1.
Nota. – Numa das sessões da Sociedade Espírita de Paris,
†
em que se havia discutido a questão da perturbação que geralmente se
segue à morte, um Espírito se manifestou espontaneamente à Sra. Costel,
dando a comunicação que se segue, e que não leva a sua assinatura:
“Que falais de perturbação? Por que essas palavras vãs? Sois sonhadores e utopistas. Ignorais perfeitamente as coisas de que vos pretendeis ocupar. Não, senhores, a perturbação não existe, salvo, talvez, em vossos cérebros. Estou tão recentemente morto quanto possível, e vejo claro em mim, em redor de mim, em toda parte… A vida é uma lúgubre comédia! Desastrados os que se retiram de cena antes de cair o pano… A morte é um terror, um castigo, um desejo, conforme a fraqueza ou a força dos que a temem, a afrontam ou a imploram. Para todos é uma amarga irrisão!… A luz me ofusca e penetra, como seta aguda, a sutileza de meu ser… Castigaram-me pelas trevas da prisão e pensaram castigar-me pelas trevas do túmulo, ou as sonhadas pelos supersticiosos católicos. Pois bem! sois vós, senhores, que sofreis a escuridão, e eu, o degradado social, pairo acima de vós… Quero continuar eu!… Forte pelo pensamento, desdenho os avisos que ressoam à minha volta… Vejo claro… Um crime! é uma palavra! O crime existe por toda parte. Quando praticado por massas de homens, glorificam-no; em particular, é maldito. Absurdo!
“Não quero ser lamentado… nada peço… eu me basto e saberei bem lutar contra esta luz odiosa.”
Aquele que ontem era um homem.
2. — Tendo sido analisada esta comunicação na sessão seguinte, foi reconhecido, mesmo no cinismo da linguagem, um grave ensinamento e se viu na situação desse infeliz uma nova fase do castigo que aguarda os culpados. Com efeito, enquanto uns são mergulhados nas trevas ou no isolamento absoluto, outros suportam durante longos anos as angústias de sua última hora, ou ainda se julgam neste mundo; a luz brilha para este; seu Espírito goza da plenitude de suas faculdades; sabe perfeitamente que está morto e de nada se queixa; não pede qualquer assistência e ainda afronta as leis divinas e humanas. Escapará à punição? Não, mas a justiça divina se realiza sob todas as formas, e o que constitui a alegria de uns, para outros é um tormento; essa luz é o seu suplício, contra o qual se obstina e, malgrado o seu orgulho, ele o confessa quando diz: “Eu me basto e saberei bem lutar contra essa luz odiosa”; e nessa outra frase: “A luz me ofusca e penetra, como seta aguda, a sutileza de meu ser.” Estas palavras: sutileza de meu ser são características; ele reconhece que seu corpo é fluídico e penetrável pela luz, da qual não pode escapar, e essa luz o trespassa como seta aguda.
Solicitados a dar sua apreciação sobre o assunto, nossos guias espirituais ditaram as três comunicações seguintes, que merecem séria atenção:
(Médium: Sr. A. Didier.)
3. — Há provações sem expiação, como há expiações sem provação [v. Observação abaixo]. Evidentemente, na erraticidade, do ponto de vista das existências, os Espíritos estão inativos e à espera. Todavia, podem expiar, desde que o orgulho, a tenacidade formidável e a rebeldia de seus erros não os retenham no momento de sua ascensão progressiva. Tendes um exemplo terrível na última comunicação, relativamente ao criminoso que se debate contra a justiça divina que o persegue, depois da dos homens. Neste caso, então, a expiação, ou antes, o sofrimento fatal que os oprime, em vez de lhes aproveitar e de lhes fazer sentir a profunda significação de suas penas, os exalta na revolta e lhes faz soltar esses murmúrios que as Escrituras, em sua poética eloquência, chamam ranger de dentes. Imagem por excelência! sinal do sofrimento abatido, mas insubmisso! perdida na dor, mas cuja revolta ainda é bastante grande para recusar reconhecer a verdade da pena e a verdade da recompensa!
Amiúde os grandes erros se prolongam quase sempre no mundo dos Espíritos; do mesmo modo, as grandes consciências criminosas. Ser dono de si, a despeito de tudo, e pavonear-se diante do infinito, assemelha-se a essa cegueira do homem que contempla as estrelas e as toma por arabescos de um teto, como imaginavam os gauleses do tempo de Alexandre.
Existe o infinito moral! Miserável é aquele, ínfimo é aquele que, a pretexto de continuar as lutas e as bravatas abjetas da Terra, não vê mais longe no outro mundo do que aqui embaixo! A esse a cegueira, o desprezo dos outros, a egoísta e mesquinha personalidade e a interrupção do progresso! É certíssimo, ó homens, que há um acordo secreto entre a imortalidade de um nome puro, deixado na Terra, e a imortalidade que guardam realmente os Espíritos em suas provações sucessivas.
Lamennais. n
Observação. – Para compreender o sentido desta frase: “Há provações sem expiação e expiações sem provação”, é necessário entender por expiação o sofrimento que purifica e lava as manchas do passado; depois da expiação, o Espírito está reabilitado. O pensamento de Lamennais é este: Conforme as vicissitudes da vida sejam ou não acompanhadas pelo arrependimento das faltas que as ocasionaram, do desejo de as tornar proveitosas para seu próprio melhoramento, haverá ou não expiação, isto é, reabilitação. Assim, os maiores sofrimentos podem não ter proveito para aquele que os suporta, se não o tornarem melhor, se não o elevarem acima da matéria, se não virem a mão de Deus, enfim, se não o fizerem dar um passo à frente, porquanto terão de recomeçar em condições ainda mais penosas. Deste ponto de vista, dá-se o mesmo com as penas sofridas depois da morte; o Espírito endurecido as sofre sem ser tocado pelo arrependimento. Eis por que as pode prolongar indefinidamente por sua própria vontade; é castigado, mas não repara as faltas.
(Médium: Sr. d’Ambel.)
4. — Se precipitarmos um homem nas trevas ou em ondas de luz o resultado não será o mesmo? Num e noutro caso, ele nada vê do que o cerca e se habituará muito mais rapidamente à sombra do que à tripla claridade elétrica, na qual pode estar submerso. Assim, o Espírito que se comunicou na última sessão exprime bem a verdade de sua situação, quando exclama: “Oh! eu saberei bem lutar contra esta luz odiosa!” Com efeito, essa luz é tanto mais terrível, tanto mais atroz que o trespassa completamente, tornando visíveis e aparentes seus mais secretos pensamentos. Eis um dos lados mais duros de seu castigo espiritual. Ele se acha, a bem dizer, internado na casa de vidro que pedia Sócrates, e aí está ainda um ensinamento, porque o que teria sido a alegria e o consolo do sábio torna-se a punição infamante e contínua do mau, do criminoso, do parricida, assustado em sua própria personalidade.
Compreendeis, meus filhos, a dor e o terror que devem oprimir aquele que, durante uma existência sinistra, se comprazia em arquitetar, em maquinar as mais tristes perversidades no fundo de seu ser, onde se refugiava como uma fera em sua toca, e que hoje se acha expulso desse refúgio íntimo, onde se subtraía aos olhares e à investigação dos contemporâneos? Agora sua máscara de impassibilidade lhe é arrancada e cada um de seus pensamentos se reflete sucessivamente em sua fronte!
Sim, doravante nenhum repouso, nenhum asilo para esse formidável criminoso! Cada mau pensamento — e Deus sabe se sua alma os exprime — se trai fora e dentro de si, como num choque elétrico superior. Quer ocultar-se à multidão, e a luz odiosa o atravessa continuamente. Quer fugir, foge numa carreira ofegante e desesperada, através dos espaços incomensuráveis e, por toda parte, a luz! por toda parte os olhares que nele mergulham! e se precipita novamente, em busca da sombra, da noite, e a sombra e a noite para ele não existem. Chama a morte em seu auxílio, mas a morte não passa de um nome vazio de sentido. O infortunado foge sempre! Marcha para a loucura espiritual, terrível castigo! dor horrível! onde se debaterá consigo mesmo para se desembaraçar de si próprio. Porque tal é a lei suprema além da Terra: é o culpado que se torna, para si mesmo, seu mais inexorável castigo.
Quanto tempo durará isto? Até a hora em que sua vontade, enfim vencida, curvar-se sob a pungente pressão do remorso, e em que sua fronte soberba humilhar-se perante suas vítimas apaziguadas e ante os Espíritos de justiça. E notai a alta lógica das leis imutáveis; nisto ele ainda cumprirá o que escrevia nessa arrogante comunicação, tão clara, tão lúcida e tão tristemente cheia de si, que deu sexta-feira última, desobrigando-se por um ato de sua própria vontade.
O Espírito protetor do médium.
(Médium: Sr. Costel.) n
5. — A justiça humana não faz acepção da individualidade dos seres que castiga. Medindo o crime pelo crime em si, fere indistintamente os que os cometeram, e a mesma pena atinge o culpado sem distinção de sexo e seja qual for a sua educação. A justiça divina procede de outro modo; as punições correspondem ao grau de adiantamento dos seres aos quais são aplicadas. A igualdade do crime não constitui igualdade entre os indivíduos; dois homens culpados no mesmo grau podem ser separados pela distância das provas, que mergulham um na opacidade intelectual dos primeiros círculos iniciadores, ao passo que o outro, os tendo ultrapassado, possui a lucidez que liberta o Espírito da perturbação. Então não são mais as trevas que castigam, mas a acuidade da luz espiritual; ela atravessa a inteligência terrena e o faz experimentar a angústia de uma chaga reavivada.
Os seres desencarnados perseguidos pela representação material de seu crime sofrem o choque da eletricidade física: sofrem pelos sentidos. Os que já estão desmaterializados pelo Espírito sentem uma dor muito superior, que aniquila nas suas vagas amargas a recordação dos fatos, para não deixar subsistir senão a ciência de suas causas.
O homem pode, pois, a despeito da criminalidade de suas ações, possuir um adiantamento interior, pois enquanto suas paixões o fazem agir como um bruto, suas faculdades afiadas o elevam acima da espessa atmosfera das camadas inferiores. A ausência de ponderação, de equilíbrio entre o progresso moral e o progresso intelectual, produz as anomalias muito frequentes nas épocas de materialismo e de transição.
A luz que tortura o Espírito culpado é, pois, o raio que inunda de claridade os recônditos de seu orgulho e a lhe pôr a descoberto a inanidade de seu ser fragmentário. Eis os primeiros sintomas e as primeiras angústias da agonia espiritual, que anunciam a separação ou a dissolução dos elementos intelectuais materiais, que compõem a primitiva dualidade humana, e devem desaparecer na grande unidade do ser acabado.
Jean Reynaud. n
Observação. – Recebidas
simultaneamente, estas três comunicações se complementam, apresentando
o castigo sob novo aspecto, eminentemente filosófico, um pouco mais
racional que as chamas do inferno, com suas cavernas guarnecidas de
navalhas. (Vide
A religião e o progresso, neste número.) É provável que os Espíritos,
querendo tratar a questão por um exemplo, tenham provocado, com esse
objetivo, a comunicação espontânea do Espírito culpado. [Vide O
Céu e o Inferno. — 2ª Parte: Lapommeray: Castigo pela luz.]
[1]
[v. Lamennais.]
[2] [Vide
a Nota inicial onde Kardec faz referência a um Espírito que se
manifestou espontaneamente à Sra. Costel e não ao Sr.
Costel, a menos que ambos fossem médiuns.]
[3] [v.
Jean
Reynaud.]