Não é sem a mais grata emoção que venho entreter-me convosco, caros espíritas do grupo lionês. Sinto-me tomado de simpatia e de ternura num meio como o vosso, onde todas as condições sociais se dão as mãos, e feliz por vos poder anunciar que nós todos, os iniciadores do Espiritismo na França, assistiremos com a mais viva alegria os vossos ágapes fraternais, aos quais fomos convidados por João e Irineu, vossos eminentes guias espirituais. Ah! esses ágapes despertam em meu coração a lembrança daqueles em que todos nos reuníamos, mil e oitocentos anos atrás, quando combatíamos os costumes dissolutos do paganismo romano e já comentávamos os ensinos e parábolas do Filho do Homem, morto pela propagação de uma ideia santa, sobre o lenho da infâmia! Se o Altíssimo, meus amigos, por efeito de sua infinita misericórdia, permitisse que a lembrança do passado pudesse resplandecer um instante em vossas memórias entorpecidas, recordar-vos-íeis dessa época, ilustrada pelos santos mártires da plêiade lionesa: Sanctus, Alexandre, Attale, Episode; a doce e corajosa Blandina; Irineu, o intrépido bispo, dos quais muitos de entre vós então formáveis cortejo, aplaudindo-lhes o heroísmo e entoando louvores ao Senhor; também vos lembraríeis de que vários dos que me escutam regaram com o seu sangue a terra lionesa, esta terra fecunda que Eucher † e Gregório de Tours † chamaram a pátria dos mártires. Não os mencionarei; mas podeis considerar os que, em vossos grupos, desempenham uma missão, um apostolado, como já tendo sido mártires da propagação da ideia igualitária, ensinada do alto do Gólgota † por nosso Cristo bem-amado! Hoje, caros discípulos, aquele que foi sagrado por São Paulo vem dizer-vos que vossa missão é sempre a mesma, porquanto o paganismo romano, sempre de pé, sempre vivaz, ainda enlaça o mundo, como a hera enleia o carvalho. Deveis, pois, espalhar entre os vossos irmãos infelizes, escravos de suas paixões ou das paixões alheias, a sã e consoladora doutrina que meus amigos e eu viemos vos revelar, por nossos médiuns de todos os países. Apesar disso, constatamos que os tempos progrediram, os costumes já não são os mesmos e a Humanidade cresceu; porque hoje, se fôsseis alvo de perseguição, esta não mais emanaria de um poder tirânico e invejoso, como no tempo da igreja primitiva, mas de interesses coligados contra a ideia e contra vós, os apóstolos da ideia.
Acabo de pronunciar a palavra igualitária. Julgo útil deter-me um pouco nela, porque absolutamente não vimos pregar, em vosso meio, utopias impraticáveis, e também porque, ao contrário, repelimos com energia tudo quanto pareça ligar-se às prescrições de um comunismo antisocial; antes de tudo, somos essencialmente propagandistas da liberdade individual, indispensável ao desenvolvimento dos encarnados; por conseguinte, inimigos declarados de tudo quanto se aproxime dessas legislações conventuais, que aniquilam brutalmente os indivíduos. Embora eu me dirija a um auditório, em parte composto de artífices e proletários, sei que suas consciências, esclarecidas pelas irradiações da verdade espírita, já repeliram toda comunhão com as teorias antisociais dadas em apoio da palavra igualdade. Seja como for, devo restituir a ela sua significação cristã, tal como a explicara aquele que disse: “Dai a César o que é de César.” ( † ) Pois bem, espíritas! a igualdade proclamada pelo Cristo, e que nós mesmos professamos nos vossos grupos amados, é a igualdade perante a justiça de Deus, isto é, nosso direito, conforme nosso dever cumprido, de subir na hierarquia dos Espíritos e um dia atingir os mundos avançados, onde reina a perfeita felicidade. Para isto não são levados em conta nem o nascimento, nem a fortuna; o pobre e o fraco a alcançam, como o rico e o poderoso, porque uns não levam materialmente mais que os outros; e como lá ninguém compra seu lugar e seu perdão com dinheiro, os direitos são iguais para todos. Igualdade diante de Deus: eis a verdadeira igualdade. Não vos será perguntado o que possuístes, mas o uso que fizestes do que possuístes. Ora, quanto mais possuirdes, mais demoradas e mais difíceis serão as contas que tereis de prestar da vossa gestão. Assim, pois, conforme as vossas existências de missões, de provas ou de castigos nas paragens terrenas, cada um de vós, consoante as boas ou más obras, progredirá na escala dos seres ou recomeçará, mais cedo ou mais tarde, a sua existência, caso se tenha desviado.
Em consequência, repito, ao proclamar o dogma sagrado da igualdade, não vimos ensinar que aqui na Terra deveis ser todos iguais em riqueza, saber e felicidade, mas, sim, que todos chegareis, quando soar a hora e conforme os vossos méritos, à felicidade dos eleitos, partilha das almas de escol, que cumpriram seus deveres. Meus caros espíritas, eis a igualdade à qual todos tendes direito, a que vos conduzirá o Espiritismo emancipador, a que vos convido com todas as minhas forças. Para alcançá-la, que deveis fazer? Obedecer a estas duas palavras sublimes: amor e caridade, que resumem admiravelmente a lei e os profetas. Amor e caridade! Ah! aquele que, segundo sua consciência, cumprir as prescrições desta máxima divina estará certo de subir, de transpor rapidamente os degraus da escada de Jacó e de logo atingir as esferas elevadas, de onde poderá adorar, contemplar e compreender a majestade do Eterno.
Não podeis acreditar quanto nos é doce e agradável presidir ao vosso banquete, onde o rico e o artesão sé acotovelam, brindando à fraternidade; onde o judeu, o católico e o protestante podem sentar-se à mesma comunhão pascal. Não podeis imaginar quanto me sinto orgulhoso de distribuir a cada um de vós os elogios e o encorajamento que o Espírito de Verdade, nosso bem-amado mestre, n ordenou-me conferisse às vossas piedosas coortes. A ti, Dijoud, e à tua digna companheira; e a vós todos, devotados missionários, que espalhais os benefícios do Espiritismo, obrigado por vosso concurso e por vosso zelo; mas a nobreza obriga, meus irmãos, sobretudo a do coração, e seríeis muito culpados, muito criminosos se faltásseis, no futuro, às vossas santas missões. Não falhareis; tenho como garantia o bem que realizastes e o que vos resta fazer. Mas é a vós, meus bem-amados irmãos do labor quotidiano, que reservo minhas mais sinceras felicitações, porque, bem o sei, subis penosamente o vosso Gólgota, levando, como o Cristo, a vossa cruz dolorosa. O que vos poderia dizer de mais elogioso que lembrar a coragem e a resignação com que suportais os desastres inauditos que a luta fratricida, n mas necessária, das duas Américas engendra em vosso meio? Ah! ninguém pode negar já se faça sentir a benéfica influência do Espiritismo; ela penetrou, com a esperança e a fé, no ambiente das oficinas; e quando nos lembramos dos tempos do último reinado, em que, desde que faltava o trabalho, os operários desciam da Croix-Rousse † para os Terreaux † , n em grupos tumultuosos, fazendo pressagiar motins, cuja repressão era terrível, devemos agradecer a Deus a nova revelação. Com efeito, segundo esta imagem vulgar, de que se servem em sua linguagem pitoresca, muitas vezes é preciso dançar diante do bufê; n então dizem, apertando o cinto: Ah! comeremos amanhã!!! Bem sei que a caridade pública e particular se movimenta e faz o que é possível; mas não é nisso que está o verdadeiro remédio. A Humanidade precisa de algo melhor, razão por que, se o Cristianismo preconizou a igualdade e as leis igualitárias, o Espiritismo encerra em seus flancos a fraternidade e as suas leis, obra grandiosa e durável que os séculos futuros haverão de abençoar. Lembrai-vos, meus amigos, de que o Cristo escolheu seus apóstolos entre os últimos dos homens, e estes, mais fortes que os césares, conquistaram o mundo para a ideia cristã. A vós, pois, incumbe a obra santa de esclarecer os vossos companheiros de oficina e propagar a nossa sublime doutrina, que torna os homens tão fortes na adversidade, a fim de que o Espírito do mal e da revolta não venha suscitar o ódio e a vingança no coração de vossos irmãos ainda não tocados pela graça espírita. Esta obra vos pertence por inteiro, meus caros amigos; sei que a realizareis com o mesmo zelo e o mesmo ardor ditados pela consciência de um dever a cumprir. Um dia a História, reconhecida, escreverá em seus anais que os operários de Lyon, † iluminados pelo Espiritismo, muito mereceram da pátria em 1861 e 1862, pela coragem e resignação com que suportaram as tristes consequências das lutas escravagistas entre os Estados desunidos da América. Que importa! Esses tempos de lutas e de provas meus filhos, são abençoados por Deus, enviados para desenvolver a coragem, a paciência e a energia; para apressar a elevação e o aperfeiçoamento do orbe terrestre e dos Espíritos aprisionados nos laços carnais da matéria. Ide agora; a trincheira está aberta no Velho Mundo; sobre as suas ruínas aclamareis a era espírita da fraternidade, que vos mostra o objetivo e o fim das misérias humanas, consolando e fortalecendo vossos corações contra a luta e a adversidade; confundireis os incrédulos e os ímpios, e agradecereis a Deus o quinhão de vossos infortúnios e de vossas provas, porque estas vos aproximam da felicidade eterna.
Resta-me ainda vos dar alguns conselhos – embora os vossos guias muitas vezes já vos tenham dado – mas que minha posição pessoal e a atual circunstância me aconselham a vos lembrar novamente. Meus amigos, aqui me dirijo a todos os espíritas, a todos os grupos, a fim de que nenhuma cisão, nenhuma dissidência, nenhum cisma venha surgir entre vós, mas, ao contrário, que uma crença solidária vos anime e vos reúna a todos, pois isto é necessário ao desenvolvimento de nossa doutrina benfazeja. Sinto uma espécie de vontade que me constrange a vos pregar a concórdia e a união, pois nisto, como em tudo, a união faz a força e tendes necessidade de ser fortaleza e união, a fim de que possais enfrentar as tempestades que se aproximam. E não só tendes necessidade de união entre vós, mas ainda com os vossos irmãos de todos os países. Eis por que vos concito a seguir o exemplo que vos deram os espíritas de Bordeaux, cujos grupos particulares formam, todos, os satélites de um grupo central; foi esse grupo central que pediu para entrar em comunhão com a Sociedade iniciadora de Paris, a primeira a receber os elementos de um corpo de doutrina e lançar as bases sérias para o estudo do Espiritismo, que todos nós, espíritas, professamos no mundo inteiro.
Sei que aquilo que vos digo aqui não será perdido; aliás, estou me referindo inteiramente aos conselhos que já recebestes, e ainda recebereis, dos vossos excelentes guias espirituais, que vos dirigirão nesta via salutar, pois é necessário que a luz se irradie do centro para a periferia e desta para o centro, a fim de que todos aproveitem e se beneficiem dos trabalhos de cada um. Aliás, é incontestável que, submetendo ao crisol da razão e da lógica todos os dados e todas as comunicações dos Espíritos, será fácil repelir o absurdo e o erro. Um médium pode ser fascinado, um grupo enganado; todavia, o controle severo dos outros grupos, a ciência adquirida e a autoridade moral dos chefes de grupos, bem assim as comunicações dos principais médiuns, que recebem um cunho de lógica e de autenticidade de nossos melhores Espíritos, rapidamente farão justiça aos ditados falsificados e astuciosos, emanados de uma turba de Espíritos enganadores, imperfeitos ou maus. n Repeli-os impiedosamente, e a todos esses Espíritos que aconselham com exclusividade, pregando a divisão e o isolamento. Quase sempre são Espíritos vaidosos e medíocres, que tendem a se impor aos homens fracos e crédulos, prodigalizando-lhes louvores exagerados, a fim de os fascinar e os manter sob domínio. Geralmente são Espíritos sedentos de poder, que, déspotas públicos ou privados quando vivos, ainda querem ter vítimas para tiranizar após a morte. Meus amigos, desconfiai, em geral, das comunicações que trazem um caráter de misticismo ou de estranheza, ou que prescrevem cerimônias e atos bizarros; então há sempre um motivo de legítima suspeita. Por outro lado, ficai certos de que uma verdade, quando deve ser revelada à Humanidade, é, por assim dizer, instantaneamente comunicada em todos os grupos sérios, que possuem médiuns sérios.
Enfim, creio ser bom repetir que ninguém é médium perfeito se estiver obsidiado; a obsessão é um dos maiores escolhos, e há manifesta obsessão quando um médium não está apto a receber comunicações senão de um Espírito especial, por mais alto que este procure colocar-se. Em consequência, todo médium, todo grupo que se julguem privilegiados por comunicações que só eles podem receber, ou que estejam sujeitos a práticas que beiram a superstição, encontram-se indubitavelmente sob o império de uma obsessão muito bem caracterizada. Digo tudo isto, meus amigos, porque existem no mundo médiuns fascinados por pérfidos Espíritos. Desmascarai impiedosamente esses Espíritos, se ousarem ainda profanar nomes venerados, dos quais se apoderam como ladrões e se enfeitam orgulhosamente, como fazem os lacaios com as roupas dos patrões; pregai-os no pelourinho sem piedade, caso persistam em desviar do bom caminho os cristãos honestos, os espíritas zelosos, cuja boa-fé iludiram. Numa palavra, deixai-me repetir o que já aconselhei aos espíritas parisienses: é melhor repelir dez verdades por algum tempo, do que admitir uma única mentira, uma só teoria errônea, porque poderíeis, sobre essa teoria e essa mentira, edificar todo um sistema, que desmoronaria ao primeiro sopro da verdade, qual se fora um monumento edificado sobre areia movediça, ao passo que se hoje rejeitardes certas verdades, certos princípios, porque não vos são demonstrados com clareza, logo um fato brutal ou uma demonstração irrefutável virá firmar a sua autenticidade.
A João, a Irineu, a Blandina, bem como a todos os vossos Espíritos protetores incumbe a tarefa de vos prevenir doravante contra os falsos profetas da erraticidade. O grande Espírito emancipador que preside aos nossos trabalhos, sob o olhar do Todo-Poderoso, proverá a isso, podeis crer-me. Quanto a mim, embora esteja mais particularmente ligado aos grupos parisienses, virei algumas vezes entreter-me convosco e acompanharei sempre com interesse os vossos trabalhos particulares.
Esperamos muito da província lionesa, e sabemos que não faltareis, nem uns nem outros, às vossas respectivas missões. Lembrai-vos de que o Cristianismo, trazido pelas legiões cesaristas, lançou, há quase dois mil anos, as primeiras sementes da renovação cristã em Vienne † n e Lyon, † de onde se propagaram rapidamente à Gália do Norte. Hoje o progresso deve realizar-se numa radiação nova, isto é, do Norte ao Sul. À obra, pois, lioneses! É preciso que a verdade triunfe, e não é sem uma legítima impaciência que esperamos a hora em que soará a trombeta de prata, a nos anunciar o vosso primeiro combate e a vossa primeira vitória.
Permiti agora agradecer o recolhimento com que me ouvistes e a simpática acolhida que me concedestes. Que Deus Todo-Poderoso, Senhor de todos nós, vos conceda a sua benevolência, espalhando sobre vós e sobre o seu servo muito humilde os tesouros de sua infinita misericórdia. Adeus! Lioneses, eu vos bendigo!
Erasto. n
[1]
N. do T.: Para algumas pessoas, este testemunho de Erasto vem reforçar
a opinião, vez por outra defendida, de que o Espírito de Verdade seria
o próprio Cristo. [Vide a
Revista Espírita de julho de 1866, sobre a qualificação de Espírito
de Verdade.]
[2] N. do T.: Erasto faz alusão à guerra da Secessão, nos Estados Unidos, iniciada em 1861.
[3] N. do T.: Grifos nossos.
[4] N. do T.: No original: danser devant le buffet – imagem vulgar que significa: não ter o que comer, passar por dificuldades, estar na miséria.
[5] [As
reflexões de Erasto a partir desse parágrafo encontram-se igualmente
no
Livro dos Médiuns, capítulo 31.]
[6] N. do T.: Erasto não se refere a Viena, capital da Áustria, mas à cidade francesa do mesmo nome, plantada às margens do Ródano (Rhône), rica em vestígios da época da dominação romana.
[7]
[v. Thomas
Erasto.]