O Caminho Escritura do Espiritismo Cristão.
Doutrina espírita - 1ª parte.

Índice |  Princípio  | Continuar

Revista espírita — Ano IV — Janeiro de 1861.

(Idioma francês)

Carta sobre a incredulidade.

[DIGRESSÕES FILOSÓFICAS — PELO SR. CANU.]
(Sumário)

1. PRIMEIRA PARTE.


Um dos nossos colegas, o Sr. Canu, outrora muito imbuído dos princípios materialistas, e que o Espiritismo levou a uma apreciação mais sadia das coisas, acusava-se de ter-se feito propagandista de doutrinas que hoje considera subversivas da ordem social. No intuito de reparar o que considera, com justa razão, uma falta, e esclarecer aqueles a quem havia transviado, escreveu a um de seus amigos uma carta, sobre a qual julgou por bem pedir a nossa opinião. Pareceu-nos que ela correspondia tão bem ao objetivo que ele se propunha, que lhe pedimos permissão para publicá-la, o que certamente agradará aos nossos leitores. Em vez de abordar francamente a questão do Espiritismo, que teria sido repelido pelas pessoas que não admitem ser a alma a sua base; sobretudo se em lugar de lhes expor sob os olhos os estranhos fenômenos que teriam negado, ou atribuído a causas ordinárias, ele remonta à sua origem. Procura, com razão, torná-las espiritualistas, antes de as tornar espíritas. Por um encadeamento de ideias perfeitamente lógico, chega à ideia espírita como consequência. Esta marcha, evidentemente, é a mais racional.

A extensão desta carta obriga-nos a dividir a sua publicação.


Paris,  †  10 de novembro de 1860.

Meu caro amigo,

Desejas uma longa carta sobre o Espiritismo. Esforçar-me-ei por te satisfazer como melhor puder, enquanto espero a remessa de uma importante obra sobre a matéria, a qual deve aparecer no fim do ano. n

Serei obrigado a começar por algumas considerações gerais, para o que será necessário remontar à origem do homem. Isto alongará um pouco a minha carta, mas é indispensável para a compreensão do assunto.


2. — Tudo passa! diz-se geralmente.

Sim; tudo passa. Mas em geral também se dá a esta expressão uma significação muito afastada da que lhe é própria.

Tudo passa, mas nada acaba, a não ser a forma.

Tudo passa, no sentido de que tudo marcha e segue o seu curso; mas não um curso cego e sem objetivo, embora jamais deva acabar.

O movimento é a grande lei do Universo, assim na ordem moral como na ordem física, e o fim do movimento é a progressão para o melhor. É um trabalho ativo, incessante e universal; é o que chamamos o progresso.

Tudo está submetido a esta lei, exceto Deus. Deus é o seu autor; a criatura lhe é instrumento e objeto.

A criação compõe-se de duas naturezas distintas: a natureza material e a natureza intelectual. Esta é o instrumento ativo; aquela é o instrumento passivo.

Esses dois instrumentos são complementos um do outro, isto é, um sem o outro seria de emprego inteiramente nulo. Sem a natureza intelectual, ou o espírito inteligente e ativo, a natureza material, isto é, a matéria ininteligente e inerte, seria perfeitamente inútil, nada podendo por si mesma. Sem a matéria inerte dar-se-ia o mesmo com o espírito inteligente.

Mesmo o instrumento mais perfeito seria como se não existisse, caso não houvesse alguém para dele se servir.

O mais hábil operário e o sábio da mais elevada ordem seriam tão impotentes quanto o mais completo idiota, se não tivessem instrumentos para desenvolver a sua ciência e fazê-la manifestar-se.

Eis aqui o momento e o lugar de fazer notar que o instrumento material não consiste somente na plaina do marceneiro, no cinzel do escultor, na paleta do pintor, no escalpelo do cirurgião, no compasso ou na luneta do astrônomo; consiste também na mão, na língua, nos olhos, no cérebro, numa palavra, na reunião de todos os órgãos materiais necessários à manifestação do pensamento, o que naturalmente implica a denominação de instrumento passivo à própria matéria sobre a qual a inteligência opera, por meio do instrumento propriamente dito. É assim que uma mesa, uma casa e um quadro, considerados nos elementos que os compõem, não são menos instrumentos que a serra, a plaina, o esquadro, a colher de pedreiro e o pincel que os produziram, que a mão e os olhos que os dirigiram; enfim, que o cérebro que presidiu a essa direção. Ora, tudo isto, inclusive o cérebro, foi o instrumento complexo de que se serviu a inteligência para manifestar o seu pensamento, sua vontade, que era produzir uma forma, e essa forma ou era uma mesa, ou uma casa, ou um quadro, etc.

Inerte por natureza, disforme por essência, a matéria não adquire propriedades úteis senão pela forma que se lhe imprime, o que levou um célebre fisiologista a dizer que a forma era mais necessária que a matéria, proposição talvez um tanto paradoxal, mas que prova a superioridade do papel desempenhado pela forma nas modificações da matéria. É conforme essa lei que o próprio Deus, se assim me posso exprimir, dispôs e modificou incessantemente os mundos e as criaturas que os habitam, de acordo com as formas que melhor convêm aos seus propósitos para a harmonização do Universo. E é sempre segundo essa mesma lei que as criaturas inteligentes, agindo incessantemente sobre a matéria, como o próprio Deus, mas secundariamente, concorrem para a sua transformação contínua, transformação em que cada grau, cada estágio é um passo no progresso, ao mesmo tempo que manifestação da inteligência que lhe deu origem.

É desse modo que tudo na criação está em movimento e sempre em progresso; que a missão da criatura inteligente é ativar esse movimento no sentido do progresso, o que realiza muitas vezes mesmo sem o saber; que o papel da criatura material é obedecer a esse movimento e manifestar o progresso da criatura inteligente; que a Criação, enfim, considerada em seu conjunto ou em suas partes, realiza incessantemente os desígnios de Deus.

Quantas criaturas inteligentes (sem sair do nosso planeta) desempenham uma missão da qual estão longe de suspeitar! E confesso que, de minha parte, ainda há bem pouco tempo eu era desse número. Nem por isso me sentiria constrangido em deixar aqui algumas palavras sobre a minha própria história. Haverás de perdoar-me essa pequena digressão, que pode ter seu lado útil.


3. — Educado na escola do dogma católico, não tendo desenvolvido a reflexão e o exame senão muito tarde, por muito tempo fui um crente fervoroso e cego; por certo não o esqueceste.

Mas sabes, também, que mais tarde caí no excesso contrário: da negação de certos princípios que minha razão não podia admitir, concluí pela negação absoluta. Sobretudo me revoltava o dogma da eternidade das penas. Eu não podia conciliar a ideia de um Deus, que me diziam infinitamente misericordioso, com a de um castigo perpétuo para uma falta passageira. O quadro do inferno, suas fornalhas, suas torturas materiais me parecia ridículo e uma paródia do Tártaro dos pagãos. Recapitulei minhas impressões de infância e lembrei-me de que, por ocasião da minha primeira comunhão, diziam-nos que não havia necessidade de orar pelos danados, porque isso de nada lhes serviria; aquele que não tivesse fé era votado às chamas, bastando uma dúvida sobre a infalibilidade da Igreja para se ser condenado às penas eternas; que o próprio bem que fizéssemos aqui não nos poderia salvar, considerando-se que Deus colocava a fé acima das melhores ações humanas. Essa doutrina me tornara impiedoso, endurecendo-me o coração. Olhava os homens com desconfiança e, à mais leve falta, eu cria ver ao meu .lado um condenado de quem devia fugir como da peste, e ao qual, em minha indignação, eu teria recusado um copo de água, dizendo-me a mim mesmo que Deus lhe recusaria ainda mais. Se ainda houvesse fogueiras, eu teria empurrado para elas todos os que não tivessem a fé ortodoxa, fosse ainda o meu próprio pai. Nesse estado de espírito eu não podia amar a Deus: tinha medo dele.

Mais tarde uma porção de circunstâncias demasiado longas para enumerar, vieram abrir-me os olhos e eu rejeitei os dogmas que não se conciliavam com a minha razão, porque ninguém me havia ensinado a pôr a moral acima da forma. Do fanatismo religioso caí no fanatismo da incredulidade, a exemplo de tantos companheiros de infância.

Não entrarei em detalhes, que nos levariam muito longe. Apenas acrescentarei que, depois de haver perdido durante quinze anos a doce ilusão da existência de um Deus infinitamente bom, poderoso e sábio, da existência e da imortalidade da alma, enfim hoje encontro de novo, não uma ilusão, mas uma certeza tão completa quanto à de minha existência atual, quanto a de te escrever neste momento.

Eis, meu amigo, o grande acontecimento de nossa época, o grande acontecimento que nos é dado ver realizar-se em nossos dias: a prova material da existência e da imortalidade da alma.

Voltemos ao fato; mas para te fazer melhor compreender o Espiritismo, vamos remontar à origem do homem, não nos detendo nesse assunto por muito tempo.


4. — É evidente que os globos que povoam a imensidão não foram feitos unicamente tendo em vista a sua ornamentação. Têm também uma finalidade útil, ao lado da agradável: a de produzir e alimentar os seres vivos materiais, que são instrumentos apropriados e dóceis a essa multidão infinita de criaturas inteligentes que povoam o espaço e que são, definitivamente, a obra-prima, ou melhor, o objetivo da criação, pois que só elas têm a faculdade de conhecer, admirar e adorar o seu autor.

Cada um dos globos espalhados no espaço teve o seu começo, em relação à sua forma, num tempo mais ou menos recuado. Quanto à idade da matéria que o compõe, é um segredo que não nos importa aqui conhecer, uma vez que a forma é tudo para o objeto que nos ocupa. Com efeito, pouco nos importa que a matéria seja eterna, ou apenas de criação anterior à formação do astro, ou, finalmente, contemporânea a essa formação. O que é preciso saber é que o astro foi formado para ser habitado. Talvez não seja um despropósito acrescentar que essas formações não são feitas em um dia, como dizem as Escrituras; que um globo não sai repentinamente do nada já coberto de florestas, de prados e de habitantes, como Minerva  †  saiu armada, dos pés à cabeça, da cabeça de Júpiter.  †  Não; Deus procede, certamente, com mais lentidão; tudo segue uma lei lenta e progressiva, não porque Ele hesite ou tenha necessidade de lentidão, mas porque essas leis são assim e são imutáveis. Aliás, aquilo a que nós, seres efêmeros, chamamos lentidão, não o é para Deus, para quem o tempo nada representa.

Eis, pois, um globo em formação ou, se quiseres, já formado. Devem transcorrer ainda muitos séculos ou milhares de séculos antes que ele seja habitável, mas enfim chega o momento. Depois de modificações numerosas e sucessivas em sua superfície, pouco a pouco começa a se cobrir de vegetação (falo da Terra, não pretendendo fazer, a não ser por analogia, a história dos outros globos, cujo fim, evidentemente, é o mesmo, mas cujas modificações físicas podem variar). Ao lado da vegetação aparece a vida animal, uma e outra na sua maior simplicidade, pois sendo esses dois ramos do reino orgânico necessários um ao outro, fecundam-se mutuamente, alimentam-se reciprocamente, elaborando de comum acordo a matéria inorgânica, para torná-la cada vez mais apropriada à formação de seres sempre mais perfeitos, até que ela tenha atingido o ponto de poder produzir e alimentar o corpo que deve servir de habitação e de instrumento ao ser por excelência, isto é, ao ser intelectual que dele deve servir-se; que, por assim dizer, o espera para manifestar-se, pois, sem ele, não poderia fazê-lo.

Eis que chegamos ao homem! Como se formou ele? Ainda aí não é o problema. Formou-se segundo a grande lei da formação dos seres, eis tudo. Pelo fato de não ser conhecida, essa lei não deixa de existir. Como se formaram os primeiros exemplares de cada espécie de plantas? Os primeiros indivíduos de cada espécie de animal? Cada um deles se formou à sua maneira, segundo a mesma lei. O que é certo é que Deus não teve necessidade de se transformar em oleiro, nem de sujar as mãos no barro para formar o homem, nem de lhe arrancar uma costela para formar a mulher. Esta fábula, aparentemente absurda e ridícula, pode muito bem ser uma figura engenhosa, ocultando um sentido penetrável por Espíritos mais perspicazes que o meu; mas como disso nada entendo, vou me deter aqui.

Finalmente, eis o homem material habitando a Terra, ele próprio habitado por um ser imaterial, do qual é apenas o instrumento. Incapaz de algo por si mesmo, como a matéria em geral, não se torna apto para qualquer coisa senão pela inteligência que o anima; mas essa mesma inteligência, criatura imperfeita como tudo quanto é criatura, isto é, como tudo quanto não é Deus, tem necessidade de aperfeiçoar-se, e é precisamente em vista desse aperfeiçoamento que o corpo lhe foi dado, porquanto, sem a matéria, o Espírito não poderia manifestar-se, nem, consequentemente, melhorar-se, esclarecer-se e progredir, enfim.

Considerada coletivamente, a Humanidade é comparável ao indivíduo. Ignorante na infância, ela se esclarece à medida que os anos avançam, o que se explica naturalmente pelo mesmo estado de imperfeição em que se achavam os Espíritos, para cujo avanço a Humanidade foi feita. Mas quanto ao Espírito, considerado individualmente, não será numa única existência que poderá adquirir a soma de progresso que é chamado a realizar. Eis por que um número mais ou menos grande de existências corpóreas lhe são necessárias, conforme o emprego que tiver feito de cada uma delas. Quanto mais houver trabalhado para o seu adiantamento em cada existência, menos existências terá de suportar; e como cada existência corpórea é uma prova, uma expiação, um verdadeiro purgatório, tem interesse de progredir o mais rapidamente possível, a fim de sofrer menor número de provas, pois o Espírito não retrograda. Para ele cada progresso realizado é uma conquista assegurada, que não lhe poderá ser retirada. De acordo com esse princípio, hoje demonstrado, torna-se evidente que ele alcançará mais cedo o objetivo, quanto mais depressa caminhar.

Resulta do que precede que cada um de nós não se acha, hoje, em nossa primeira existência corporal, por muito que nos encontremos distanciados da última, porque nossas existências primitivas devem ter-se passado em mundos muito inferiores à Terra, à qual só chegamos quando nosso Espírito alcançou um estado de perfeição compatível com esse astro. Do mesmo modo, à medida que progredimos passamos a mundos superiores, sob todos os aspectos muito mais adiantados que a Terra, e isso de degrau em degrau, avançando sempre para o melhor. Mas antes de deixar um globo, parece que nele passamos várias existências, cujo número, todavia, não é limitado, mas subordinado à soma de progresso que houvermos realizado.


5. — Prevejo uma objeção em teus lábios. Dir-me-ás que tudo isto pode ser verdadeiro, mas como não me lembro de nada, o mesmo ocorrendo com os outros, tudo quanto se tiver passado em nossas precedentes existências é como se não se tivesse passado. E, se acontece o mesmo em cada nova existência, ao meu Espírito pouco importa ser imortal ou morrer com o corpo, se, conservando a sua individualidade, não tem consciência de sua identidade. Com efeito, para nós seria a mesma coisa, mas não é assim. Não perdemos a lembrança do passado senão durante a vida corporal, para readquiri-la com a morte, isto é, quando o Espírito despertar em sua verdadeira existência, a de Espírito livre, em relação à qual as existências corpóreas podem ser comparadas ao que o sono representa para o corpo.

Em que se tornam as almas dos mortos enquanto esperam uma nova reencarnação?

As que não deixam a Terra ficam errantes em sua superfície, vão sem dúvida aonde lhes apraz, ou, pelo menos, aonde podem, conforme o seu grau de adiantamento, mas, em geral, pouco se afastam dos vivos, principalmente daqueles a quem são afeiçoadas, quando têm afeição por alguém, a menos que lhes sejam impostos deveres a cumprir alhures. Estamos, pois, em todos os momentos, cercados por uma multidão de Espíritos conhecidos e desconhecidos, amigos e inimigos, que nos veem, nos observam e nos ouvem; alguns participam de nossas penas, bem como de nossas alegrias; outros sofrem com os nossos prazeres ou gozam com as nossas dores, enquanto outros, finalmente, mostram-se indiferentes a tudo, exatamente como acontece na Terra, entre os mortais, cujas afeições, antipatias, vícios e virtudes são conservados no outro mundo. A diferença é que os bons desfrutam na outra vida de uma felicidade desconhecida na Terra, o que se compreende muito bem; não têm necessidades materiais a satisfazer, nem obstáculos do mesmo gênero a ultrapassar. Se viveram bem, isto é, se nada têm ou pouco têm a se censurar em sua última existência corporal, gozam em paz o testemunho de sua consciência e do bem que fizeram. Se viveram mal, se foram maus, como lá estão a descoberto não podem mais dissimular sob o envoltório material, sofrendo a presença daqueles a quem ofenderam, desprezaram e oprimiram, bem como a impossibilidade, em que se encontram, de subtrair-se aos olhares de todos. Sofrem, finalmente, pelo remorso que os corrói, até que o arrependimento os venha aliviar, o que acontece mais cedo ou mais tarde, ou que uma nova encarnação os afaste, não às vistas de outros Espíritos, mas às próprias vistas, tirando-lhes momentaneamente a consciência de sua identidade. Desse modo, perdendo a lembrança do passado, sentem-se aliviados. Mas também é, para eles, o momento em que começa uma nova prova. Se dela tiverem a sorte de sair melhorados, gozarão o progresso realizado; se não se melhorarem, reencontrarão os mesmos tormentos, até que, finalmente, se arrependam ou aproveitem uma nova existência.


6. — Há um outro gênero de sofrimento: o experimentado pelos piores e mais perversos Espíritos. Inacessíveis à vergonha e ao remorso, estes não sentem os seus tormentos, embora seus sofrimentos sejam ainda mais vivos, porquanto, sempre inclinados ao mal, mas impotentes para o fazer, sofrem de inveja ao ver os outros mais felizes ou melhores que eles próprios, ao mesmo tempo sofrendo a raiva de não poderem saciar o seu ódio e entregar-se a todas as suas más inclinações. Oh! estes sofrem muito, mas, como te disse, sofrerão apenas enquanto não se melhorarem, ou, em outros termos, até o dia em que melhorarem. Muitas vezes não preveem esse termo; são tão maus, tão enceguecidos pelo mal, que não suspeitam a existência, ou a possibilidade da existência de um melhor estado de coisas, não imaginando, consequentemente, que seu sofrimento deve acabar um dia. É isso que os torna insensíveis ao mal e lhes agrava os tormentos. Como, porém, nem sempre podem fugir à sorte comum que Deus reserva, sem exceção, a todas as criaturas, chega finalmente um momento em que lhes é preciso seguir a rota ordinária; algumas vezes esse dia está mais próximo do que se poderia supor ao observar a sua perversidade. Foram vistos alguns que se converteram subitamente, e de repente seus sofrimentos cessaram; entretanto, ainda lhes restam rudes provas a suportar na Terra, em sua próxima encarnação. É preciso que se depurem, expiando as próprias faltas, e isto, definitivamente, é mais que justo; pelo menos não temem mais a perda do progresso realizado, pois não podem retroceder.

Eis aí, meu amigo, da mais clara e sucinta maneira, a exposição da filosofia do Espiritismo, tal qual me era possível fazê-lo numa carta. Dela encontrarás desenvolvimentos mais completos, até este momento, e os mais satisfatórios, em O Livro dos Espíritos, fonte onde bebi aquilo que me fez o que sou.

Passemos agora à prática.

(Conclusão no próximo número.)


[Revista de fevereiro de 1861.]

7. CARTA SOBRE A INCREDULIDADE.

(Conclusão. – Vide o nº de janeiro de 1861.)

Desde que o homem existe na Terra, existem Espíritos; e também desde então eles se manifestam aos homens. A História e a tradição estão repletas de provas nesse sentido; porém, seja porque uns não compreendessem os fenômenos de tais manifestações; seja porque outros não ousassem divulgá-los, por medo da cadeia ou da fogueira; seja porque os fatos fossem postos à conta de superstição ou de charlatanismo por pessoas preconceituosas, ou interessadas em que a luz não se fizesse; seja, finalmente, porque fossem levados à conta do demônio por uma outra classe de interessados, o certo é que, até estes últimos tempos, embora bem constatados, esses fenômenos ainda não tinham sido explicados de modo satisfatório ou, pelo menos, a verdadeira teoria ainda não havia caído no domínio público, provavelmente porque a Humanidade não se encontrava madura para isto, como para muitas outras coisas maravilhosas que se realizam em nossos dias. Estava reservada para a nossa época a eclosão, no mesmo cinquentenário, do vapor, da eletricidade, do magnetismo animal — pelo menos como ciências aplicadas — e, finalmente, do Espiritismo, de todas a mais maravilhosa, não só na constatação material de nossa existência imaterial e de nossa imortalidade, mas ainda no estabelecimento de relações, por assim dizer, materiais e constantes, entre nós e o mundo invisível.

Quantas consequências incalculáveis não brotarão de um acontecimento tão prodigioso! Mas, para não falar senão daquilo que no momento mais impressiona a generalidade dos homens, da morte, por exemplo, não a vemos reduzida ao seu verdadeiro papel de acidente natural e necessário – diria quase feliz – perdendo assim o seu caráter de acontecimento doloroso e terrível? Para os que a sofrem, ela representa o momento do despertar; desde o dia seguinte ao da morte de um ente querido, nós, que aqui ficamos, poderemos continuar nossas relações íntimas como no passado! Apenas mudaram as nossas relações materiais! Não o vemos mais, não o tocamos mais, não mais ouvimos a sua voz; mas continuamos a trocar com ele os nossos pensamentos, como em vida, e muitas vezes até, com mais proveito para nós. Depois disto, o que é que resta de tão doloroso? E se acrescentarmos ao que precede a certeza de que não mais estamos separados dele senão por alguns anos, alguns meses, talvez alguns dias, não será para transformar num simples acontecimento útil aquilo que até hoje, com raras exceções, os mais decididos não podiam encarar sem pavor, e que representa, por certo, o tormento incessante da vida inteira de muitos homens? Mas eu me afasto do assunto.


8. — Antes de te explicar a prática muito simples das comunicações, tentarei dar-te uma ideia da teoria fisiológica que elaborei para mim. Não a dou como certa, porquanto ainda não a vi explicada pela Ciência; mas pelo menos me parece que deve ser alguma coisa que se aproxima disso.

O Espírito age sobre a matéria tanto mais facilmente quanto mais esta se dispuser de maneira apropriada a receber a sua ação; daí por que não age diretamente sobre qualquer espécie de matéria, embora pudesse agir indiretamente se encontrasse entre ele e essa matéria, certas substâncias de uma organização graduada, que pusesse em contato os dois extremos, isto é, a matéria mais bruta com o Espírito. É assim que o Espírito de um homem vivo desloca pesados blocos de pedra, os trabalha, os combina com outros, com eles formando um todo que chamamos casa, coluna, igreja, palácio, etc. Foi o homem-corpo que fez tudo isso? Quem ousaria dizê-lo?… Sim. Foi ele quem o fez, como é minha pena que escreve esta carta. Mas voltemos ao assunto, porque ainda me sinto à deriva.

Como se põe o Espírito em contato com o pesado bloco que quer deslocar? Por meio da matéria escalonada entre ele e o bloco. A alavanca põe o bloco em relação com a mão; a mão põe a alavanca em relação com os músculos; os músculos põem a mão em relação com os nervos; os nervos põem os músculos em relação com o cérebro, e o cérebro põe os nervos em relação com o Espírito, a menos que haja uma matéria ainda mais delicada, um fluido que ponha o cérebro em relação com o Espírito. Seja como for, um intermediário a mais ou a menos não infirma a teoria. Quer aja o Espírito em primeira ou em segunda mão sobre o cérebro, age sempre de muito perto, de sorte que, retomando os contatos em sentido contrário, ou, antes, na sua ordem natural, eis o Espírito agindo sobre uma matéria extremamente delicada, organizada pela sabedoria do Criador, de maneira apropriada a receber diretamente, ou quase diretamente, a ação de sua vontade. Esta matéria, que é o cérebro, atua por meio de suas ramificações, a que chamamos nervos, sobre uma outra matéria menos delicada, mas que o é ainda bastante para receber a ação destes: os músculos; os músculos imprimem movimento às partes sólidas que são os ossos do braço e da mão, enquanto as outras partes da estrutura óssea, recebendo a mesma ação, servem de ponto de apoio ou de sustentação. Quando, por si mesma, a parte óssea ainda não ê suficientemente forte ou suficientemente longa para agir diretamente, multiplica a sua força utilizando-se da alavanca, e eis o pesado bloco inerte obedecendo docilmente à vontade do Espírito que, sem essa hierarquia intermediária, não teria exercido nenhuma ação sobre ele.

Procedendo do mais para o menos, eis que os menores feitos do Espírito ficam explicados, assim como, em sentido contrário, vê-se como o Espírito pode chegar a transportar montanhas, secar lagos, etc. E em tudo isso o corpo quase desaparece em meio à multidão de instrumentos necessários, entre os quais não representa senão o primeiro papel.

Quero escrever uma carta. Que devo fazer? Pôr uma folha de papel em relação com o meu Espírito, como pouco antes punha um bloco de pedra. Substituo a alavanca pela pena e a coisa está feita. Eis a folha de papel a repetir o pensamento do meu Espírito, como há pouco o movimento imprimido ao bloco manifestava a sua vontade.

Se meu Espírito quer transmitir mais diretamente, mais instantaneamente o seu pensamento ao teu, e desde que a isso nada se oponha, como a distância ou a interposição dum corpo sólido, sempre por meio do cérebro e dos nervos, ele põe em movimento o órgão da voz que, ferindo o ar de várias maneiras, produz certos sons variados e combinados, representando o pensamento, os quais vão repercutir sobre o teu órgão auditivo, que os transmite ao teu  Espírito por meio de teus nervos e de teu cérebro. E é sempre o pensamento manifestado e transmitido por uma série de agentes materiais graduados e interpostos entre seu princípio e seu objeto.


9. — Se a teoria precedente é verdadeira, nada é mais fácil agora, parece, que explicar o fenômeno das manifestações espíritas e, particularmente, da escrita mediúnica, a única que nos ocupa no momento.

Sendo a substância psíquica idêntica em todos os Espíritos, seu modo de ação sobre a matéria deve ser o mesmo para todos; só o seu poder pode variar em graus. Sendo a matéria dos nervos organizada de modo a poder receber a ação de um Espírito, não há razão para que não possa receber a ação de um outro, cuja natureza não difira da do primeiro; e considerando-se que a substância de todos os Espíritos é da mesma natureza, todos os Espíritos devem ser aptos a exercer, não direi a mesma ação, mas o mesmo modo de ação sobre a mesma substância, sempre que se acharem em condições de poder fazê-lo. Ora, é isto que acontece nas evocações.

O que é a evocação?

É um ato pelo qual um Espírito, titular de um corpo, pede a outro Espírito, ou, muito simplesmente, lhe permite servir-se de seu próprio órgão, de seu próprio instrumento, para manifestar o seu pensamento ou a sua vontade.

Nem por isso o Espírito titular abandona o seu corpo, embora possa muito bem neutralizar momentaneamente sua própria ação sobre o órgão da transmissão, deixando-o à disposição do Espírito evocado; este, porém, não pode servir-se dele senão enquanto o outro o permitir, em virtude do axioma de direito natural, de que cada um é senhor em sua casa. Deve-se dizer, contudo, que no Espiritismo, como nas sociedades humanas, acontece que o direito de propriedade nem sempre é escrupulosamente respeitado pelos senhores Espíritos, e que vários médiuns já foram surpreendidos mais de uma vez por terem dado hospedagem a criaturas que não foram convidadas e, menos ainda, desejadas. Mas isto é um dos mil insignificantes dissabores da vida, que devemos saber suportar, tanto mais que, na espécie, eles sempre têm o seu lado útil, ainda que fosse para nos experimentar, sendo, ao mesmo tempo, a prova mais patente da ação de um Espírito estranho sobre o nosso organismo, fazendo-nos escrever coisas que estávamos longe de imaginar, ou que não tínhamos a menor vontade de ouvir. Contudo, isso só acontece aos médiuns incipientes; quando adestrados, já não lhes acontece mais ou, pelo menos, já não se deixam surpreender.

Cada um é apto a ser médium? Naturalmente assim deveria ser, embora em graus diferentes, como sói acontecer com as mais diversas aptidões. É esta a opinião do Sr. Kardec. Há médiuns escreventes; médiuns videntes; médiuns audientes; médiuns intuitivos; isto é, médiuns que escrevem – os mais numerosos e os mais úteis; médiuns que veem os Espíritos; que os ouvem e conversam com eles como com os vivos – estes são raros; outros recebem em seu cérebro o pensamento do Espírito evocado e o transmitem pela palavra. Raramente um médium possui todas essas faculdades ao mesmo tempo. Existem ainda médiuns de outro gênero, cuja simples presença num lugar qualquer permite a manifestação dos Espíritos, quer por meio de golpes vibrados, quer pelo movimento dos corpos, tal como o deslocamento de uma mesinha de três pés, n o levantamento de uma cadeira, de uma mesa ou de qualquer outro objeto. Foi por esse meio que os Espíritos começaram a manifestar-se e a revelar a sua existência. Ouviste falar das mesas girantes e da dança das mesas; como eu, também riste delas. E daí? Foram os primeiros meios de que os Espíritos se serviram para chamar a atenção; assim foi reconhecida a sua presença, depois do que, com o auxílio da observação e do estudo, chegou-se a descobrir no homem faculdades até então ignoradas, por intermédio das quais ele pode entrar em comunicação direta com os Espíritos. Não é maravilhoso tudo isto? Entretanto é apenas natural; somente repito que à nossa época estava reservada a descoberta e a aplicação desta ciência, como de muitos outros segredos admiráveis da Natureza.


10. — Agora, para nos pormos em relação com os Espíritos, ou, pelo menos, para ver se estamos aptos a fazê-lo pela escrita, toma-se de uma folha de papel e de um lápis em boas condições, posicionando-se para escrever. É sempre bom começar por dirigir uma prece a Deus; em seguida evoca-se um Espírito, isto é, pede-se que tenha a bondade de vir comunicar-se conosco e de nos fazer escrever; por fim espera-se, sempre na mesma posição.

Há pessoas que têm a faculdade mediúnica de tal forma desenvolvida que já começam a escrever logo de início; outras, ao contrário, só veem essa faculdade desenvolver-se com o tempo e a perseverança. Neste último caso, repete-se a sessão todos os dias, para o que basta um quarto de hora; é inútil gastar mais tempo; mas, tanto quanto possível, deve-se repeti-la diariamente, sendo a perseverança uma das primeiras condições de sucesso. Também é necessário fazer sua prece e sua evocação com fervor; mesmo repeti-la durante o exercício; ter vontade firme, um grande desejo de ser bem-sucedido e, sobretudo, nada de distração. Uma vez obtida a escrita, essas últimas precauções tornam-se inúteis.

Quando se está para escrever, sente-se em geral um ligeiro estremecimento na mão, às vezes precedido de uma leve dormência na mão e no braço e, até mesmo, de discreta dor nos músculos do braço e da mão; são sinais precursores e, quase sempre, indicativos de que o momento do sucesso está próximo. Algumas vezes é imediato; outras, porém, se faz esperar ainda um ou vários dias, mas nunca tarda em demasia. Apenas para chegar nesse ponto é preciso mais ou menos tempo, que pode variar de um instante a seis meses; mas, repito, basta um quarto de hora de exercício por dia.

Quanto aos Espíritos que podem ser evocados para tais tipos de exercícios preparatórios, é preferível dirigir-se ao nosso Espírito familiar, que sempre está próximo e jamais nos deixa, ao passo que os outros podem estar ali apenas momentaneamente, ou não se encontrarem no instante em que os evocamos, ou, ainda, estarem impossibilitados, por uma causa qualquer, de atender ao nosso apelo, como por vezes acontece.

O Espírito familiar, que até certo ponto confirma a teoria católica do anjo-da-guarda, não é, entretanto, exatamente aquilo que nos apresenta o dogma católico. É simplesmente o Espírito de um mortal, que viveu como nós, mas que é muito mais adiantado que nós e, consequentemente, nos é infinitamente superior em bondade e em inteligência; que realiza uma missão meritória para si, proveitosa para nós, desse modo nos acompanhando neste mundo e no outro, até ser chamado a uma nova encarnação, ou até que nós mesmos, chegados a um certo grau de superioridade, sejamos chamados a realizar, na outra vida, missão semelhante junto a um mortal menos evoluído do que nós.

Como bem vês, meu caro amigo, tudo isto entra maravilhosamente nas nossas ideias de solidariedade universal. Tudo isto, mostrando-nos essa solidariedade estabelecida em todos os tempos e funcionando constantemente entre nós e o mundo invisível, prova-nos certamente que não é uma utopia de concepção humana, mas uma das leis da Natureza; que os primeiros pensadores que a pregavam não a inventaram, mas apenas a descobriram; que, enfim, estando nas leis da Natureza, será chamada fatalmente a se desenvolver nas sociedades humanas, apesar das resistências e dos obstáculos que ainda lhe possam contrapor seus cegos adversários. n


11. — Não me resta senão falar da maneira de evocar. É a coisa mais simples. Para isso não há nenhuma fórmula cabalística ou obrigatória; tu te diriges ao Espírito nos termos que te convêm: eis tudo.

Todavia, para fazer com que melhor compreendas a simplicidade da coisa, dar-te-ei a fórmula que eu mesmo emprego:

“Deus, Todo-Poderoso! Permiti a meu bom anjo (ou ao Espírito de fulano, caso se prefira evocar outro Espírito) comunicar-se comigo e fazer-me escrever.”Ou então: “Em nome de Deus Todo-Poderoso, rogo a meu bom anjo (ou o Espírito de…) que se comunique comigo.”

Agora queres saber o resultado de minha própria experiência. Ei-la:

Depois de mais ou menos seis semanas de exercícios infrutíferos, senti um dia a mão tremer, agitar-se e de repente traçar com o lápis caracteres informes. Nos exercícios seguintes esses caracteres, embora sempre ininteligíveis, tornaram-se mais regulares; eu escrevia linhas e páginas com a velocidade de minha escrita habitual, mas sempre ilegíveis. Outras vezes traçava rubricas de toda sorte, grandes, por vezes em todo o papel. Algumas vezes eram linhas retas, ora de alto a baixo, ora transversais. Outras vezes eram círculos, ora grandes, ora pequenos e tão repetidos uns sobre os outros que a folha de papel ficava completamente enegrecida pelo lápis.

Finalmente, depois de um mês de exercícios os mais variados, mas também os mais insignificantes, comecei a me aborrecer e pedi ao meu Espírito familiar que me fizesse pelo menos traçar letras, caso não pudesse fazer-me escrever palavras. Então obtive todas as letras do alfabeto, mas não consegui mais que isso.

Entrementes, minha mulher, que sempre tivera o pressentimento de não possuir a faculdade mediúnica decidiu-se, mesmo assim, a fazer experiências. Ao cabo de quinze dias de espera, pôs-se a escrever fluentemente e com grande facilidade. Foi mais feliz do que eu, fazendo-o com grande correção e de modo bastante legível.

Um dos nossos amigos conseguiu, desde o segundo exercício, rabiscar como eu, mas foi tudo. Nem por isso desanimamos, convencidos de que era uma prova e que, mais cedo ou mais tarde, escreveríamos. É fácil; só preciso ter paciência.

Numa outra carta entreter-te-ei com as comunicações que obtivemos por intermédio de minha mulher e que, por mais singulares pareçam, são muito concludentes quanto à existência dos Espíritos. Mas por hoje já chega; eu devia fazer-te uma exposição que, não obstante primária, pudesse abarcar o conjunto da teoria espírita. Espero que isto baste para excitar a tua curiosidade e, sobretudo, despertar o teu interesse. A leitura das obras especializadas a que te irás entregar fará o resto.

Esperando a obra prática da qual te falei, remeterei brevemente a obra filosófica intitulada: O Livro dos Espíritos.

Estuda, lê, relê, experimenta, trabalha e, sobretudo, não desanimes, porque a coisa vale a pena.

Além disso, não ligues atenção aos que riem; há muitos que não riem mais, embora ainda estejam de posse de todos os órgãos que até há pouco lhes serviam.

A ti e até logo.

Canu.



[1] [Estando essa carta datada de 10 de novembro de 1860 e, como a 2ª edição  do LIVRO DOS ESPÍRITOS apareceu em março de 1860 conforme anunciado na Revista de março, é de presumir-se que o autor refere-se à parte experimental da doutrina, O LIVRO DOS MÉDIUNS que após alguns adiamentos apareceu finalmente no início de janeiro de 1861.]


[2] N. do T.: Guéridon, no original francês.


[3] Por pouco que os fatos mais naturais, mas ainda não explicados, se prestem ao maravilhoso, cada um sabe com que habilidade a astúcia se apodera deles, e com que audácia os explora. Talvez ainda esteja nisso um dos maiores obstáculos à descoberta e, sobretudo, à vulgarização da verdade.


Abrir