ventura; perigo para a razão: vários médiuns enlouqueceram e numa casa de alienados contavam-se mais de quarenta indivíduos que o Espiritismo tornara loucos.”
Ainda não conhecemos a bula papal que proíbe expressamente de ocupar-se
com estas coisas; caso existisse, o Sr. bispo de Langres e os outros
não teriam deixado de mencioná-la. A história dos dois velhos, a que
se faz alusão, é inexata; foi provado, por documentos oficiais, registrados
no tribunal e, notadamente por cartas por eles escritas antes da morte,
que se suicidaram em consequência de perdas de dinheiro e do temor de
cair na miséria. (Vide
a Revista Espírita de abril de 1863.) A dos quarenta indivíduos
confinados numa casa de alienados não é mais verídica. Seria muito constrangedor
justificar tal história pelos nomes desses pretensos loucos, que um
primeiro jornal fixou em quatro, um segundo em quarenta, um terceiro
em quatrocentos e, por fim, um quinto dizia que trabalhavam na ampliação
do hospício. [Vide: Pastoral
do Sr. bispo de Argel contra o Espiritismo.] Um instrutor de catecismo
deveria colher seus dados históricos em outras fontes que não fossem
as fofocas de jornais. As crianças a quem enunciam seriamente essas
coisas as aceitam com confiança; mas, quanto maior a confiança, mais
forte a reação contrária quando, mais tarde, souberem a verdade. Isto
é dito em sentido geral e não exclusivamente para o Espiritismo.
Se analisamos este trabalho para meninos, fique bem entendido que não é a sua opinião que refutamos, mas aquela da qual a narração é um resumo. Se se investigasse com cuidado todas as instruções dessa natureza, ficaríamos menos admirados dos frutos recolhidos mais tarde. Para instruir a infância é preciso grande tato e muita experiência, porque é inimaginável o alcance que poderá ter uma única palavra imprudente que, como o joio, germina nessas jovens imaginações como em terra virgem.
Parece que os adversários do Espiritismo não acham que a ideia esteja bastante espalhada; dir-se-ia que, mau grado seu, são impelidos a inventar meios para difundi-la ainda mais. Depois dos sermões, cujo resultado é conhecido, não se podia achar um mais eficaz do que fazê-lo tema das instruções e deveres do catecismo. Os sermões atuam sobre a geração que se vai; as instruções predispõem a geração que chega. Assim, laboraríamos em erro se as encarássemos com desagrado.