Eu tivera ocasião de conhecer a Sr.a de Cardone nas sessões do Sr. Roustan. Alguém me disse, creio que foi o Sr. Carlotti, que ela possuía notável talento para ler nas mãos. Nunca acreditei que as linhas da mão tenham uma significação qualquer, mas sempre acreditei que, para certas pessoas dotadas de uma espécie de segunda vista, podia isso constituir meio de estabelecerem uma relação que lhes permitisse, como aos sonâmbulos, dizer algumas vezes coisas verdadeiras. Os sinais da mão nada mais são, nesse caso, do que um pretexto, um meio de fixar a atenção, de desenvolver a lucidez, como o são as cartas, a borra de café, os espelhos ditos mágicos, para os indivíduos que dispõem dessa faculdade. A experiência me confirmou de novo a justeza dessa opinião. Seja como for, aquela senhora, tendo-me convidado a ir visitá-la, acedi ao seu convite e eis aqui um resumo do que ela me disse:
“Nascestes com grande abundância de recursos e de meios intelectuais… extraordinária força de raciocínio… Formou-se o vosso gosto, governado pela cabeça, moderais a inspiração pelo raciocínio; subordinais o instinto, a paixão, a intuição ao método, à teoria. Tivestes sempre pendor para as ciências morais… Amor da verdade absoluta… Amor da Arte definida.
“Tem número, medida e cadência o vosso estilo; mas, por vezes, trocaríeis um pouco da sua precisão por uma certa poesia.
“Como filósofo idealista, estivestes sujeito à opinião de outrem; como filósofo crente, experimentais agora a necessidade de formar seita.
“Benevolência judiciosa; necessidade imperiosa de aliviar, de socorrer, de consolar; necessidade de independência.
“Muito demoradamente vos corrigis da subitânea impulsão do vosso humor.
“Éreis singularmente apto para a missão que vos está confiada, porquanto o vosso feitio é mais para vos tornardes o centro de imensos desenvolvimentos, do que capaz de trabalhos insulados… Vossos olhos têm o olhar do pensamento.
“Vejo aqui o sinal da tiara espiritual… E bem pronunciado… Vede.” (Olhei e nada vi de particular.)
Que entendeis, perguntei-lhe, por tiara espiritual? Querereis dizer que serei papa? Se tal houvesse de acontecer, não seria decerto nesta existência.
Resposta. — Deveis notar que eu disse tiara espiritual, o que significa: autoridade moral e religiosa e não soberania efetiva.”
Reproduzi pura e simplesmente as palavras daquela senhora, por ela mesma transcritas. Não me compete julgar se são exatas sobre todos os pontos. Algumas, reconheço-as verdadeiras, porque estão de acordo com o meu caráter e com as disposições do meu espírito.
Há, porém, uma passagem evidentemente errônea, a em que ela diz, a propósito do meu estilo, que eu às vezes trocaria algo da minha precisão por um pouco de poesia. Nenhum instinto poético existe em mim; o que procuro, acima de tudo, o que me agrada, o que aprecio nos outros é a clareza, a limpidez, a precisão e, longe de sacrificar esta à poesia, o que se me poderia reprochar fora o sacrificar o sentimento poético à sequidão da forma positiva. Preferi sempre o que fala à inteligência ao que apenas fala à imaginação.
Quanto à tiara espiritual, “O Livro dos Espíritos” acabava de aparecer; a Doutrina estava em seus primórdios e não podia ainda prejulgar dos resultados que ulteriormente daria. Nenhuma importância, pois, liguei a essa revelação e me limitei a anotá-la a título informativo.
No ano seguinte a Sr.a de Cardone deixou Paris e não tornei a vê-la, senão oito anos depois, em 1868 quando as coisas já tinham caminhado bastante. Disse-me ela: Lembra-se da minha predição acerca da tiara espiritual? Aí a tem realizada. — Como realizada? Que eu o saiba, não me acho no trono de S. Pedro. — Não, decerto; mas, também, não foi isso o que lhe anunciei. O senhor não é, de fato, o chefe da Doutrina, reconhecido pelos espíritas do mundo inteiro? Não são os seus escritos que fazem lei? Não se contam por milhões os seus correligionários? Em matéria de Espiritismo, haverá alguém cujo nome tenha mais autoridade do que o seu? Os títulos de sumo-sacerdote, de pontífice, mesmo de papa, não lhe são dados espontaneamente? São-no, sobretudo, pelos seus adversários e por ironia, bem o sei, mas nem por isso o fato deixa de indicar de que gênero é a influência que eles lhe reconhecem, porque pressentem qual o papel que lhe cabe. Assim, esses títulos lhe ficarão.
Em suma, o senhor conquistou, sem a buscar, uma posição moral que ninguém lhe pode tirar, dado que, sejam quais forem os trabalhos que se elaborem depois dos seus, ou concomitantemente com eles, o senhor será sempre o proclamado fundador da Doutrina. Logo, em realidade, está com a tiara espiritual, isto é, com a supremacia moral. Reconheça, portanto, que eu disse a verdade.
Acredita agora, mais um pouco, nos sinais das mãos? — Menos que nunca e estou convencido de que, se a senhora viu alguma coisa, não foi na minha mão, mas no seu próprio espírito e vou prová-lo.
Admito que nas mãos, como nos pés, nos braços e nas outras partes do corpo, existem certos sinais fisiognomônicos; mas, cada órgão apresenta sinais particulares, conforme o uso a que é sujeito e conforme as suas relações com o pensamento. Os sinais das mãos não podem ser os mesmos que os dos pés, dos braços, da boca, dos olhos, etc.
Quanto ao pregueado da palma das mãos, a maior ou menor acentuação que apresentam resulta da natureza da pele e da maior ou menor quantidade de tecido celular. Como essas partes em nenhuma correlação fisiológica estão com os órgãos das faculdades intelectuais e morais, não podem ser a expressão dessas faculdades. Mesmo admitindo-se que haja essa correlação, elas poderiam fornecer indicações sobre o estado atual do indivíduo, mas não poderiam constituir sinais de presságios de coisas futuras, nem de acontecimentos passados e independentes da vontade do mesmo indivíduo. Na primeira hipótese, eu, a rigor, compreenderia que, com o auxílio de tais lineamentos, se pudesse dizer que uma pessoa possui esta ou aquela aptidão, este ou aquele pendor; o mais vulgar bom-senso, porém, repeliria a ideia de que se possa ver ali se ela foi casada ou não, quantas vezes e o número de filhos que teve, se é viúva ou não, e outras coisas semelhantes, como o pretende a maioria dos quiromantes.
Entre as linhas das mãos, há uma que toda gente conhece e que representa bem um M. Se é bastante acentuada, pressagia, dizem, uma vida infeliz (malheureuse); porém, a palavra malheur (infelicidade) é francesa e ninguém se lembra de que, nas outras línguas, a palavra que a essa corresponde não começa pela mesma letra, donde se segue que a linha em questão deveria apresentar formas diferentes, de acordo com as línguas dos povos.
Quanto à tiara espiritual, é, evidentemente, uma coisa especial, excepcional e, até certo ponto, individual e eu estou convencido de que a senhora não encontrou essa expressão no vocabulário de nenhum tratado de quiromancia. Como então lhe veio ela à mente? Pela intuição, pela inspiração, por essa espécie de presciência peculiar à dupla vista de que muitas pessoas são dotadas sem o suspeitarem. Sua atenção estava concentrada nos lineamentos da mão, a senhora fixou o pensamento num sinal em que outra pessoa teria visto coisa muito diversa, ou a que a senhora mesmo atribuiria significação diferente se se tratasse de outro indivíduo.