O Caminho Escritura do Espiritismo Cristão.
Doutrina espírita - 1ª parte.

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O que é o Espiritismo.

(Primeira versão.)
(Idioma francês)

Capítulo primeiro.


PEQUENA CONFERÊNCIA ESPÍRITA.


PRIMEIRO DIÁLOGO. — O CRÍTICO.

1. O Visitante. — Confesso-vos, senhor, que a minha razão recusa admitir a realidade dos fenômenos estranhos atribuídos aos Espíritos, pois estou convencido de que estes últimos só existem na nossa imaginação. Eu me curvaria, entretanto, diante da evidência, se disso tivesse provas incontestáveis; por isso, solicito-vos a permissão de assistir somente a uma ou duas experiências, para não ser indiscreto, a fim de convencer-me, caso seja possível.


Allan Kardec. — Já que a vossa razão repele o que nós consideramos irrecusável, é porque a credes superior à de todas as pessoas que não compartilham de vossas opiniões. Não duvido do vosso talento e nem tenho a pretensão de supor a minha inteligência superior à vossa; admiti, pois, que eu esteja iludido, visto que é a vossa razão que vo-lo diz e não toquemos mais no assunto.


2. O Visitante. — Se, entretanto, conseguísseis convencer-me, visto que sou conhecido como antagonista das vossas ideias, isto seria um milagre eminentemente favorável à causa que defendeis.


A. K. Lamento muito, senhor, mas não tenho o dom de fazer milagres. Julgais que bastariam uma ou duas sessões para adquirirdes convicção? Seria, realmente, um verdadeiro prodígio; eu precisei mais de um ano de trabalho para ficar convencido, o que prova que não cheguei a esse estado de forma leviana. Além disso, senhor, não realizo sessões públicas e parece-me que vos enganastes sobre o fim das nossas reuniões, considerando-se que não fazemos experiências com vistas a satisfazer a curiosidade de quem quer que seja.


3. O Visitante. — Não procurais, pois, fazer prosélitos?


A. K. Para que faríamos de vós um prosélito, quando não o quereis ser? Não forço convicção alguma. Quando encontro pessoas que sinceramente desejam instruir-se e me dão a honra de pedir-me esclarecimentos, respondo-lhes no limite dos meus conhecimentos, o que, para mim, é um prazer e um dever; quanto, porém, aos antagonistas, que, como vós, têm convicções arraigadas, não dou um passo para delas afastá-los, já que é grande o número dos que se mostram bem dispostos, para que possamos perder o nosso tempo com aqueles que não o estão. Mais cedo ou mais tarde a convicção virá, diante dos próprios fatos, de modo que os mais incrédulos serão arrastados pela torrente; por ora, alguns partidários, de mais ou de menos, não farão qualquer diferença na balança. É por isso que jamais me vereis incomodado para atrair, às nossas ideias, aqueles que, como vós, têm boas razões para fugir delas.


4. O Visitante. — Haveria, entretanto, mais interesse em convencer-me do que o supondes. Permitis que me explique com franqueza e prometeis-me não vos ofender com as minhas palavras? São as minhas ideias sobre a coisa em si e não sobre a pessoa a quem me dirijo; posso respeitar a pessoa, sem partilhar de suas opiniões.


A. K.O Espiritismo me tem ensinado a não levar em conta essas mesquinhas suscetibilidades do amor-próprio, e não me ofender com palavras. Se as vossas expressões saírem dos limites da urbanidade e das conveniências, apenas concluirei que sois um homem mal-educado. Quanto a mim, prefiro deixar que os outros fiquem com os erros a compartilhar deles. Só por isso já vedes que o Espiritismo serve para alguma coisa.

Como já vós disse, senhor, não tenho a pretensão de vos fazer adotar a minha opinião; respeito a vossa, se é sincera, como desejo que respeiteis a minha. E, porque acreditais que o Espiritismo é um sonho sem sentido, por certo dissestes, vindo à minha casa: Vou ver um louco. Confessai-o francamente, pois com isso não me ofenderei. Todos os espíritas são loucos, é coisa sabida. Pois bem! Visto que julgais assim, receio transmitir-vos a minha enfermidade mental, causando-me surpresa ver que buscais, com tal pensamento, uma convicção que vos colocará no número dos loucos. Se já estais convencido de que não conseguiremos convencer-vos, vossa atitude é inútil, pois só terá por fim a curiosidade. Por favor, encerremos o assunto, pois não tenho tempo a perder em conversações sem objetivo.


5. O Visitante. — O homem pode enganar-se, deixar-se iludir, sem que por isso seja louco.


A. K. Falai com clareza; dizei logo, como tantos outros, que isto é moda que durará certo tempo; mas deveis admitir que um passatempo que, em alguns anos, tem conquistado milhões de partidários em todos os países, que conta entre seus adeptos sábios de toda ordem, que se propaga de preferência nas classes mais esclarecidas, é mania singular, que merece ser examinada.


6. O Visitante. — Tenho minhas ideias a respeito, é verdade, mas elas não se acham tão absolutamente firmadas, que eu não consinta em sacrificá-las à evidência. Já vos disse de outra vez, senhor, que teríeis certo interesse em me convencer. Confesso-vos que devo publicar um livro em que me proponho demonstrar ex professo (sic) a minha opinião sobre o que considero um erro; e como esse livro deve ter grande alcance, dando um golpe certeiro no Espiritismo, eu deixaria de publicá-lo caso ficasse convencido da realidade da vossa doutrina.


A. K.Eu sentiria muito, senhor, que ficásseis privado do beneficio que vos pode proporcionar um livro, que deve produzir tanto efeito; além disso, não tenho interesse algum em impedir a sua publicação; ao contrário, desejo-lhe grande circulação, pois assim ele nos servirá de prospecto e anúncio. Quando uma coisa é atacada, logo desperta a atenção das pessoas; há muita gente que quer ver os prós e os contras, e a crítica faz aparecer a verdade, mesmo aos olhos daqueles que não a procuravam ali; é assim que muitas vezes, sem querer, se faz propaganda daquilo que se quer combater. Por outro lado, a questão dos Espíritos é tão palpitante, choca de tal modo a curiosidade, que basta assinalá-la à atenção para que nasça o desejo de aprofundá-la. (1)


(1) N. de A. K.: Desde esta entrevista, escrita em 1859, a experiência veio demonstrar o pleno acerto desta proposição.


7. O Visitante. — Então, segundo o vosso entendimento, a crítica para nada serve, a opinião pública não vale coisa alguma?


A. K.Não considero a crítica como expressão da opinião pública, mas como juízo individual, que bem pode enganar-se. Lede a História e vereis quantos trabalhos importantes foram criticados, ao aparecer, sem que isso os excluísse do número das grandes obras; mas, quando uma coisa é má, não há elogio que a torne boa. Se o Espiritismo é uma falsidade, ele cairá por si mesmo;  ( † ) se, porém, é uma verdade, não há diatribe que possa fazer dele uma mentira. Vosso livro será uma apreciação pessoal, a refletir o vosso ponto de vista; a verdadeira opinião pública decidirá se julgastes com acerto. Procurarão examinar. Se, mais tarde, reconhecerem que vos enganastes, vosso livro se tornará ridículo como os que, até bem pouco tempo, foram publicados contra as teorias da circulação do sangue, da vacina, etc.

Esquecia-me, porém, de que íeis tratar a questão ex professo, o que equivale a dizer que a estudastes sobre todos os seus aspectos; que vistes tudo o que se pode ver, lestes tudo o que se tem escrito sobre a matéria, analisastes e comparastes as diversas opiniões; que vos achastes nas melhores condições de observação pessoal; que durante anos lhe consagrastes as vossas vigílias; em suma: que nada desprezastes para chegar à constatação da verdade. Devo crer que assim aconteceu, se sois um homem sério, porque somente aquele que fez tudo isso tem o direito de dizer que fala com conhecimento de causa. Que juízo formaríeis de um homem que se arvorasse em censor de uma obra literária ou de um quadro, embora não conhecesse a literatura, nem houvesse estudado a pintura? É de lógica elementar que o crítico conheça, não superficialmente, mas a fundo, aquilo de que fala, sem o que a sua opinião não terá valor algum.

Para combater um cálculo é preciso que se lhe oponha outro cálculo, o que exige saber calcular. O crítico não deve limitar-se a dizer que tal coisa é boa ou má; é preciso que justifique a própria opinião por meio de uma demonstração clara e categórica, baseada sobre os princípios da arte ou da ciência a que pertence o objeto da crítica. Como poderá fazê-lo se ignora esses princípios? Podereis apreciar as qualidades ou os defeitos de determinada máquina se não conheceis a mecânica? Não! Pois bem: o vosso juízo acerca do Espiritismo, que, aliás, não conheceis, não teria mais valor do que a opinião que emitísseis sobre a aludida máquina. A cada passo seríeis apanhado em flagrante delito de ignorância, porque aqueles que têm estudado a matéria logo verão que a desconheceis, concluindo, por conseguinte, que não sois um homem sério ou que agis de má-fé. Quer num caso, quer noutro, arriscai-vos a receber desmentido pouco lisonjeiro ao vosso amor-próprio.


8. O Visitante. — É justamente para evitar esse perigo que vim pedir-vos permissão para assistir a algumas experiências.


A. K.E julgais que isto vos baste para poder, ex professo, falar de Espiritismo? Como poderíeis compreender essas experiências e, com mais forte razão, julgá-las, se ainda não estudastes os princípios em que elas se baseiam? Como poderíeis apreciar o resultado, satisfatório ou não, de ensaios metalúrgicos, por exemplo, não conhecendo a fundo metalurgia? Permiti-me dizer-vos, senhor, que vosso projeto é absolutamente a mesma coisa que, não tendo estudado Matemática nem Astronomia, vos apresentásseis a um dos membros do Observatório, dizendo-lhe; “Senhor, quero escrever um livro sobre Astronomia e provar que o vosso sistema é falso; mas, como desconheço os menores rudimentos dessa ciência, deixai que, por uma ou duas vezes, eu me sirva de vossa luneta, o que me bastará para ficar sabendo tanto quanto vós”.

É somente por extensão de sentido que a palavra criticar se tornou sinônima de censurar, em sua acepção própria e segundo a etimologia, ela significa julgar, apreciar. A crítica pode, pois, ser aprovativa ou desaprovativa. Fazer a crítica de um livro não é necessariamente condená-lo; quem empreende essa tarefa deve fazê-lo sem ideias preconcebidas; porém, se antes de abrir o livro, já o condena em pensamento, o exame não pode ser imparcial.

Este é o caso da maioria dos que têm falado contra o Espiritismo. Formaram uma opinião apenas sobre o nome, fazendo qual juiz que proferisse uma sentença sem antes examinar as peças do processo. Tal julgamento é, por conseguinte, inteiramente falso e, em vez de convencer, tem provocado riso. Quanto às pessoas que estudaram seriamente a questão, a maior parte mudou de ideia, e mais de um adversário se tem tornado adepto do Espiritismo, ao reconhecer que o seu objetivo é muito diferente daquele que imaginava.


9. O Visitante. — Falais do exame dos livros em geral; acreditais que seja materialmente possível a um jornalista ler e estudar todos os que lhe passam pelas mãos, sobretudo quando se ocupam com teorias novas, que lhe seria preciso aprofundar e verificar? Seria o mesmo que exigir de um impressor que ele lesse todas as obras saídas de sua impressora.


A. K.A tão judicioso raciocínio não tenho outra resposta a dar senão que, quando nos falta o tempo para fazer conscienciosamente uma coisa, é melhor não fazê-la; é preferível produzir um só trabalho bom a fazer dez ruins.


10. O Visitante. — Não julgueis, senhor, que minha opinião se tenha formado levianamente; vi mesas girarem e produzirem sons; vi pessoas que supunham escrever sob a influência dos Espíritos; estou, porém, convencido de que em tudo isso só havia charlatanismo.


A. K.Quanto pagastes para ver essas coisas?


11. O Visitante. — Absolutamente nada, garanto.


A. K.Ora, aí tendes charlatães de uma espécie singular, que vão reabilitar o nome da sua classe. Até hoje ainda não se tinha visto charlatães desinteressados. Pelo fato de um gaiato se ter divertido assim, não se segue que as outras pessoas presentes hajam pactuado com ele. Aliás, com que fim elas se fariam cúmplices de uma mistificação? Para divertir a sociedade, direis… Concordo em que elas se prestassem alguma vez a tal brincadeira; quando, porém, essa brincadeira dura meses e anos, creio que o mistificado é o próprio mistificador. Será crível que, só pelo prazer de fazer que acreditem em uma coisa que ele sabe ser falsa, alguém vá passar horas inteiras à volta de uma mesa? Tal prazer não valeria a pena.

Antes de julgar isso uma fraude, é preciso, primeiro, indagar que interesse havia em enganar. Ora, não deixareis de convir que há situações que excluem toda suspeita de embuste; pessoas cujo caráter já é uma garantia de probidade.

Outro tanto não se daria se se tratasse de uma especulação, porque a tentação do ganho é má conselheira. Mas, admitindo mesmo que, neste último caso, ficasse bem comprovado uma manobra fraudulenta, isto não provaria coisa alguma contra a realidade do princípio, já que se pode abusar de tudo. Por vender-se vinho falsificado, não se deve concluir que não existe vinho puro. O Espiritismo não é mais responsável pelos atos daqueles que abusam e exploram o seu nome do que o é a ciência médica pelos atos dos charlatães que vendem suas drogas, ou a religião pelas ações dos maus sacerdotes, que corrompem o seu ministério.

Por sua novidade e mesmo por sua natureza, o Espiritismo se presta a abusos; ele, porém, fornece os meios para que os reconheçam, definindo claramente seu verdadeiro caráter e recusando toda solidariedade com aqueles que o explorassem ou desviassem do seu fim exclusivamente moral, para transformá-lo em meio de vida, em instrumento de adivinhação ou de investigações fúteis.

Considerando-se que o próprio Espiritismo traça os limites em que se encerra, define o que pode ou não dizer ou fazer, o que está ou não em suas atribuições, que aceita e o que repudia, toda falta recai sobre aqueles que, não se dando ao trabalho de estudá-lo, o julgam pelas aparências e que, por terem encontrado saltimbancos adornando-se sob o nome de espíritas, para atrair as pessoas, dizem com gravidade: eis o que é o Espiritismo. Sobre quem, afinal, cairá o ridículo? Não será sobre o saltimbanco, que usa do seu oficio nem sobre o Espiritismo, cuja doutrina escrita desmente tais asserções, mas sobre os críticos, que falam do que não sabem ou deturpam conscientemente a verdade. Aqueles que atribuem ao Espiritismo o que é contrário à sua essência fazem-no por ignorância ou má intenção; no primeiro caso há leviandade, no segundo, má-fé. Neste último caso, eles se assemelham a certos historiadores que, no interesse de sustentar um partido ou uma opinião, alteram os fatos históricos. Um partido que usa de tais meios fica desacreditado e não consegue o seu objetivo.

Notai bem, cavalheiro, que eu não pretendo que a crítica deva necessariamente aprovar nossas ideias, mesmo depois de as haver estudado; não criticamos de forma alguma aqueles que não pensam como nós. O que é evidente para nós pode não ser para vós outros; cada qual julga as coisas sob o seu ponto de vista, e do fato mais positivo nem todos tiram as mesmas consequências. Se um pintor, por exemplo, figura em seu quadro um cavalo branco, não faltará quem diga que essa cor não lhe fica bem, que a cor negra conviria mais, e nisto não cometerá erro; errará, porém, se, vendo que o cavalo é branco, afirmar que é negro. É o que faz a maioria dos nossos adversários.

Em resumo, senhor, todos têm inteira liberdade para aprovar ou censurar os princípios do Espiritismo, para deduzir deles as consequências boas ou más que lhes aprouver, porém a consciência impõe a todo crítico sério a obrigação de não dizer o contrário do que ele sabe que é. Ora, para isso, a primeira condição é ele não falar do que não conhece.


12. O Visitante. — Voltemos, por favor, às mesas girantes e falantes. Não poderia acontecer que elas fossem preparadas com algum artifício?


A. K.É sempre a mesma questão de boa-fé, a que já respondi. Quando a fraude for provada, eu vo-la reconhecerei; se descobrirdes fatos comprovados de embuste, charlatanismo, especulação ou abuso de confiança, fustigai-os e eu desde já vos declaro que não lhes tomarei a defesa, porque o Espiritismo sério é o primeiro a repudiá-los, e quem denunciar tais abusos o auxilia no trabalho de preveni-los e lhe presta importante serviço. Mas generalizar essas acusações, lançar sobre grande número de pessoas honradas a reprovação que só merecem alguns indivíduos isolados, é um abuso de outro gênero, porque é uma calúnia.

Se, como dissestes, admitíssemos que as mesas estivessem preparadas, seria preciso que o mecanismo empregado fosse bem engenhoso para fazê-las produzir movimentos e sons tão variados. Como, então, não se havia de conhecer o nome do hábil artista que os fabricou? Entretanto, ele deveria gozar de grande celebridade, visto que seus aparelhos estão espalhados pelas cinco partes do mundo. Dever-se-á admitir, também, que o seu processo é bem sutil, para poder adaptar-se à primeira mesa que se apresente, sem deixar sinal algum exterior que o denuncie. Como explicar que, desde Tertuliano, que já tratava das mesas girantes e falantes, até o presente, ninguém conseguiu ver nem descrever tal mecanismo?


13. O Visitante. — Eis o que vos ilude. Um célebre cirurgião reconheceu que certas pessoas podem, pela contração de um músculo da perna, produzir um ruído semelhante ao que atribuís à mesa, concluindo do fato que os médiuns se divertem à custa da credulidade dos assistentes.


A. K.Se é um estalido do músculo, não é então a mesa que está preparada. Visto que cada um explica a seu modo essa suposta fraude, fica provado que a verdadeira causa não é sabida.

Respeito a ciência desse sábio cirurgião; entretanto, somente acho que se apresentam algumas dificuldades da aplicação, às mesas falantes, da teoria indicada. A primeira é que é singular que essa faculdade, até o presente excepcional e encarada como um caso patológico, de repente se tenha tornado comum; a segunda, que é preciso ter muita vontade de mistificar para fazer estalar o músculo durante duas ou três horas seguidas, quando disso só resulta fadiga e dor; a terceira, que eu não compreendo bem como pode esse músculo responder às portas e paredes em que as pancadas são ouvidas; a quarta, finalmente, que é preciso dar a esse músculo estalante uma propriedade excepcional para que ele possa mover uma pesada mesa, levantá-la, abri-la, fechá-la, mantê-la suspensa sem ponto de apoio e, finalmente, fazê-la rebentar-se ao cair. Ninguém, por certo, desconfiava que esse músculo possuísse tanta virtude… (Revista Espírita, junho de 1859, pág. 141: O Músculo que range.)

O célebre cirurgião, de que falais, teria estudado o fenômeno da tiptologia sobre os indivíduos que os produzem? Não; ele constatou um efeito fisiológico anormal em algumas pessoas que nunca se ocuparam com mesas batedoras e, notando certa analogia entre esse efeito e o que essas mesas produzem, sem mais amplo exame concluiu, com toda a autoridade de sua ciência, que todos os que fazem com que as mesas falem devem ter a propriedade de fazer estalar o músculo curto-perônio, não passando de embusteiros, sejam eles príncipes ou operários, recebam ou não um pagamento. Ora, será que o referido cirurgião estudou, ao menos, o fenômeno da tiptologia em todas as suas fases? Verificou, por meio desse estalido muscular, se podia produzir todos os efeitos tiptológicos? Não; porque, do contrário, ele ficaria convencido da insuficiência do seu processo, o que não o impediu, porém, de proclamar sua descoberta em pleno Instituto de França. Não será tal juízo bastante comprometedor para um sábio? Quem pensa hoje nessa opinião? Confesso-vos que, se me tivesse de sujeitar a uma operação cirúrgica, hesitaria muito a me confiar a esse médico, temeroso de que ele não julgasse o meu mal com mais perspicácia.

E já que esse juízo procede de uma das autoridades em que pareceis querer apoiar-vos para aniquilar o Espiritismo, fico completamente sossegado quanto à força dos outros argumentos que quereis validar, a menos que os procureis em fontes mais autênticas.


14. O Visitante. — Entretanto, bem vedes que já passou a moda das mesas girantes, que durante algum tempo fizeram furor. Hoje, ninguém mais se ocupa com elas. Qual a razão disso, pois que se trata de uma coisa séria?


A. K.Porque das mesas girantes saiu uma coisa mais séria ainda: uma ciência e uma doutrina filosófica completas, do máximo interesse para os homens que refletem. Quando estes nada mais tiveram a aprender com a “dança” das mesas, não mais se ocuparam com elas. Para as pessoas fúteis, que nada querem aprofundar, esse fenômeno era um passatempo, um divertimento, que abandonaram quando dele se aborreceram. São pessoas com as quais a ciência não conta.

O período da curiosidade teve o seu tempo; sucedeu-lhe o da observação. O Espiritismo entrou, então, no domínio da gente séria, que com ele não se quer divertir, mas instruir-se. Por isso, as pessoas que o consideram como coisa grave não se prestam a qualquer experiência de curiosidade, e ainda menos a satisfazer a daqueles que se apresentam com pensamentos hostis; como não brincam, também não querem servir de brinquedo para os outros. Eu pertenço a esse número.


15. O Visitante.— No entanto, somente a experiência pode convencer, mesmo aquele que, no início, seja movido pela curiosidade. Se só trabalhais na presença de pessoas convictas, permiti que vos diga o seguinte: ensinais a quem já sabe.


A. K.Uma coisa é estar convencido, e outra é estar disposto a convencer-se; é a estes últimos que me dirijo e não aos que julgam humilhação vir escutar o que eles chamam devaneios. Com estes eu não me preocupo de modo algum. Quanto aos que manifestam sincero desejo de esclarecer-se, o melhor modo que têm para prová-lo é mostrar perseverança; são reconhecidos por outros sinais, e não apenas pelo desejo de ver uma ou duas experiências: esses querem trabalhar seriamente.

A convicção só se adquire com o tempo, por meio de uma série de observações feitas com cuidado todo particular. Os fenômenos espíritas diferem essencialmente dos que apresentam as nossas ciências exatas: não se produzem à vontade; é preciso que os colhamos de passagem. É observando muito e por muito tempo que se descobre uma porção de provas que escapam à primeira vista, sobretudo quando não se está familiarizado com as condições em que se pode encontrá-las, e ainda mais quando se vem com o espírito prevenido. As provas abundam para o observador assíduo e refletido: uma palavra, um fato aparentemente insignificante é, para ele, um raio de luz, uma confirmação; já para o observador superficial, ou que observa os fenômenos por simples curiosidade, os fatos não têm sentido. Esta a razão por que não me presto a fazer experiências sem resultado provável.


16. O Visitante.— Enfim, tudo deve ter começo. O aprendiz, que nada sabe, que nada viu, mas que deseja esclarecer-se, como poderá fazê-lo, se não lhe facultais os meios?


A. K.Faço grande distinção entre o incrédulo por ignorância e o incrédulo por sistema. Quando descubro alguém com disposições favoráveis, nada me custa esclarecê-lo; mas há pessoas em quem a vontade de instruir-se é apenas aparente; com estas perde-se o tempo, porque, se não encontram logo o que parecem buscar, e que talvez as incomodasse, se aparecesse, o pouco que veem não é suficiente para lhes destruir as prevenções; julgam mal os resultados obtidos e os transformam em objeto de zombaria, não havendo, por conseguinte, qualquer utilidade em lhos fornecer.

A quem deseja instruir-se, direi: “Não se pode fazer um curso de Espiritismo experimental como se faz um curso de Física ou de Química, visto que ninguém é senhor de produzir os fenômenos espíritas à vontade, e que as inteligências desses agentes fazem que se frustrem, muitas vezes, todas as nossas previsões. Aqueles que acidentalmente poderíeis ver não apresentam nexo algum, nem ligação necessária, sendo, portanto, pouco inteligíveis para vós. Instruí-vos primeiramente pela teoria, lede e meditai as obras que tratam dessa ciência; nelas aprendereis os princípios, encontrareis a descrição de todos os fenômenos, compreendereis a possibilidade deles pela explicação que elas vos darão, e pela descrição de grande número de fatos espontâneos de que pudestes ser testemunha sem os compreender, mas que vos voltarão à memória. Estareis em condições de apreciar e julgar todas as dificuldades que possam surgir e formareis, desse modo, uma primeira convicção moral. Então, quando se vos apresentar a ocasião de observar ou operar pessoalmente, compreendereis, qualquer que seja a ordem em que os fatos se mostrem, porque nada vereis de estranho.”

Eis aí, meu caro senhor, o que aconselho a todos que dizem querer instruir-se, e, pela resposta que dão, se neles há alguma coisa além da curiosidade.


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