O Caminho Escritura do Espiritismo Cristão.
Doutrina espírita - 1ª parte.

Índice |  Princípio  | Continuar

Obras póstumas — 2ª Parte.

(Idioma francês)

Capítulo 37.


CONSTITUIÇÃO DO ESPIRITISMO.

I. Considerações preliminares. — II. Dos cismas. — III. O chefe do Espiritismo. — IV. Comissão central. — V. Instituições acessórias e complementares da comissão centra. — VI. Amplitude de ação da comissão central. — VII. Os estatutos constitutivos. — VIII. Do programa das crenças. — IX. Vias e meios. — X. Allan Kardec e a nova constituição.


A Constituição do Espiritismo, Allan Kardec a inseriu na Revista de dezembro de 1868, mas sem os comentários que lhe acrescentou antes de morrer e que reproduzimos textualmente. A morte corpórea o deteve, quando se preparava para formular os Princípios fundamentais da Doutrina Espírita reconhecidos como verdades definitivas, o que os nossos leitores certamente lamentarão, como nós, porquanto esses princípios teriam completado aquela constituição por meio de apreciações lógicas e judiciosas. É o último manuscrito do Mestre e nós o lemos com profundo respeito.


EXPOSIÇÃO DE MOTIVOS.

I.


Considerações preliminares.


O Espiritismo teve, como todas as coisas, o seu período de gestação e, enquanto todas as questões, principais e acessórias, que dele derivam não se acharem resolvidas, somente pode dar resultados incompletos. Entreviu-se-lhe a finalidade, pressentiram-se-lhe as consequências, mas apenas de modo vago. Da incerteza sobre pontos ainda não determinados haviam forçosamente de nascer divergências sobre a maneira de os considerar; a unificação tinha que ser obra do tempo e se efetuou gradualmente à medida que os princípios se foram elucidando. Unicamente quando tiver desenvolvido todas as partes em que se desdobra é que a Doutrina formará um todo harmônico e só então se poderá julgar do que é o Espiritismo.

Enquanto ele não passava de uma opinião filosófica, não podia contar, da parte de seus adeptos, senão com a simpatia natural que a comunhão de ideias produz; nenhum laço sério podia existir entre eles, por falta de um programa claramente traçado. Esta, evidentemente, a causa fundamental da débil coesão e da instabilidade dos grupos e sociedades que logo se formaram. Por isso mesmo, constantemente procuramos, e com todas as nossas forças, afastar os espíritas do propósito de fundarem prematuramente qualquer instituição especial com base na Doutrina, antes que esta assentasse em alicerces sólidos. Fora exporem-se a fracassos inevitáveis, cujo efeito teria sido desastroso, pela impressão que produziriam no público e pelo desânimo em que lançariam os adeptos. Semelhantes fracassos talvez retardassem de um século o progresso definitivo da Doutrina, a cuja impotência se imputaria um insucesso devido, na realidade, à imprevidência. Por não saberem esperar, a fim de chegarem no momento exato, os muito apressados e os impacientes, em todos os tempos, hão comprometido as melhores causas. n

Não se deve pedir às coisas senão o que elas podem dar, à medida que se vão pondo em estado de produzir. Não se pode exigir de uma criança o que se pode esperar de um adulto, nem de uma árvore que acaba de ser plantada o que ela dará quando estiver em toda a sua pujança. O Espiritismo, em via de elaboração, somente resultados individuais podia dar; os resultados coletivos e gerais serão fruto do Espiritismo completo, que sucessivamente se desenvolverá.

Se bem não haja ele dito ainda sua última palavra sobre todos os pontos, aproxima-se do seu complemento e soou a hora de se lhe oferecer uma base forte e durável, suscetível, contudo, de receber todos os desenvolvimentos que as circunstâncias ulteriores comportem e que ofereça toda a segurança aos que inquiram quem lhe tomará as rédeas, depois daquele que lhe dirigiu os primeiros passos.

A Doutrina é, sem dúvida, imperecível, porque repousa nas leis da Natureza e porque, melhor do que qualquer outra, corresponde às legítimas aspirações dos homens. Entretanto, a sua difusão e a sua instalação definitiva podem ser adiantadas ou retardadas por circunstâncias várias, algumas das quais subordinadas à marcha geral das coisas, outras inerentes à própria doutrina, à sua constituição e à sua organização.

Conquanto a questão de substância seja preponderante em tudo e acabe sempre por prevalecer, a questão de forma tem aqui importância capital; poderia mesmo sobrepujar momentaneamente e suscitar embaraços e atrasos, conforme a maneira por que fosse resolvida.

Houvéramos, pois, feito coisa incompleta e deixado grandes dificuldades para o futuro, se não prevíssemos as que podem surgir. Com o intuito de evitá-las foi que elaboramos um plano de organização, pondo em jogo a experiência do passado, a fim de evitar os escolhos contra que se chocaram a maioria das doutrinas que apareceram no mundo.

O plano aqui exposto concebemo-lo há longo tempo, porque sempre nos preocupamos com o futuro do Espiritismo. Fazemo-lo pressentir, em diversas ocasiões, vagamente, é certo, mas o bastante para mostrar que não é esta, hoje, uma concepção nova e que, trabalhando na parte teórica da obra, não nos descuidávamos do lado prático.


II.


Dos cismas.


Uma questão que desde logo se apresenta é a dos cismas que poderão nascer no seio da Doutrina. Estará preservado deles o Espiritismo?

Não, certamente, porque terá, sobretudo no começo, de lutar contra as ideias pessoais, sempre absolutas, tenazes, refratárias a se amalgamarem com as ideias dos demais; e contra a ambição dos que, a despeito de tudo, se empenham por ligar seus nomes a uma inovação qualquer; dos que criam novidades só para poderem dizer que não pensam ou agem como os outros, pois lhes sofre o amor-próprio por ocuparem uma posição secundária.

Se, porém, o Espiritismo não pode escapar às fraquezas humanas, com as quais se tem de contar sempre, pode todavia neutralizar-lhes as consequências e isto é o essencial.

É de notar-se que os vários sistemas divergentes, surgidos na origem do Espiritismo, sobre a maneira de explicarem-se os fatos, foram desaparecendo à medida que a Doutrina se completou por meio da observação e de uma teoria racional. Hoje, raros partidários ainda contam esses primitivos sistemas. É este um fato notório, do qual se pode concluir que as últimas divergências se apagarão com a elucidação integral de todas as partes da Doutrina. Mas, haverá sempre os dissidentes, de ânimo prevenido e interessados, por um motivo ou outro, a constituir bando à parte. Contra a pretensão desses é que cumpre se premunam os demais.

Para assegurar-se, no futuro, a unidade, uma condição se faz indispensável: que todas as partes do conjunto da Doutrina sejam determinadas com precisão e clareza, sem que coisa alguma fique imprecisa. Para isso, procedemos de maneira que os nossos escritos não se prestem a interpretações contraditórias e cuidaremos de que assim aconteça sempre. Quando for dito peremptoriamente e sem ambiguidade que dois e dois são quatro, ninguém poderá pretender que se quis dizer que dois e dois fazem cinco.

Conseguintemente, seitas poderão formar-se ao lado da Doutrina, seitas que não lhe adotem os princípios ou todos os princípios, porém não dentro da Doutrina, por efeito de interpretação dos textos, como tantas se formaram sobre o sentido das próprias palavras do Evangelho. É este um primeiro ponto de capital importância.

O segundo ponto está em não se sair do âmbito das ideias práticas. Se é certo que a utopia da véspera se torna muitas vezes a verdade do dia seguinte, deixemos que o dia seguinte realize a utopia da véspera, porém não atravanquemos a Doutrina de princípios que possam ser considerados quiméricos e fazer que a repilam os homens positivos.

O terceiro ponto, enfim, é inerente ao caráter essencialmente progressivo da Doutrina. Pelo fato de ela não se embalar com sonhos irrealizáveis, não se segue que se imobilize no presente. Apoiada tão só nas leis da Natureza, não pode variar mais do que estas leis; mas, se uma nova lei for descoberta, tem ela que se pôr de acordo com essa lei. Não lhe cabe fechar a porta a nenhum progresso, sob pena de se suicidar. Assimilando todas as ideias reconhecidamente justas, de qualquer ordem que sejam, físicas ou metafísicas, ela jamais será ultrapassada, constituindo isso uma das principais garantias da sua perpetuidade.

Se, portanto, uma seita se formar à ilharga do Espiritismo, fundada ou não em seus princípios, de duas uma: ou essa seita estará com a verdade, ou não estará; se não estiver, cairá por si mesma, sob o ascendente da razão e do senso comum, como já sucedeu a tantas outras, através dos séculos; se suas ideias forem acertadas, mesmo que com relação a um único ponto, a Doutrina, que apenas procura o bem e o verdadeiro onde quer que se encontrem, as assimilará, de sorte que, em vez de ser absorvida, absorverá.

Se alguns de seus adeptos vierem a afastar-se, é que se acreditarão capazes de fazer coisa melhor; se realmente fizerem algo melhor, ela se esforçará por fazer outro tanto; se fizerem coisa má, deixará que a façam, certa de que, cedo ou tarde, o bem sobrepuja o mal e o que é verdadeiro predomina sobre o que é falso. Esta a única luta em que se empenhará.

Acrescentemos que a tolerância, fruto da caridade, que constitui a base da Doutrina Espírita, lhe impõe como um dever respeitar todas as crenças. Querendo ser aceita livremente, por convicção e não por constrangimento, proclamando a liberdade de consciência um direito natural imprescritível, diz: Se tenho razão, todos acabarão por pensar como eu; se estou em erro, acabarei por pensar como os outros. Em virtude destes princípios, não atirando pedras a ninguém, ela nenhum pretexto dará para represálias e deixará aos dissidentes toda a responsabilidade de suas palavras e de seus atos.

Não será, pois, invariável o programa da Doutrina, senão com referência aos princípios que hoje tenham passado à condição de verdades comprovadas. Com relação aos outros, não os admitirá, como há feito sempre, senão a título de hipóteses, até que sejam confirmados. Se lhe demonstrarem que está em erro acerca de um ponto, ela se modificará nesse ponto.

A verdade absoluta é eterna e, por isso mesmo, invariável. Mas, quem poderá lisonjear-se de possuí-la toda? No estado de imperfeição em que se acham os nossos conhecimentos, o que hoje nos parece falso pode amanhã ser reconhecido como verdadeiro, em consequência da descoberta de novas leis, e isso tanto na ordem moral, quanto na ordem física. Contra essa eventualidade, a Doutrina nunca deverá estar desprevenida. O princípio progressivo, que ela inscreve no seu código, será a salvaguarda da sua perenidade e a sua unidade se manterá, exatamente porque ela não assenta no princípio da imobilidade.

Esta, longe de ser uma força, se torna causa de fraqueza e de ruína, para quem não acompanha o movimento geral; quebra a unidade, porque os que querem avançar se separam dos que persistem em ficar atrás. Mas, acompanhando o movimento progressivo, cumpre faze-lo com prudência e evitar ir de cabeça baixa ao encontro dos devaneios da utopia e dos sistemas; cumpre faze-lo a tempo, nem muito cedo, nem muito tarde, e com conhecimento de causa.

Indiscutivelmente uma doutrina assente sobre tais bases tem que ser forte, em realidade, capaz de desafiar qualquer concorrência e de anular as pretensões dos seus competidores.

Aliás, a experiência já comprovou o acerto desta previsão. Tendo marchado sempre por esse caminho desde a sua origem, a Doutrina avança constantemente, mas sem precipitação, verificando sempre se é sólido o terreno onde pisa e medindo seus passos pelo estado da opinião. Há feito como o navegante que não prossegue sem ter na mão a sonda e sem consultar os ventos.


III.


O chefe do Espiritismo.


Mas quem será encarregado de manter o Espiritismo nessa senda? Quem terá o lazer e a perseverança necessários a se consagrar ao trabalho incessante que essa tarefa exige? Se o Espiritismo for entregue a si mesmo, sem guia, não será de temer que se desvie da sua rota? e que a malevolência, com a qual ainda estará por longo tempo em luta, não procure desfigurar-lhe o Espírito? É essa, com efeito, uma questão vital e cuja solução se reveste do maior interesse para o futuro da Doutrina.

A necessidade de uma direção central superior, guarda vigilante da unidade progressiva e dos interesses gerais da Doutrina, é tão evidente, que já causa inquietação o não ser visto, a surgir no horizonte, o seu condutor. Compreende-se que, sem uma autoridade moral, capaz de centralizar os trabalhos, os estudos e as observações, de dar a impulsão, de estimular os zelos, de defender os fracos, de sustentar os ânimos vacilantes, de ajudar com os conselhos da experiência, de fixar a opinião sobre os pontos incertos, o Espiritismo correria o risco de caminhar ao léu. Não somente essa direção é necessária, como também preciso se faz que preencha condições de força e de estabilidade suficientes para afrontar as tempestades.

Os que nenhuma autoridade admitem não compreendem os verdadeiros interesses da Doutrina. Se alguns pensam poder dispensar toda direção, a maioria, os que não se creem infalíveis e não depositam confiança absoluta em suas próprias luzes, se sentem necessitados de um ponto de apoio, de um guia, ainda que apenas para ajudá-los a caminhar com segurança. (Veja-se, na Revista de abril de 1866, pág. 111: O Espiritismo Independente.)

Reconhecida a necessidade de uma direção, de quem receberá poderes o chefe para exercê-la? Será ele aclamado pela universalidade dos adeptos? É coisa impraticável. Se ele se impuser por sua própria autoridade, uns o aceitarão, enquanto que outros o recusarão, e podem surgir vinte pretendentes, levantando bandeira contra bandeira. Fora ao mesmo tempo o despotismo e a anarquia. Semelhante ato seria próprio de um ambicioso e ninguém conviria menos do que um ambicioso, por isso mesmo orgulhoso, para chefiar uma doutrina que se baseia na abnegação, no devotamento, no desinteresse, na humildade. Colocado fora do princípio fundamental da Doutrina, outra coisa não poderia fazer, senão falsear-lhe o espírito. É o que inevitavelmente se daria, se de antemão se não adotassem medidas eficazes a prevenir esse inconveniente.

Admitamos, no entanto, houvesse um homem com todas as qualidades necessárias ao desempenho do seu mandato e que, por uma senda qualquer, chegasse à direção suprema. Os homens se sucedem e não se assemelham; depois de um bom, poderia vir um mau. Com o indivíduo, pode mudar o espírito da direção; sem maus desígnios, pode ele ter modos de ver mais ou menos justos; se entender de fazer que prevaleçam suas ideias pessoais, pode levar a Doutrina a transviar-se, suscitar dissidências e as mesmas dificuldades se renovarão a cada mudança. É preciso não esquecer que o Espiritismo ainda não está na plenitude da sua força. Do ponto de vista da organização é uma criança que mal começa a andar. Insta, pois, sobretudo no princípio, premuni-lo contra os obstáculos do caminho.

Mas, dir-se-á, não virá estar à frente do Espiritismo um dos Espíritos que, segundo foi anunciado, tem que tomar parte na obra de regeneração? É provável; todavia, como esses Espíritos não trarão na fronte um sinal para serem reconhecidos; como não se farão reconhecer como tais pela maioria, senão depois de terem morrido, conformemente ao que houverem produzido durante a vida; como, ao demais, não serão perpétuos, mister se torna prever todas as eventualidades.

É sabido que eles terão uma missão multíplice; que serão de todos os graus da escala espiritual e se encontrarão nos diversos ramos da economia social [sociedade], onde cada um exercerá influência a favor das novas ideias, conforme a particularidade da sua posição; que todos, pois, trabalharão pelo ascendente da Doutrina, aqui e ali uns como chefes de Estado, outros como legistas, outros como magistrados, sábios, literatos, oradores, industriais, etc.; que cada um dará provas de si onde lhe caiba exercer sua atividade, desde o proletário até o soberano, sem que qualquer coisa os distinga do comum dos homens, a não serem suas obras. Se a um deles couber tomar parte na direção, é provável que seja posto providencialmente na posição apropriada a faze-lo chegar lá pelos meios legais que forem adotados, circunstâncias aparentemente fortuitas até lá o conduzirão, sem que de sua parte haja desígnio premeditado, sem mesmo ter ele consciência de sua missão. (Revista Espírita: Os messias do Espiritismo, fevereiro-março de 1868, páginas 45 e 65. [Comentários sobre os messias do Espiritismo.])

Em tal caso, o pior de todos os chefes seria o que se desse por eleito de Deus. Como não é racional se admita que Deus confie tais missões a ambiciosos ou a orgulhosos, as virtudes características de um verdadeiro messias têm que ser, antes de tudo, a simplicidade, a humildade, a modéstia, numa palavra, o mais completo desinteresse material e moral. Ora, a só pretensão de ser um messias constituiria a negação dessas qualidades essenciais; provaria, naquele que se prevalecesse de semelhante título, ou tola presunção, em havendo boa-fé, ou insigne impostura.

Não faltarão intrigantes, pseudo-espíritas, que queiram elevar-se por orgulho, ambição ou cupidez; outros que estadeiem pretensas revelações com o auxílio das quais procurem salientar-se e fascinar as imaginações por demais crédulas. É também de prever que, sob falsas aparências, indivíduos haja que tentem apoderar-se do leme, com a ideia preconcebida de fazerem soçobrar o navio, desviando-o da sua rota. O navio não soçobrará, mas poderia sofrer prejudiciais atrasos que se devem evitar.

São esses, sem contestação, os maiores escolhos de que o Espiritismo precisa preservar-se. Quanto maior consistência ele adquirir, tanto mais ciladas lhe armarão seus adversários. É, portanto, dever de todos os espíritas sinceros anular as manobras da intriga que se possam urdir, assim nos pequenos, como nos grandes centros. Deverão eles, em primeiro lugar, repudiar, do modo mais absoluto, todo aquele que por si mesmo se apresente qual messias, quer como chefe do Espiritismo, quer como simples apóstolo da Doutrina. Pelo fruto é que se conhece a árvore; espere-se, pois, que a árvore dê seu fruto, para decidir se ela é boa e veja-se também se os frutos têm sabor. (O Evangelho segundo o Espiritismo, capítulo XXI, nº 9: Caracteres do verdadeiro profeta.)

Houve quem propusesse que os candidatos fossem designados pelos próprios Espíritos em cada grupo ou sociedade espírita. Além de que este meio não obviaria a todos os inconvenientes, apresentaria outros, peculiares a semelhante modo de proceder, que a experiência já demonstrou e que fora supérfluo lembrar aqui. Não se deve perder de vista que a missão dos Espíritos consiste em nos instruir, para que nos melhoremos, porém não em se sobreporem ao nosso livre-arbítrio. Eles nos sugerem ideias, ajudam com seus conselhos, principalmente no que concerne às questões morais, mas deixam ao nosso raciocínio o encargo da execução das coisas materiais, encargo a que não lhes cabe poupar-nos. Contentem-se os homens com o serem assistidos e protegidos por Espíritos bons; não descarreguem, porém, sobre eles, a responsabilidade que incumbe ao encarnado.

Esse meio, aliás, suscitaria maiores embaraços do que se poderia supor, pela dificuldade de fazer-se que todos os grupos participassem de semelhante eleição. Seria uma complicação nas rodagens e estas tanto menos suscetíveis se mostrarão de desarranjar-se, quanto mais simplificadas forem.

O problema é, pois, o de constituir-se uma direção central em condições, de força e estabilidade, que a ponham ao abrigo de todas as flutuações; que correspondam a todas as necessidades da causa e oponham intransponível barreira às tramas da intriga e da ambição. Tal o objetivo do plano de que vamos dar um rápido esboço.


IV.


Comissão central.


Durante o período de elaboração, a direção do Espiritismo teve que ser individual; era necessário que todos os elementos constitutivos da Doutrina, saídos, no estado de embriões, de uma multidão de focos, se dirigissem para um centro comum, a fim de serem aí examinados e cotejados, de sorte que um só pensamento presidisse à coordenação deles, a fim de estabelecer-se a unidade no conjunto e a harmonia entre todas as partes. Se não fosse assim, a Doutrina se teria assemelhado a um mecanismo cujas rodas não se engrenam com precisão umas nas outras.

Já o temos dito, por ser verdade incontestável, hoje claramente demonstrada: a Doutrina não podia sair, de um único centro, completamente estruturada, da mesma maneira que toda a ciência astronômica não poderia sair, inteiramente constituída, de um único observatório. Qualquer centro que tentasse erguê-la exclusivamente sobre as suas observações faria coisa incompleta e se acharia, com relação a uma infinidade de pontos, em contradição com os outros. Se mil centros quisessem fazer cada um a sua doutrina, não haveria duas iguais em todos os pontos. Se estivessem de acordo quanto aos fundamentos, difeririam inevitavelmente quanto à forma. Ora, como há muita gente que atenta mais na forma do que na substância, tantas seriam as seitas quantas as formas diferentes. Somente do conjunto e da comparação de todos os resultados parciais podia resultar a unidade. Por isso é que era necessária a concentração dos trabalhos. (A Gênese, capítulo I: Caráter da revelação espírita n.os 51 e seguintes.)

Mas, o que era de vantagem por um certo tempo mais tarde se tornaria inconveniente. Hoje, que o trabalho de elaboração se acha concluído, no que concerne às questões fundamentais; que estabelecidos se encontram os princípios gerais da Ciência, a direção, de individual que houve de ser em começo, tem que se tornar coletiva, primeiramente, porque um momento há de vir em que o seu peso excederá as forças de um homem e, em segundo lugar, porque maior garantia apresenta um conjunto de indivíduos, a cada um dos quais caiba apenas um voto e que nada podem sem o concurso mútuo, do que um só indivíduo, capaz de abusar da sua autoridade e de querer que predominem as suas ideias pessoais.

Em vez de um chefe único, a direção será confiada a uma comissão central permanente, cuja organização e atribuições se definam de maneira a não dar azo ao arbítrio. Essa comissão se comporá, no máximo, de doze membros titulares, que deverão, para tal efeito, preencher certas condições indispensáveis, e de igual número de conselheiros. Ela se completará a si mesma, segundo regras igualmente determinadas, à medida que em seu seio se derem vagas por falecimentos ou por outras causas. Uma disposição especial estabelecerá o modo por que serão nomeados os doze primeiros.

A comissão nomeará o seu presidente por um ano.

Puramente administrativa será a autoridade do presidente. Ele dirigirá as deliberações da comissão, velará pela execução dos trabalhos e pelo expediente; mas, fora das atribuições que os estatutos constitutivos lhe conferirem, nenhuma decisão poderá tomar sem o concurso da comissão. Portanto, não haverá possibilidade de abusos, nem alimentos para a ambição, nem pretextos para intrigas ou ciúmes, nem supremacia chocante.

A comissão central será, pois, a cabeça, o verdadeiro chefe do Espiritismo, chefe coletivo, que nada poderá sem o assentimento da maioria. Suficientemente numeroso para se esclarecer por meio da discussão, não o será bastante para que haja confusão.

A autoridade da comissão central será temperada e seus atos fiscalizados pelos congressos ou assembleias gerais, de que adiante falaremos.

Para a comunidade dos adeptos, a aprovação ou a desaprovação, o consentimento ou a recusa, as decisões em suma, de um corpo constituído, representando opinião coletiva, forçosamente terão uma autoridade que jamais teriam, se emanassem de um só indivíduo, que apenas representa uma opinião pessoal. É frequente uma pessoa rejeitar a opinião de outra, por entender que se humilharia, caso se submetesse a essa opinião, e acatar sem dificuldades a de muitos.

Fica bem entendido que aqui se trata de autoridade moral, no que respeita à interpretação e aplicação dos princípios da Doutrina, e não de um poder disciplinar qualquer. Essa autoridade será, em matéria de Espiritismo, o que é a de uma academia, em matéria de Ciência.

Para o público estranho, um corpo constituído tem maior ascendente e preponderância; contra os adversários, sobretudo, apresenta uma força de resistência e dispõe de meios de ação com que um indivíduo não poderia contar; aquele luta com vantagens infinitamente maiores. Uma individualidade está sujeita a ser atacada e aniquilada; o mesmo já não se dá com uma entidade coletiva.

Semelhante entidade oferece garantias de estabilidade, que não existe, quando tudo recai sobre uma cabeça única. Desde que o indivíduo se ache impedido por uma causa qualquer, tudo fica paralisado. A entidade coletiva, ao contrário, se perpetua incessantemente. Embora perca um ou vários de seus membros, nada periclita.

A dificuldade, dirão, consistirá em reunir, de modo permanente, doze pessoas que estejam sempre de acordo.

O essencial é que sejam acordes no tocante aos princípios fundamentais. Ora, isso constituirá uma condição absoluta para que sejam admitidas à direção, como para a de todos os que desta hajam de participar.

Sobre as questões pendentes de detalhes, pouco importa que divirjam, porquanto a opinião da maioria é que prevalecerá. Aquele cuja maneira de ver for acertada, não faltarão razões boas com que a justifique. Se algum, contrariado por não conseguir que suas ideias predominem, se retirar, nem por isso deixariam as coisas de seguir o seu curso e motivo não haveria para se lhe deplorar a saída, pois que teria dado prova de uma suscetibilidade orgulhosa, pouco espírita, e que poderia tornar-se origem de perturbações.

A causa mais comum de separatividade entre co-interessados é o conflito de interesses e a possibilidade de uns suplantarem os outros, em proveito próprio. Esta causa não pode existir, do momento em que o prejuízo de um em nada aproveitará aos outros; desde que todos são solidários e somente podem perder, em vez de ganhar, com a desunião. É esta uma questão de minúcia prevista na organização.

Admitamos que entre os membros da comissão haja um irmão falso, um traidor, que os inimigos da causa tenham ganho para si: que logrará ele fazer, não dispondo senão do seu voto nas decisões? Suponhamos que, por impossível, toda a comissão enverede por mau caminho: aí estarão os congressos para reconduzi-la à ordem.

A fiscalização dos atos da administração pertencerá aos congressos, que poderão decretar a censura ou uma acusação contra a comissão central, por infração do seu mandato, por violação dos princípios estabelecidos, ou por medidas prejudiciais à Doutrina. Por isso é que se apelará da comissão para o congresso, nas circunstâncias em que se julgue que a responsabilidade da primeira está gravemente comprometida.

Sendo os congressos um freio para a comissão, na aprovação deles haure esta última novas forças. É assim que o chefe coletivo depende, em definitivo, da opinião geral e não pode, sem risco para si próprio, afastar-se do caminho reto.


Serão estas as atribuições principais da comissão central:

1º Cuidar dos interesses da Doutrina e da sua propagação; manter-lhe a utilidade, pela conservação da integridade dos princípios firmados; prover ao desenvolvimento de suas consequências;

2º O estudo dos novos princípios, suscetíveis de entrar no corpo da Doutrina;

3º A concentração, em seu poder, de todos os documentos e informações que interessem ao Espiritismo;

4º A correspondência;

5º A manutenção, a consolidação e a extensão dos laços de fraternidade entre os adeptos e as sociedades particulares dos diversos países;

6º A direção da Revista, que será o jornal oficial do Espiritismo e à qual se poderá juntar outra publicação periódica;

7º O exame e apreciação das obras, dos artigos de jornais e de todos os escritos que interessem à Doutrina; a refutação dos ataques, se aparecerem;

8º A publicação das obras fundamentais da Doutrina, nas condições mais favoráveis à sua vulgarização; a elaboração e publicação das de que daremos o plano e que não teremos tempo de executar em nossa atual existência; a animação de que precisem as publicações que sejam de proveito para a causa;

9º A fundação e conservação da biblioteca, dos arquivos e do museu;

10º A administração da caixa de socorros, do dispensário e do retiro;

11º A administração dos negócios materiais;

12º A direção das sessões da Sociedade;

13º O ensino oral;

14º As visitas e instruções às reuniões e sociedades particulares que se colocarem sob o seu patrocínio;

15º A convocação dos congressos e assembleias gerais.


Estas atribuições os membros da comissão as distribuirão entre si, conforme a especialidade de cada um, sendo eles, se for preciso, assistidos por certo número de auxiliares ou de simples empregados.


V.


Instituições acessórias e complementares da comissão central.


Muitas instituições complementares serão anexadas à comissão central, como dependências locais, à medida que as circunstâncias o permitirem, a saber:

1º Uma biblioteca, onde se encontrem reunidas todas as obras que interessem ao Espiritismo e que possam ser consultadas no local, ou cedidas para leitura fora;

2º Um museu, onde se achem colecionadas as primeiras obras de arte espírita, os trabalhos mediúnicos mais notáveis, os retratos dos adeptos a quem a causa muito deva pelo devotamento que lhe tenham demonstrado, os dos homens a quem o Espiritismo renda homenagens, embora estranhos à Doutrina, como benfeitores da Humanidade, grandes gênios missionários do progresso, etc.;

3º Um dispensário destinado às consultas médicas gratuitas e ao tratamento de certas afecções, sob a direção de um médico diplomado;

4º Uma caixa de socorros e de previdência em condições práticas;

5º Um asilo;

6º Uma sociedade de adeptos, que celebre sessões regulares.


Sem entrar num exame prematuro a respeito, convém dizer algumas palavras acerca de dois artigos, com relação aos quais poderão dar-se equívocos.

A criação de uma caixa geral de socorros é impraticável e apresentaria sérios inconvenientes, como já o demonstramos em artigo especial. (Revista de julho de 1866, pág. 193.) A comissão não deve, pois, tomar um caminho que teria de abandonar ao cabo de pouco tempo, nem empreender coisa alguma que não esteja certa de poder realizar. Ela precisa ser positiva e não se embalar em ilusões quiméricas. Esse o meio de caminhar longo tempo e com segurança. Para isso, cumpre-lhe ficar sempre dentro dos limites do possível.

A caixa de socorros a criar-se não pode e não deve ser mais do que uma instituição local, de ação circunscrita e cuja prudente organização sirva de modelo às do mesmo gênero que as sociedades particulares venham a criar. Pela sua multiplicidade é que elas prestarão serviços eficazes e não pela centralização dos meios de ação.

Será alimentada: 1º, pelas parcelas, que se lhe destinem, tiradas da renda da caixa geral do Espiritismo; 2º, pelos donativos especiais que lhe forem feitos. Ela capitalizará as somas que receber, de maneira a constituir para si um rendimento. Com essa renda é que prestará os socorros temporários ou vitalícios e cumprirá as obrigações do seu mandato, estipuladas no regulamento da sua constituição.

O projeto de um asilo, na acepção completa do termo, não poderá ter execução logo de começo, pelos capitais que reclamaria semelhante fundação e, ao demais, porque é preciso dar à administração tempo de se firmar e de atuar com regularidade, antes de complicar suas atribuições com empreendimentos que possam malograr-se. Fora imprudência tentar muitas coisas, antes de estar certa de dispor dos meios de execução. É o que facilmente se compreenderá, desde que se pense em todos os pormenores inerentes a estabelecimentos desse gênero.

Convém, sem dúvida, alimentar boas intenções, mas, antes de tudo, mister se faz poder realizá-las.


VI.


Amplitude de ação da comissão central.


No princípio, um centro de elaboração das ideias espíritas se formou por si mesmo, sem desígnio premeditado, pela força das coisas, mas sem nenhum caráter oficial. Ele era necessário, porquanto, se não existira, qual seria o ponto de ligação dos espíritas disseminados por diferentes países? Não podendo comunicar suas ideias, suas impressões, suas observações a todos os outros centros particulares, esparsos a seu turno e não raro sem consistência, ficariam insulados, com o que a difusão da Doutrina sofreria. Era, pois, indispensável um ponto de concentração, donde tudo se irradiasse. O desenvolvimento das ideias espíritas, longe de tornar inútil esse centro, ainda melhor fará sentir a sua necessidade, porque tanto maior será a dos espíritas se aproximarem e formarem feixe, quanto mais considerável for o número deles. A constituição do Espiritismo, regularizando o estado das coisas, terá por efeito faze-lo produzir maiores vantagens e preencher as lacunas que apresente. O centro que essa organização criará não será uma individualidade, mas um foco de atividade coletiva, atuando no interesse geral e onde se apaga toda autoridade pessoal.

Mas, qual será a amplitude do círculo de atividade desse centro? Destinar-se-á a reger o mundo e a tornar-se árbitro universal da verdade? Alimentar semelhante pretensão fora compreender mal o espírito do Espiritismo que, pela razão mesma de proclamar os princípios do livre exame e da liberdade de consciência, repele a ideia de arvorar-se em autocracia; logo que o fizesse, teria enveredado por uma senda fatal.

O Espiritismo sustenta princípios que, por se fundarem nas leis da Natureza e não em abstrações metafísicas, tendem a tornar-se, e um dia certamente o serão, os da universalidade dos homens; todos os aceitarão, porque encontrarão neles verdades palpáveis e demonstradas, como aceitaram a teoria do movimento da Terra; mas, pretender-se que o Espiritismo chegue a estar, por toda parte, organizado da mesma forma; que os espíritas do mundo inteiro se sujeitarão a um regime uniforme, a uma mesma forma de proceder; que terão de esperar lhes venha de um ponto fixo a luz, ponto em que deverão fixar os olhos, fora utopia tão absurda como a de pretender-se que todos os povos da Terra formem um dia uma única nação, governada por um só chefe, regida pelo mesmo código de leis e submetida aos mesmos usos. Há, é certo, leis gerais que podem ser comuns a todos os povos, mas que sempre, quanto às minúcias da aplicação e da forma, serão apropriadas aos costumes, aos caracteres, aos climas de cada um.

Outro tanto se dará com o Espiritismo organizado. Os espíritas do mundo todo terão princípios comuns, que os ligarão à grande família pelo sagrado laço da fraternidade, mas cujas aplicações variarão segundo as regiões, sem que, por isso, a unidade fundamental se rompa; sem que se formem seitas dissidentes a atirar pedras e lançar anátemas umas às outras, o que seria absolutamente antiespírita. Poderão, pois, formar-se, e inevitavelmente se formarão, centros gerais em diferentes países, ligados apenas pela comunidade da crença e pela solidariedade moral, sem subordinação de uns aos outros, sem que o da França, por exemplo, nutra a pretensão de impor-se aos espíritas americanos e vice-versa.

É perfeitamente justa a comparação, de que acima nos valemos, com os observatórios. Há-os em diferentes pontos do globo; todos, seja qual for a nação a que pertençam, se fundam em princípios gerais firmados pela Astronomia, o que, entretanto, não os torna tributários uns dos outros. Cada um regula como entende os respectivos trabalhos. Permutam suas observações e cada um se utiliza da Ciência e das descobertas dos outros. Assim acontecerá com os centros gerais do Espiritismo; serão os observatórios do mundo invisível, que permutarão entre si o que obtiverem de bom e de aplicável aos costumes dos países onde funcionarem, uma vez que o objetivo que eles colimam é o bem da Humanidade e não a satisfação de ambições pessoais. O Espiritismo é uma questão de fundo; prender-se à forma seria puerilidade indigna da grandeza do assunto. Daí vem que os centros que se acharem penetrados do verdadeiro espírito do Espiritismo deverão estender as mãos uns aos outros, fraternalmente, e unir-se para combater os inimigos comuns: a incredulidade e o fanatismo.


VII.


Os estatutos constitutivos.


A redação dos estatutos constitutivos deve preceder a toda execução. Se for confiada a uma assembleia, preciso é que antecipadamente se determinem as condições que devam preencher os que sejam encarregados do trabalho. A falta de base prévia, a divergência de pontos de vista, possivelmente as pretensões individuais, sem falar das intrigas dos adversários, poderiam produzir dissídios. Trabalho de tão grande alcance não pode improvisar-se; demanda longa elaboração, conhecimento das necessidades reais da Doutrina, conhecimento esse adquirido por meio da experiência e de sérias meditações. Para que haja unidade de vistas, harmonia e coordenação de todas as partes do conjunto, tem ele que promanar da iniciativa individual, ressalvada a possibilidade de receber mais tarde a sanção dos interessados. De princípio, porém, será necessária uma regra, um rumo traçado, um objetivo determinado. Estabelecida a regra, caminha-se com segurança, sem tateamentos, nem hesitações.

Todavia, como a ninguém é dado possuir a luz universal, nem fazer perfeito o que quer que seja; como um homem pode equivocar-se acerca de suas próprias ideias, enquanto que outros podem ver o que ele não vê; como seria abusiva a pretensão de quem quisesse impor-se por qualquer título, os estatutos serão submetidos à revisão do congresso que haja de reunir-se mais proximamente, o qual poderá fazer-lhe as retificações que pareçam convenientes.

Mas, uma constituição, por muito boa que seja, não poderia ser perpétua. O que é bom para certa época pode tornar-se deficiente em época posterior. As necessidades variam com as épocas e com o desenvolvimento das ideias. Se não se quiser que com o tempo ela caia em desuso, ou que venha a ser postergada pelas ideias progressistas, será necessário caminhe com essas ideias. Dá-se com as doutrinas filosóficas e com as sociedades particulares o que acontece em política e em religião: acompanhar ou não o movimento propulsivo é uma questão de vida ou de morte. No caso de que aqui se trata, fora grave erro acorrentar o futuro por meio de uma regra que se declarasse inflexível.

Não menos grave erro seria introduzir com muita frequência, na constituição orgânica, modificações que acabariam por privá-la de estabilidade. Faz-se mister proceder com ponderação e circunspeção. Só uma experiência de certa duração pode permitir se julgue da utilidade real das modificações. Ora, quem pode em tal caso ser juiz? Não será um único homem, que geralmente só do seu ponto de vista vê as coisas; tampouco será o autor do trabalho primitivo, porque poderá ser demasiado complacente na apreciação da sua obra. Serão os próprios interessados, porque experimentam de modo direto e permanente os efeitos da instituição e podem perceber por onde ela peca.

A revisão dos estatutos constitutivos se fará pelos congressos ordinários, transformados para esse efeito em congressos orgânicos, em determinadas épocas, e assim se prosseguirá indefinidamente, de maneira a conservá-los, sem interrupção, ao nível das necessidades e do progresso das ideias, ainda que a mil anos daqui.

Sendo periódicas e conhecidas antecipadamente as épocas de revisão, não haverá cabimento para se fazerem apelos, nem convocações especiais. A revisão constituirá não apenas um direito, mas também um dever do congresso da época indicada; inscrever-se-á, de antemão, na sua ordem do dia, de sorte que não estará subordinada à boa vontade de quem quer que seja e ninguém poderá arrogar-se o direito de decidir, firmado na sua autoridade particular, se a revisão é ou não oportuna. Se, depois de lidos os estatutos, o congresso julgar desnecessária qualquer modificação, declará-los-á mantidos na íntegra.

Sendo forçosamente limitado o número dos membros dos congressos, atenta a impossibilidade material de reunir neles todos os interessados, para que os que se reúnam não fiquem privados das luzes dos ausentes, todos estes poderão, qualquer que seja o lugar do mundo onde se encontrem, enviar à comissão central, no intervalo de dois congressos orgânicos, suas observações, que serão postas em ordem do dia do congresso vindouro.

Nenhum movimento apreciável das ideias se esboça em período menor do que um quarto de século. De vinte cinco em vinte cinco anos, pois, é que a constituição orgânica do Espiritismo será submetida à revisão. Sem ser demasiado longo, esse lapso de tempo é suficiente a permitir se apreciem as necessidades novas e não se causem perturbações por efeito de modificações muito frequentes.

Contudo, como nos primeiros anos é que se verificará o maior trabalho de elaboração; é que o movimento a operar-se nessa ocasião pode fazer surjam necessidades imprevistas, até que a sociedade haja firmado seus passos; e é que importa se aproveitem, sem grande demora, as lições da experiência, mais aproximadas serão as épocas de revisão, porém sempre determinadas previamente, até ao fim do século atual. No intervalo dos trinta primeiros anos, a constituição se terá completado e retificado suficientemente, para gozar de relativa estabilidade. Então é que, sem inconveniente, poderão começar os períodos de vinte cinco anos.

Desta maneira, a obra individual primitiva, que abrira o caminho, se tornará obra coletiva de todos os interessados, com as vantagens inerentes a esses dois modos, sem os seus inconvenientes. Ela se modificará sob o império das ideias progressivas e da experiência, mas sem abalos, sem precipitações, porque obedecerá ao princípio estabelecido na própria constituição.


VIII.


Do programa das crenças.


A condição absoluta de vitalidade para toda reunião ou associação, qualquer que seja o seu objetivo, é a homogeneidade, isto é, a unidade de vistas, de princípios e de sentimentos, a tendência para um mesmo fim determinado, numa palavra: a comunhão de ideias. Todas as vezes que alguns homens se congregam em nome de uma ideia vaga jamais chegam a entender-se, porque cada um apreende essa ideia de maneira diferente. Toda reunião formada de elementos heterogêneos traz em si os germens da sua dissolução, porque se compõe de interesses divergentes, materiais, ou de amor-próprio, tendentes a fins diversos que se entrechocam e rarissimamente se mostram dispostos a fazer concessões ao interesse comum, ou mesmo à razão; que suportam a opinião da maioria, se outra coisa não lhes é possível, mas que nunca se aliam francamente.

Assim foi sempre, até ao advento do Espiritismo. Formado gradativamente, como todas as ciências, em consequência de observações sucessivas, sua aceitação tem ganho pouco a pouco maior amplitude. O qualificativo de espírita, aplicado sucessivamente a todos os graus de crença, comporta uma infinidade de matizes, desde o da simples crença nas manifestações, até as mais altas deduções morais e filosóficas; desde aquele que, detendo-se na superfície, não vê nas manifestações mais do que um passatempo, até aquele que procura a concordância dos seus princípios com as leis universais e a aplicação dos mesmos princípios aos interesses gerais da Humanidade; enfim, desde aquele que não vê nas manifestações senão um meio de exploração em proveito próprio, até o que haure delas elementos para seu próprio melhoramento moral.

Dizer-se alguém espírita, mesmo espírita convicto, não indica, pois, de modo algum, a medida da crença, essa palavra exprime muito, com relação a uns, e muito pouco, relativamente a outros. Uma assembleia para a qual se convocassem todos os que se dizem espíritas apresentaria um amálgama de opiniões divergentes, que não poderiam assimilar-se reciprocamente, e nada de sério chegaria a realizar, sem falar dos interessados a suscitarem no seu seio as discussões a que ela abrisse ensejo.

Essa falta de precisão, inevitável no começo e durante o período de elaboração, há frequentemente causado equívocos lamentáveis, fazendo se atribuísse à Doutrina o que não passava de abuso ou transviamento. Pela falsa aplicação que diariamente se faz do qualificativo de espírita, é que a crítica, pouco inquirindo do fundo das coisas e ainda menos do lado sério do Espiritismo, encontrou nele matéria para zombarias. Diga-se espírita um indivíduo, ou pretenda fazer Espiritismo como os prestidigitadores pretendem fazer física, embora seja um saltimbanco, e logo se considera representante da Doutrina. Uma distinção, é certo, se tem feito entre os bons e os maus, os verdadeiros e os falsos espíritas, os espíritas mais ou menos esclarecidos, mais ou menos convencidos, os espíritas de coração, etc. Mas, essas designações, sempre vagas, nada de autêntico revelam, nada que os caracterize, quando não se conhecem os indivíduos e ainda não se teve ocasião de os julgar por suas obras.

Pode-se, pois, ser enganado pelas aparências, donde resulta que a qualificação de espírita, não comportando mais que uma aplicação falha, não constitui recomendação absoluta e essa incerteza lança nos espíritas uma espécie de desconfiança, que impede se estabeleça entre os adeptos um laço sério de confraternização.

Hoje, quando nenhuma dúvida mais se legitima sobre os pontos fundamentais da Doutrina, nem sobre os deveres que tocam a todos os adeptos sérios, a qualidade de espírita pode ter um caráter definido, de que antes carecia. É possível estabelecer-se um formulário de profissão de fé e a adesão, por escrito, a esse programa será testemunho autêntico da maneira de considerar o Espiritismo. Essa adesão, comprovando a unidade dos princípios, será, além do mais, o laço que unirá os adeptos numa grande família, sem distinção de nacionalidades, sob o império de uma mesma fé, de uma comunhão de pensamentos, de modos de ver e de aspirações. A crença no Espiritismo já não será simples aquiescência, muitas vezes parcial, a uma ideia vaga, porém uma adesão motivada, feita com conhecimento de causa e comprovada por um título oficial, deferido ao aderente. Para evitar os inconvenientes da falta de precisão, quanto ao qualificativo de espírita, os signatários da profissão de fé tomarão o título de espíritas professos.

Assentando numa base precisa e definida, essa qualificação a nenhum equívoco dá lugar, permitindo que os adeptos que professem os mesmos princípios e caminhem pela mesma senda se reconheçam, sem outra formalidade mais do que a declaração de sua qualidade e, se for preciso, a apresentação do seu título.

Um formulário de profissão de fé, circunstanciado e claramente expresso será o caminho traçado; o título de espírita professo será a palavra de ligação.

Mas, perguntar-se-á, esse título constituirá garantia bastante contra os de sinceridade duvidosa?

É impossível obter-se garantia absoluta contra a má-fé, porquanto pessoas há que tratam com descaso os atos mais solenes; convenhamos, todavia, em que essa garantia vale mais do que qualquer outra que não exista. Aliás, aquele que, sem escrúpulos, se faz passar pelo que não é — quando a questão é só de palavras que voam —, muitas vezes recua diante de uma afirmação escrita, que deixa vestígios e que lhe pode ser apresentada no caso de ele afastar-se do caminho reto. Se, entretanto, alguns haja que não se deixem deter por essa consideração, mínimo seria o número deles e nenhuma influência teriam. Ao demais, essa hipótese estará prevista nos estatutos, que lhe consagrarão um dispositivo especial.

Tal providência inevitavelmente afastará das reuniões sérias as pessoas que aí não estariam em seus devidos lugares. Se ela tivesse por efeito o afastamento de alguns espíritas de boa-fé, estes seriam dos que não se acham bastante senhores de si mesmos, para se declararem tais, ou dos timoratos, que temem pôr-se em evidência, ou, ainda, dos que jamais são os primeiros a pronunciar-se, em quaisquer circunstâncias, antes de verem que rumo tomam as coisas. Com o tempo, uns se esclarecerão de modo mais completo e os outros tomarão coragem. Nem uns, nem outros, no entanto, poderão contar-se entre os firmes defensores da causa. Quanto àqueles cuja ausência fora verdadeiramente de lamentar, será pequeno o número deles e diminuirá continuamente.

Nada sendo perfeito neste mundo, as melhores coisas têm seus inconvenientes. Se se houvesse de rejeitar tudo o que não esteja isento de inconveniências, nada se admitiria. Em tudo se faz preciso contrapesar as vantagens e desvantagens. Ora, é por demais evidente que, aqui, as primeiras sobrepujam as segundas.

Que nem todos os que se qualificam de espíritas se submeterão à constituição, é certo; por isso mesmo, ela existirá apenas para os que a aceitarem livremente e voluntariamente, porquanto não nutrirá a pretensão de impor-se a quem quer que seja.

Uma vez que o Espiritismo não é compreendido da mesma forma por toda a gente, a constituição apela para os que o encaram do seu ponto de vista, com o objetivo de lhe dar apoio, quando se achem isolados e de fortalecer os laços da grande família pela unidade da crença. Mas, fiel ao princípio de liberdade de consciência, que a Doutrina proclama como direito natural, ela respeitará todas as convicções sinceras e não anatematizará os que sustentem ideias diferentes das suas, nem deixará de aproveitar as luzes que possam brilhar fora do seu seio.

O essencial é, portanto, conhecer os que seguem a mesma trilha. Mas, como sabê-lo com exatidão? É materialmente impossível consegui-lo por meio de interrogatórios individuais, acrescendo que ninguém pode ser investido do direito de perscrutar as consciências. O único meio, o mais simples, o mais legal, seria estabelecer um formulário de princípios, resumindo o estado dos conhecimentos atuais que ressaltam da observação e que têm a sancioná-los o ensino geral dos Espíritos, ensino a que cada um é livre de aderir ou não. A adesão escrita é uma profissão de fé, que dispensa qualquer outra investigação, deixando a cada um inteira liberdade.

Conseguintemente, a constituição do Espiritismo tem como complemento necessário, no que concerne à crença, um programa de princípios definidos, sem o qual seria obra sem alcance e sem futuro. Este programa, fruto da experiência adquirida, será o marco indicador do caminho. Para perlustrá-lo com segurança, a par da constituição orgânica, faz-se necessária uma constituição da fé, um credo, se o preferirem, que seja o ponto de referência de todos os adeptos.

Contudo, nem esse programa, nem a constituição orgânica podem ou devem acorrentar o futuro, sob pena de sucumbirem, cedo ou tarde, sob as coações do progresso. Fundado de acordo com o estado presente dos conhecimentos, tem ele que se modificar e completar à medida que novas observações lhe demonstrarem as deficiências ou os defeitos. As modificações, entretanto, não lhe devem ser introduzidas levianamente, nem com precipitação. Hão de ser obra dos congressos orgânicos que, à revisão periódica dos estatutos constitutivos, acrescentará a do formulário dos princípios.

Marchando constantemente de harmonia com o progresso, constituição e credo subsistirão na sucessão dos tempos.


IX.


Vias e meios.


É de lastimar, sem dúvida, que tenhamos de entrar em considerações de ordem material, para alcançarmos um objetivo todo espiritual. Cumpre, porém, observemos que a espiritualidade mesma da obra se prende à questão da Humanidade terrena e do seu bem-estar; que já não se trata somente da emissão de algumas ideias filosóficas, mas de fundar alguma coisa de positivo e de durável. Imaginar que ainda estamos nos tempos em que alguns apóstolos podiam pôr-se a caminho com um bastão de viagem, sem cogitarem de saber onde pousariam, nem do que comeriam, fora alimentar uma ilusão que bem depressa amarga decepção destruiria. Para alguém fazer qualquer coisa de sério, tem que se submeter às necessidades impostas pelos costumes da época em que vive e essas necessidades são muito diversas das dos tempos da vida patriarcal. O próprio interesse do Espiritismo exige, pois, que se apreciem os meios de ação, para não ser forçoso parar a meio do caminho. Apreciemo-los, portanto, uma vez que estamos num século em que é preciso calcular tudo.

São em grande número, como se vê, as atribuições da comissão central, para necessitarem de uma verdadeira administração. Tendo cada um de seus membros funções ativas e assíduas, se apenas a constituíssem homens de boa vontade, os trabalhos seriam prejudicados, porquanto ninguém teria o direito de censurar os negligentes. Para regularidade dos trabalhos e normalidade do expediente, necessário se torna contar com homens de cuja assiduidade se possa estar certo e que não considerem suas funções como simples atos de comprazer. De quanto mais independência eles forem senhores, pelos seus recursos pessoais, tanto menos se deixarão prender por ocupações quaisquer; se não dispuserem de tempo, não poderão consagrá-lo àquelas funções. Importa, pois, que sejam retribuídos, assim como o pessoal administrativo. A Doutrina com isso ganhará em força, em estabilidade, em pontualidade, do mesmo passo que constituirá um meio de prestar serviços a pessoas que dela necessitem.

Ponto essencial, na economia de toda administração previdente, é que sua existência não dependa de produtos eventuais que possam fazer falta, mas de recursos certos, regulares, de maneira que sua marcha, aconteça o que acontecer, não seja embaraçada. Insta, pois, que as pessoas que forem chamadas a lhe prestar concurso, não se sintam inquietas pelo futuro que as aguarde. Ora, a experiência demonstra que se devem considerar essencialmente aleatórios os recursos que apenas tenham por base o produto de cotas ou contribuições, sempre facultativas, quaisquer que sejam os compromissos contraídos, e de cobrança sempre difícil. Assentar despesas permanentes e regulares sobre recursos eventuais, implicaria falta de previdência, que mais tarde se haveria de deplorar. Menos graves são, sem dúvida, as consequências, quando se trate de fundações temporárias, destinadas a durar quanto possam; aqui, porém, é uma questão de futuro. A sorte de uma administração como esta não pode ficar subordinada aos azares de um negócio comercial, precisa ser, desde o seu início, senão tão florescente, pelo menos tão estável quanto o será daqui a um século.

Em tal caso, a mais vulgar prudência manda se capitalizem, de forma inalienável, os recursos, à proporção que vão sendo obtidos, a fim de constituir-se uma renda perpétua, a coberto de todas as eventualidades. Regulando a administração a sua despesa pela renda que aufira, não pode a sua existência, em nenhum caso, achar-se comprometida, pois que disporá sempre de meios para funcionar. Pode, no começo, organizar-se em menor escala; o número de membros da comissão poderá ser limitado provisoriamente a cinco ou seis, o pessoal e os gastos administrativos reduzidos ao mínimo possível, sem prejuízo do desenvolvimento dos recursos.

A preparar o caminho para essa instalação é que consagramos até agora o fruto dos nossos trabalhos conforme dissemos acima. Se os nossos recursos pessoais não nos permitem fazer mais, temos, pelo menos, a satisfação de haver colocado a primeira pedra.

Figuremos então que, de um modo ou doutro, a comissão central, em dado tempo, esteja em condições de funcionar, o que pressupõe uma renda de 25 a 30.000 francos. Restringindo, em começo, as suas despesas, os recursos de toda espécie de que disponha, em capitais e produtos eventuais, constituirão a Caixa Geral do Espiritismo, que será objeto de uma contabilidade rigorosa. Reguladas as despesas obrigatórias, o excedente da renda irá aumentar o capital comum. Proporcionalmente, com os recursos desse capital é que a comissão proverá às diversas despesas proveitosas ao desenvolvimento da Doutrina, sem que jamais faça dele aplicação pessoal, nem fonte de especulação para qualquer de seus membros. Ao demais, o emprego dos fundos e escrituração serão submetidos à verificação de comissários especiais, designados, para esse efeito, pelos congressos ou assembleias gerais.

A comissão terá por um de seus primeiros cuidados ocupar-se com as publicações, desde que seja possível, sem esperar que o possa fazer com o auxílio das rendas. Os fundos a isso destinados não serão, em realidade, mais que um adiantamento, pois que voltarão à caixa, em virtude da venda das obras, cujo produto reverterá ao capital comum. É um negócio de administração.


X.


Allan Kardec e a nova constituição.

Como prelúdio da nova constituição do Espiritismo, que ele elaborava, e a externação da sua maneira de ver com referência à sua posição pessoal, têm perfeito cabimento neste preâmbulo as considerações que passamos a reproduzir, extraídas da exposição que, a propósito da Caixa do Espiritismo, ele fez à Sociedade de Paris, em 5 de maio de 1865.


“Muito se há falado dos proventos que eu retirava das minhas obras. Certamente, nenhuma pessoa séria acredita nos meus milhões, a despeito da afirmação dos que diziam saber de boa fonte que eu mantinha um trem principesco, carruagens a quatro e que em minha casa se andava por cima de tapetes d’Aubusson. (Revista de junho de 1862, pág. 179.) Além disso, não obstante o que disse o autor de uma brochura que conheceis, provando, por meio de cálculos hiperbólicos, que o meu orçamento de receita ultrapassa a lista civil do mais poderoso soberano da Europa, porquanto, só na França, vinte milhões de espíritas são meus tributários (Revista de julho de 1863, pág. 175), há um fato mais autêntico do que os seus cálculos, isto é: que eu nada nunca pedi a ninguém, que nunca ninguém me deu nada para mim pessoalmente; numa palavra: que não vivo a expensas de quem quer que seja, pois que, das somas que voluntariamente se me confiaram no interesse do Espiritismo, nenhuma parcela foi desviada em meu proveito. n

“As minhas imensas riquezas proviriam, pois, das minhas obras espíritas. Conquanto essas obras tenham alcançado inesperado êxito, quem quer que esteja um pouco iniciado em negócios de livraria sabe que não é com livros filosóficos que se ganham milhões em cinco ou seis anos, quando sobre as vendas não se tem mais do que os direitos de autor, que não passam de alguns cêntimos por exemplar. Mas, avultado ou mínimo, sendo esse lucro fruto do meu trabalho, ninguém tem o direito de se imiscuir no emprego que lhe dou.

“Comercialmente falando, estou na posição de qualquer homem que colha o fruto de seu trabalho; corro os azares de todo escritor que tanto pode ser bem sucedido, como pode sofrer um malogro.

“Quem quer que tenha visto a nossa habitação outrora e a veja hoje poderá atestar que nada mudou na nossa maneira de viver, depois que entrei a ocupar-me com o Espiritismo; ela é agora absolutamente tão simples quanto o era antigamente. É, portanto, manifesto que meus lucros, quaisquer que tenham sido, não deram para nos proporcionar os gozos do luxo. Que se segue daí?

“Tirando-me da obscuridade, o Espiritismo me lançou num novo rumo; em pouco tempo, vi-me arrastado por um movimento que me achava longe de prever. Quando concebi a ideia de O Livro dos Espíritos, era minha intenção não me pôr de modo algum em evidência e permanecer desconhecido mas, para logo ultrapassados os limites que eu imaginara, isso não me foi possível; tive de renunciar ao meu gosto pelo insulamento, sob pena de abdicar da obra empreendida e que crescia de dia para dia; foi-me preciso ceder à impulsão e tomar-lhe as rédeas. À proporção que ela se desenvolvia, mais vasto horizonte se desdobrava diante de mim e lhe distanciava os lindes. Compreendi então a imensidade da minha tarefa e a importância do trabalho que me restava fazer para completá-la. As dificuldades e os obstáculos, longe de me atemorizarem, redobraram as minhas energias. Divisei o fim objetivado e resolvi atingi-lo, com a assistência dos bons Espíritos. Sentia que não tinha tempo a perder e não perdi nem em visitas inúteis, nem em cerimônias estéreis. Foi a obra de minha vida. Dei-lhe todo o meu tempo, sacrifiquei-lhe o meu repouso, a minha saúde, porque diante de mim o futuro estava escrito em letras irrecusáveis.

“Sem me afastar do meu gênero de vida, nem por isso essa posição excepcional deixou de criar-me necessidades a que só os meus recursos pessoais, muito limitados, não me permitiam prover. Seria difícil a outrem imaginar a multiplicidade das despesas que aquela posição acarreta e que, sem ela, eu teria evitado.

“Pois bem! senhores, o que me proporcionou suprimento aos meus recursos foi o produto das minhas obras. Digo-o com satisfação, foi com o meu próprio trabalho, com o fruto das minhas vigílias que provi, em sua maior parte pelo menos, às necessidades materiais da instalação da Doutrina. Levei assim uma larga contribuição à Caixa do Espiritismo; os que ajudam à propagação das obras não poderão, conseguintemente, dizer que trabalham para me enriquecer, porque o produto da venda de todo livro, de toda assinatura da Revista redunda em proveito da Doutrina e não do indivíduo.

“Mas, prover ao presente não era tudo; importava também pensar no futuro e preparar uma fundação que, depois de mim, pudesse auxiliar aquele que me substituísse na grande tarefa que terá de desempenhar. Essa fundação, a cujo respeito ainda devo guardar silêncio, se prende a propriedade que possuo e é em vista disso que aplico, em melhorá-la, uma parte do que ganho. Como estou longe dos milhões com que me gratificaram, duvido muito que, sem embargo das minhas economias, os meus recursos me permitam jamais dar a essa fundação o complemento que eu desejara ela tivesse, ainda em minha vida. Uma vez, porém, que a sua realização está nos desígnios dos meus guias espirituais, se eu próprio não o fizer, é provável que, um dia ou outro, isso se fará. Enquanto aguardo, vou elaborando os planos a que ela obedecerá.

“Longe de mim, senhores, a ideia de me envaidecer ainda que de leve, com o que acabo de expor-vos. Foi necessária a pertinácia de certas diatribes, para que eu me decidisse, embora a contragosto, a quebrar o silêncio acerca de alguns fatos que me concernem. Mais tarde, todos aqueles que à malignidade aprouve desnaturar serão evidenciados, por meio de documentos autênticos. Ainda não chegou a oportunidade para essas explicações. A única coisa que por enquanto me importava era que ficásseis esclarecidos com relação ao destino dos fundos que a Providência faz que passem pelas minhas mãos, qualquer que seja a proveniência deles. Não me considero mais do que um depositário, até mesmo do que ganho; portanto, com mais forte razão, daquilo que me é confiado.

“Perguntou-me alguém certo dia, sem curiosidade, bem entendido, por mero interesse pela coisa em si, o que eu faria de um milhão de francos, se o tivesse. Respondi-lhe que, presentemente, o emprego dessa soma teria de ser totalmente diverso do que houvera sido no princípio. Outrora, eu com ela teria feito a propaganda, mediante larga publicidade; agora, reconheço que isso seria inútil, pois que os nossos adversários se encarregaram de custeá-la. Não me pondo então à disposição grandes recursos, os Espíritos quiseram provar que o Espiritismo devia seus triunfos à sua própria força.

“Hoje, ampliado como está o horizonte e quando, sobretudo, o futuro se desdobrou, são de ordem muito diferente as necessidades que se fazem sentir. Um capital, como o figurado, teria emprego mais útil. Sem entrar em pormenores que seriam prematuros, direi apenas que uma parte se destinaria a converter a minha propriedade numa casa especial de retiro espírita, cujos habitantes colheriam os benefícios da nossa doutrina moral; outra a constituir uma renda inalienável, destinada: 1º a manter o estabelecimento; 2º a assegurar uma existência independente àquele que me sucedesse e aos que o ajudassem no desempenho da sua missão; 3º a atender às necessidades correntes do Espiritismo, sem os riscos de auxílios eventuais, como sou obrigado a fazer, pois que a maior parte de seus recursos decorrem do meu trabalho, que terá termo.

“Aí está o que eu faria; mas, se tal satisfação não me é dada, sei que, de um modo ou de outro, os Espíritos que dirigem o movimento proverão a todas as necessidades em tempo oportuno. Por isso, de forma nenhuma me inquieto e só me ocupo com o que, para mim, é o essencial: o acabamento dos trabalhos que me restam por terminar.”


11. — Ao que ele então dizia, acrescentou recentemente Allan Kardec:

Quando a comissão estiver organizada, dela faremos parte como simples membro seu, dando-lhe a nossa colaboração, sem reivindicar, para nós, nem supremacia, nem título, nem qualquer privilégio.

Embora membro ativo da comissão, não pesaremos de forma alguma no seu orçamento, nem por honorários, nem por despesas de viagens, nem por qualquer outra causa. Se nunca a ninguém nada pedimos para nós, ainda menos o faríamos nesta circunstância. Nosso tempo, nossa vida, todas as nossas forças físicas e intelectuais pertencem à Doutrina. Declaramos, pois, formalmente, que nenhuma parcela dos recursos de que dispuser a comissão será desviada em proveito nosso.

Dar-lhe-emos, ao contrário, a nossa contribuição: 1º abrindo mão, em seu favor, do que produzam as nossas obras feitas e por fazer; 2º doando-lhe valores mobiliários e imobiliários.

Em se achando organizado o Espiritismo pela constituição da comissão central, nossas obras se tornarão propriedade do Espiritismo, na pessoa dessa mesma comissão, que as gerirá e cuidará da publicação delas, pelos meios mais apropriados a popularizá-las. Ela também deverá cuidar de que sejam traduzidas nas principais línguas estrangeiras.

A Revista foi, até agora, e não podia deixar de ser, uma obra pessoal, visto que fazia parte das nossas obras doutrinárias, constituindo os anais do Espiritismo. Por seu intermédio é que todos os princípios novos foram elaborados e entregues ao estudo. Era, pois, necessário que conservasse seu caráter individual, para que se estabelecesse a unidade.

Fomos, por diversas vezes, solicitados a faze-la circular mais amiúde; por muito lisonjeiro, porém, que nos fosse esse desejo, não pudemos atendê-lo, primeiramente, porque o tempo material não nos consentia esse acréscimo de trabalho e, em segundo lugar, porque importava não perdesse ela o seu caráter essencial, que não é o de um jornal propriamente dito.

Hoje, que a nossa obra pessoal se aproxima do seu termo, as necessidades já não são as mesmas; a Revista se tornará, como as nossas outras obras, feitas e por fazer, propriedade coletiva da comissão, que lhe tomará a direção, para maior vantagem do Espiritismo, sem que, por isso, renunciemos a lhe prestar a nossa colaboração.

Para completar a obra doutrinária, falta-nos publicar vários trabalhos, que não formam a parte menos difícil, nem menos penosa. Conquanto já disponhamos de todos os elementos para os executar e o programa de cada um esteja traçado até o último capítulo, poderíamos dispensar-lhes mais acurada atenção e ativá-los, se, por instituída a comissão central, estivéssemos livres de outros cuidados que nos absorvem grande parte do tempo.


12. — O primeiro período do Espiritismo foi consagrado ao estudo dos princípios e das leis, que em seu conjunto tinham de constituir a Doutrina; numa palavra: a preparar os materiais, ao mesmo tempo que à vulgarização da ideia. Foi o do plantio da semente que, semelhante à da parábola do Evangelho, não frutificaria igualmente por toda parte. A criança cresceu; tornou-se adulto e chegado é o momento em que, amparado por adeptos sinceros e devotados, tem que avançar para o objetivo que lhe está posto, sem ser obstado pelos retardatários.

Mas, como fazer essa seleção? Quem ousaria assumir a responsabilidade de um julgamento a incidir sobre as consciências individuais? O melhor seria que a seleção se fizesse por si mesma e o meio era bem simples: bastava desfraldar um estandarte e dizer — sigam-no os que o adotem.

Tomando a iniciativa da constituição do Espiritismo, usamos de um direito comum, o que todo homem tem de completar, como o entender, a obra que haja começado e de ser juiz da oportunidade. Desde o instante em que cada um é livre de aderir ou não a essa obra, ninguém se pode queixar de sofrer uma pressão arbitrária. Criamos a palavra Espiritismo, para atender às necessidades da causa; temos, pois, o direito de lhe determinar as aplicações e de definir as qualidades e as crenças do verdadeiro espírita. (Revista Espírita, de abril de 1866, pág. 111.)

Depois de tudo o que fica dito, facilmente se compreenderá quão impossível e prematuro fora estabelecer essa constituição logo no princípio. Se a Doutrina Espírita se houvera formado em conjunto, como toda concepção pessoal, teria sido completada desde o primeiro dia e, então, nada mais simples do que constituí-la. Mas, tendo ela surgido gradualmente, em consequência de aquisições sucessivas, a sua constituição teria congregado todos os amantes de novidades; em breve, porém, estaria abandonado pelos que não lhe aceitassem todas as consequências.

Entretanto, alguns porventura dirão: não estais assim provocando uma cisão entre os adeptos? Abrindo dois campos, não enfraqueceis a falange?

Nem todos os que se dizem espíritas pensam do mesmo modo sobre todos os pontos; a divisão existe, de fato, e é muito mais prejudicial, porque pode acontecer que não se saiba se, num espírita, está um aliado ou um antagonista. O que faz a força é a universalidade: ora, uma união franca não poderia existir entre pessoas interessadas, moral ou materialmente, em não seguir o mesmo caminho e que não objetivam o mesmo fim. Dez homens unidos por um pensamento comum são mais fortes do que cem que não se entendam. Em tal caso, a miscelânea de vistas divergentes tira a força de coesão entre os que desejariam andar juntos, exatamente como um líquido que, infiltrando-se num corpo, ergue obstáculo à agregação das moléculas desse corpo.

Se a constituição tem por efeito diminuir momentaneamente o número aparente dos espíritas, terá, por outro lado, como consequência, dar mais força aos que caminharem de comum acordo para a realização do grande objetivo humanitário que o Espiritismo há de alcançar. Eles se conhecerão e se estenderão mutuamente as mãos, de um extremo a outro do mundo.

Terá, além disso, por efeito opor barreira às ambições que, se elas se impusessem, tentariam desviá-lo em proveito próprio. Tudo está calculado, visando esse resultado, pela supressão de toda autocracia ou supremacia pessoal.



[1] Veja-se, para maiores desenvolvimentos sobre a questão das instituições espíritas, a Revista Espírita de julho de 1866, pág. 193.


[2] Essas somas se elevavam naquela época ao total de 14.100 francos, cujo emprego, a favor exclusivamente da Doutrina, se acha justificado pelas contas.


Abrir