Origem
do bem e do mal. (1-10.) — O instinto e a inteligência.
(11-19.)
— Destruição dos seres vivos uns pelos outros. (20-24.) |
1. — Sendo Deus o princípio de todas as coisas e sendo todo sabedoria, todo bondade, todo justiça, tudo o que dele procede há de participar dos seus atributos, porquanto o que é infinitamente sábio, justo e bom nada pode produzir que seja ininteligente, mau e injusto. 2 O mal que observamos não pode ter nele a sua origem.
2. — Se o mal estivesse nas atribuições de um ser especial, quer se lhe chame Arimane, quer Satanás, ou ele seria igual a Deus, e, por conseguinte, tão poderoso quanto este, e de toda a eternidade como ele, ou lhe seria inferior.
2 No primeiro caso, haveria duas potências rivais, incessantemente em luta, procurando cada uma desfazer o que fizesse a outra, contrariando-se mutuamente, hipótese esta inconciliável com a unidade de vistas que se revela na estrutura do Universo.
3
No segundo caso, sendo inferior a Deus, aquele ser lhe estaria subordinado;
4
não podendo existir de toda a eternidade como Deus, sem ser igual a
este, teria tido um começo; 5
se fora criado, só o poderia ter sido por Deus, que, então, houvera
criado o Espírito do mal, o que implicaria negação da bondade infinita.
(Veja-se O
Céu e o Inferno, capítulo X: Os demônios.)
3. — Entretanto, o mal existe e tem uma causa.
2 Os males de toda espécie, físicos ou morais, que afligem a Humanidade, formam duas categorias que importa distinguir: a dos males que o homem pode evitar e a dos que lhe independem da vontade. 3 Entre os primeiros, cumpre-se incluam os flagelos naturais.
4 O homem, cujas faculdades são restritas, não pode penetrar, nem abarcar o conjunto dos desígnios do Criador; aprecia as coisas do ponto de vista da sua personalidade, dos interesses factícios e convencionais que criou para si mesmo e que não se compreendem na ordem da Natureza; por isso é que, muitas vezes, se lhe afigura mau e injusto aquilo que consideraria justo e admirável se lhe conhecesse a causa, o objetivo, o resultado definitivo. 5 Pesquisando a razão de ser e a utilidade de cada coisa, verificará que tudo traz o sinete da sabedoria infinita e se dobrará a essa sabedoria, mesmo com relação ao que lhe não seja compreensível.
4. — O homem recebeu em partilha uma inteligência com cujo auxílio lhe é possível conjurar, ou pelo menos, atenuar os efeitos de todos os flagelos naturais; 2 quanto mais saber ele adquire e mais se adianta em civilização, tanto menos desastrosos se tornam os flagelos; 3 com uma organização sábia e previdente, chegará mesmo a lhes neutralizar as consequências, quando não possam ser inteiramente evitados. 4 Assim, com referência, até, aos flagelos que têm certa utilidade para a ordem geral da Natureza e para o futuro, mas que, no presente, causam danos, facultou Deus ao homem os meios de lhes paralisar os efeitos.
5 Assim é que ele saneia as regiões insalubres, imuniza contra os miasmas pestíferos, fertiliza terras áridas e procura preservá-las das inundações; constrói habitações mais salubres, mais sólidas para resistirem aos ventos tão necessários à purificação da atmosfera e se coloca ao abrigo das intempéries; 6 é assim, finalmente, que, pouco a pouco, a necessidade lhe fez criar as ciências, por meio das quais melhora as condições de habitabilidade do globo e aumenta o seu próprio bem-estar.
5. — Tendo o homem que progredir, os males a que se acha exposto são um estimulante para o exercício da sua inteligência, de todas as suas faculdades físicas e morais, incitando-o a procurar os meios de evitá-los. 2 Se ele nada houvesse de temer, nenhuma necessidade o induziria a procurar o melhor; o espírito se lhe entorpeceria na inatividade; nada inventaria, nem descobriria. 3 A dor é o aguilhão que o impele para a frente, na senda do progresso.
6. — Porém, os males mais numerosos são os que o homem cria pelos seus vícios, os que provêm do seu orgulho, do seu egoísmo, da sua ambição, da sua cupidez, de seus excessos em tudo: aí a causa das guerras e das calamidades que estas acarretam, das dissensões, das injustiças, da opressão do fraco pelo forte, da maior parte, afinal, das enfermidades.
2
Deus promulgou leis plenas de sabedoria, tendo por único objetivo o
bem; em si mesmo encontra o homem tudo o que lhe é necessário para cumpri-las;
3
a consciência lhe traça a rota, a lei divina lhe está gravada no coração
4
e, ao demais, Deus lha lembra constantemente por intermédio de seus
messias e profetas, de todos os Espíritos encarnados que trazem a missão
de o esclarecer, moralizar e melhorar e, nestes últimos tempos, pela
multidão dos Espíritos desencarnados que se manifestam em toda parte.
5
Se o homem se conformasse rigorosamente com as lei divinas, não há
duvidar de que se pouparia aos mais agudos males e viveria ditoso na
Terra. 6
Se assim não procede, é por virtude do seu livre arbítrio: sofre então
as consequências do seu proceder. (O Evangelho Segundo o Espiritismo,
capítulo
V, n.º 4, 5, 6
e seguintes.)
7. — Entretanto, Deus, todo bondade, pôs o remédio ao lado do mal, isto é, fez que do próprio mal saia o remédio. 2 Um momento chega em que o excesso do mal moral se torna intolerável e impõe ao homem a necessidade de mudar de vida; 3 instruído pela experiência, ele se sente compelido a procurar no bem o remédio, sempre por efeito do seu livre arbítrio; 4 quando toma melhor caminho, é por sua vontade e porque reconheceu os inconvenientes do outro. 5 A necessidade, pois, o constrange a melhorar-se moralmente, para ser mais feliz, do mesmo modo que o constrangeu a melhorar as condições materiais da sua existência. (N.º 5)
8. — Pode dizer-se que o mal é a ausência do bem, como o frio é a ausência do calor. 2 Assim como o frio não é um fluido especial, também o mal não é atributo distinto; um é o negativo do outro. 3 Onde não existe o bem, forçosamente existe o mal; 4 não praticar o mal, já é um princípio do bem. 5 Deus somente quer o bem; só do homem procede o mal. 6 Se na Criação houvesse um ser preposto ao mal, ninguém o poderia evitar; mas, tendo o homem a causa do mal em SI MESMO, tendo simultaneamente o livre arbítrio e por guia as leis divinas, evitá-lo-á sempre que o queira.
7 Tomemos para termo de comparação um fato vulgar. Sabe um proprietário que nos confins de suas terras há um lugar perigoso, onde poderia perecer ou ferir-se quem por lá se aventurasse. Que faz, a fim de prevenir os acidentes? Manda colocar perto um aviso, tornando defeso ao transeunte ir mais longe, por motivo do perigo. 8 Aí está a Lei, que é sabia e previdente. Se, apesar de tudo, um imprudente desatende o aviso, vai além do ponto onde este se encontra e sai-se mal, de quem se pode ele queixar, senão de si próprio?
9 Outro tanto se dá com o mal: evitá-lo-ia o homem, se cumprisse as leis divinas. 10 Por exemplo: Deus pôs limite à satisfação das necessidades: desse limite a saciedade adverte o homem; se este o ultrapassa, fá-lo voluntariamente. As doenças, as enfermidades, a morte, que daí podem resultar, provêm da sua imprevidência, não de Deus.
9. — Decorrendo, o mal, das imperfeições do homem e tendo sido este criado por Deus, dir-se-á, Deus não deixa de ter criado, se não o mal pelo menos, a causa do mal; se houvesse criado perfeito o homem, o mal não existiria.
2 Se fora criado perfeito, o homem fatalmente penderia para o bem; ora, em virtude do seu livre arbítrio, ele não pende fatalmente nem para o bem, nem para o mal. 3 Quis Deus que ele ficasse sujeito à lei do progresso e que o progresso resulte do seu trabalho, a fim de que lhe pertença o fruto deste, da mesma maneira que lhe cabe a responsabilidade do mal que por sua vontade pratique. 4 A questão, pois, consiste em saber-se qual é, no homem, a origem da sua propensão para o mal. n
10. — Estudando-se todas as paixões e, mesmo, todos os vícios, vê-se que as raízes de umas e outros se acham no instinto de conservação, instinto que se encontra em toda a pujança nos animais e nos seres primitivos mais próximos da animalidade, nos quais ele exclusivamente domina, sem o contrapeso do senso moral, por não ter ainda o ser nascido para a vida intelectual. 2 O instinto se enfraquece, à medida que a inteligência se desenvolve, porque esta domina a matéria.
3 O Espírito tem por destino a vida espiritual, porém, nas primeiras fases da sua existência corpórea, somente a exigências materiais lhe cumpre satisfazer e, para tal, o exercício das paixões constitui uma necessidade para o efeito da conservação da espécie e dos indivíduos, materialmente falando. 4 Mas, uma vez saído desse período, outras necessidades se lhe apresentam, a princípio semimorais e semimateriais, depois exclusivamente morais. 5 É então que o Espírito exerce domínio sobre a matéria, sacode-lhe o jugo, avança pela senda providencial que se lhe acha traçada e se aproxima do seu destino final. 6 Se, ao contrário, ele se deixa dominar pela matéria, atrasa-se e se identifica com o bruto. 7 Nessa situação, o que era outrora um bem, porque era uma necessidade da sua natureza, transforma-se num mal, não só porque já não constitui uma necessidade, como porque se torna prejudicial à espiritualização do ser. 8 Muita coisa, que é qualidade na criança, torna-se defeito no adulto. 9 O mal é, pois, relativo, e a responsabilidade é proporcionada ao grau de adiantamento.
10 Todas as paixões têm, portanto, uma utilidade providencial, visto que, a não ser assim, Deus teria feito coisas inúteis e, até, nocivas. 11 No abuso é que reside o mal e o homem abusa em virtude do seu livre arbítrio. 12 Mais tarde, esclarecido pelo seu próprio interesse, livremente escolhe entre o bem e o mal.
11. — Qual a diferença entre o instinto e a inteligência? Onde acaba um e o outro começa? Será o instinto uma inteligência rudimentar, ou será uma faculdade distinta, um atributo exclusivo da matéria?
2 O instinto é a força oculta que solicita os seres orgânicos a atos expontâneos e involuntários, tendo em vista a conservação deles. 3 Nos atos instintivos não há reflexão, nem combinação, nem premeditação. 4 É assim que a planta procura o ar, se volta para a luz, dirige suas raízes para a água e para a terra nutriente; que a flor se abre e fecha alternativamente, conforme se lhe faz necessário; que as plantas trepadeiras se enroscam em torno daquilo que lhes serve de apoio, ou se lhe agarram com as gavinhas. 5 É pelo instinto que os animais são avisados do que lhes convém ou prejudica; que buscam, conforme a estação, os climas propícios; que constroem, sem ensino prévio, com mais ou menos arte, segundo as espécies, leitos macios e abrigos para as suas progênies, armadilhas para apanhar a presa de que se nutrem; que manejam destramente as armas ofensivas e defensivas de que são providos que os sexos se aproximam; que a mãe choca os filhos e que estes procuram o seio materno. 6 No homem, só em começo da vida o instinto domina com exclusividade; é por instinto que a criança faz os primeiros movimentos, que toma o alimento, que grita para exprimir as suas necessidades, que imita o som da voz, que tenta falar e andar. 7 No próprio adulto, certos atos são instintivos, tais como os movimentos espontâneos para evitar um risco, para fugir a um perigo, para manter o equilíbrio do corpo; tais ainda o piscar das pálpebras para moderar o brilho da luz, o abrir maquinal da boca para respirar, etc.
12. — A inteligência se revela por atos voluntários, refletidos, premeditados, combinados, de acordo com a oportunidade das circunstâncias. 2 É incontestavelmente um atributo exclusivo da alma.
3 Todo ato maquinal é instintivo; o ato que denota reflexão, combinação, deliberação é inteligente. Um é livre, o outro não o é.
4 O instinto é guia seguro, que nunca se engana; a inteligência, pelo simples fato de ser livre, está, por vezes, sujeita a errar.
5 Ao ato instintivo falta o caráter do ato inteligente; revela, entretanto, uma causa inteligente, essencialmente apta a prever. 6 Se admitirmos que o instinto procede da matéria, ter-se-á de admitir que a matéria é inteligente, até mesmo bem mais inteligente e previdente do que a alma, pois que o instinto não se engana, ao passo que a inteligência se equivoca.
7 Se considerarmos o instinto uma inteligência rudimentar, como se há de explicar que, em certos casos, seja superior à inteligência que raciocina? Como explicar que torne possível se executem atos que esta não pode realizar?
8 Se ele é atributo de um princípio espiritual de especial natureza, qual vem a ser esse princípio? Pois que o instinto se apaga, dar-se-á que este princípio se destrua? 9 Se os animais são dotados apenas de instinto, não tem solução o destino deles e nenhuma compensação os seus sofrimentos, o que não estaria de acordo nem com a justiça, nem com a bondade de Deus. (Cap. II, n.º 19)
13. — Segundo um outro sistema, o instinto e a inteligência procederiam de um único princípio; chegado a certo grau de desenvolvimento, esse princípio, que primeiramente apenas tivera as qualidades do instinto, passaria por uma transformação que lhe daria as da inteligência livre.
2 Se fosse assim, no homem inteligente que perde a razão e entra a ser guiado exclusivamente pelo instinto, a inteligência voltaria ao seu estado primitivo e, quando o homem recobrasse a razão, o instinto se tornaria inteligência e assim alternativamente, a cada acesso, o que não é admissível.
3 Aliás, é frequente o instinto e a inteligência se revelarem simultaneamente no mesmo ato. 4 No caminhar, por exemplo, o movimento das pernas é instintivo; o homem põe maquinalmente um pé à frente do outro, sem nisso pensar; quando, porém, ele quer acelerar ou demorar o passo, levantar o pé ou desviar-se de um tropeço, há cálculo, combinação; ele age com deliberado propósito. 5 A impulsão involuntária do movimento é o ato instintivo; a calculada direção do movimento é o ato inteligente. 6 O animal carnívoro é impelido pelo instinto a se alimentar de carne, mas as precauções que toma e que variam conforme as circunstâncias, para segurar a presa, a sua previdência das eventualidades são atos da inteligência.
14. — Uma outra hipótese que, em suma, se conjuga perfeitamente à ideia da unidade de princípio, ressalta do caráter essencialmente previdente do instinto e concorda com o que o Espiritismo ensina, no tocante às relações do mundo espiritual com o mundo corpóreo.
2 Sabe-se agora que muitos Espíritos desencarnados têm por missão velar pelos encarnados, dos quais se constituem protetores e guias; que os envolvem nos seus eflúvios fluídicos; que o homem age muitas vezes de modo inconsciente, sob a ação desses eflúvios.
3 Sabe-se, ao demais, que o instinto, que por si mesmo produz atos inconscientes, predomina nas crianças e, em geral, nos seres cuja razão é fraca. 4 Ora, segundo esta hipótese, o instinto não seria atributo nem da alma, nem da matéria; não pertenceria propriamente ao ser vivo, seria efeito da ação direta dos protetores invisíveis que supririam a imperfeição da inteligência, provocando os atos inconscientes necessários à conservação do ser. 5 Seria qual a andadeira com que se amparam as crianças que ainda não sabem andar. Então, do mesmo modo que se deixa gradualmente de usar a andadeira, à medida que a criança se equilibra sozinha, os Espíritos protetores deixam entregues a si mesmos os seus protegidos, à medida que estes se tornam aptos a guiar-se pela própria inteligência.
6 Assim, o instinto, longe de ser produto de uma inteligência rudimentar e incompleta, sê-lo-ia de uma inteligência estranha, na plenitude da sua força, inteligência protetora, supletiva da insuficiência, quer de uma inteligência mais jovem, que aquela compeliria a fazer, inconscientemente, para seu bem, o que ainda fosse incapaz de fazer por si mesma, quer de uma inteligência madura, porém, momentaneamente tolhida no uso de suas faculdades, como se dá com o homem na infância e nos casos de idiotia e de afeções mentais.
7 Diz-se proverbialmente que há um deus para as crianças, para os loucos e para os ébrios; é mais veraz do que se supõe esse ditado. Aquele deus, outro não é senão o Espírito protetor, que vela pelo ser incapaz de se proteger, utilizando-se da sua própria razão.
15. — Nesta ordem de ideias, ainda mais longe se pode ir. Por muito racional que seja, essa teoria não resolve todas as dificuldades da questão.
2 Se observarmos os efeitos do instinto, notaremos, em primeiro lugar, uma unidade de vistas e de conjunto, uma segurança de resultados, que cessam logo que a inteligência o substitui; demais, reconheceremos profunda sabedoria na apropriação tão perfeita e tão constante das faculdades instintivas às necessidades de cada espécie. 3 Semelhante unidade de vistas não poderia existir sem a unidade de pensamento e esta é incompatível com a diversidade das aptidões individuais; só ela poderia produzir esse conjunto tão harmonioso que se realiza desde a origem dos tempos e em todos os climas, com uma regularidade, uma precisão matemáticas, cuja ausência jamais se nota. 4 A uniformidade no que resulta das faculdades instintivas é um fato característico, que forçosamente implica a unidade da causa; se a causa fosse inerente a cada individualidade, haveria tantas variedades de instintos quantos fossem os indivíduos, desde a planta até o homem. 5 Um efeito geral, uniforme e constante, há de ter uma causa geral, uniforme e constante; um efeito que atesta sabedoria e previdência há de ter uma causa sábia e previdente. 6 Ora, uma causa dessa natureza, sendo por força inteligente, não pode ser exclusivamente material.
7 Não se nos deparando nas criaturas, encarnadas ou desencarnadas, as qualidades necessárias à produção de tal resultado, temos que subir mais alto, isto é, ao próprio Criador. 8 Se nos reportamos à explicação dada sobre a maneira por que se pode conceber a ação providencial (Cap. II, n.º 24); se figurarmos todos os seres penetrados do fluido divino, soberanamente inteligente, compreenderemos a sabedoria previdente e a unidade de vistas que presidem a todos os movimentos instintivos que se efetuam para o bem de cada indivíduo. 9 Tanto mais ativa é essa solicitude, quanto menos recursos tem o indivíduo em si mesmo e na sua inteligência; por isso é que ela se mostra maior e mais absoluta nos animais e nos seres inferiores, do que no homem.
10 Segundo essa teoria, compreende-se que o instinto seja um guia seguro. 11 O instinto materno, o mais nobre de todos, que o materialismo rebaixa ao nível das forças atrativas da matéria, fica realçado e enobrecido. 12 Em razão das suas consequências, não devia ele ser entregue às eventualidades caprichosas da inteligência e do livre arbítrio. 13 Por intermédio da mãe o próprio Deus vela pelas suas criaturas que nascem.
16. — Esta teoria de nenhum modo anula o papel dos Espíritos protetores; cujo concurso é fato observado e comprovado pela experiência; mas, deve-se notar que a ação desses Espíritos é essencialmente individual; que se modifica segundo as qualidades próprias do protetor e do protegido e que em parte nenhuma apresenta a uniformidade e a generalidade do instinto. 2 Deus, em sua sabedoria, conduz ele próprio os cegos, porém confia a inteligências livres o cuidado de guiar os clarividentes, para deixar a cada, um a responsabilidade de seus atos. 3 A missão dos Espíritos protetores constitui um dever que eles aceitam voluntariamente e lhes é um meio de se adiantarem, dependendo o adiantamento da forma por que o desempenhem.
17. — Todas essas maneiras de considerar o instinto são forçosamente
hipotéticas e nenhuma apresenta caráter seguro de autenticidade, para
ser tida como solução definitiva. 2
A questão, sem dúvida, será resolvida um dia, quando se houverem reunido
os elementos de observação que ainda faltam; até lá, temos que limitar-nos
a submeter as diversas opiniões ao cadinho da razão e da lógica e esperar
que a luz se faça; 3
a solução que mais se aproxima da verdade será decerto a que melhor
condiga com os atributos de Deus, isto é, com a bondade suprema e a
suprema justiça. (Cap. II,
n.º 19.)
18. — Sendo o instinto o guia e as paixões as molas da alma no período inicial do seu desenvolvimento, por vezes aquele e estas se confundem nos efeitos. 2 Há, contudo, entre esses dois princípios, diferenças que muito importa se considerem.
3 O instinto é guia seguro, sempre bom; pode, ao cabo de certo tempo, tornar-se inútil, porém nunca prejudicial; enfraquece-se pela predominância da inteligência.
4 As paixões, nas primeiras idades da alma, tem de comum com o instinto o serem as criaturas solicitadas por uma força igualmente inconsciente. 5 As paixões nascem principalmente das necessidades do corpo e dependem, mais do que o instinto, do organismo. 6 O que, acima de tudo, as distingue do instinto é que são individuais e não produzem, como este último, efeitos gerais e uniformes; variam, ao contrário, de intensidade e de natureza, conforme os indivíduos. 7 São úteis, como estimulante, até à eclosão do senso moral, que faz nasça, de um ser passivo, um ser racional; nesse momento, tornam-se não só inúteis, como nocivas ao progresso do Espírito, cuja desmaterialização retardam; abrandam-se com o desenvolvimento da razão.
19. — O homem que só pelo instinto agisse constantemente poderia ser muito bom, mas conservaria adormecida a sua inteligência; seria qual criança que não deixasse as andadeiras e não soubesse utilizar-se de seus membros. 2 Aquele que não domina as suas paixões pode ser muito inteligente, porém, ao mesmo tempo, muito mau. 3 O instinto se aniquila por si mesmo; as paixões somente pelo esforço da vontade podem domar-se.
20. — A destruição recíproca dos seres vivos é, dentre as leis da Natureza, uma das que, à primeira vista, menos parecem conciliar-se com a bondade de Deus. 2 Pergunta-se por que lhes criou ele a necessidade de mutuamente se destruírem, para se alimentarem uns à custa dos outros.
3 Para quem apenas vê a matéria e restringe à vida presente a sua visão, há de isso, com efeito, parecer uma imperfeição na obra divina. 4 É que, em geral, os homens apreciam a perfeição de Deus do ponto de vista humano; medindo-lhe a sabedoria pelo juízo que dela formam, pensam que Deus não poderia fazer coisa melhor do que eles próprios fariam. 5 Não lhes permitindo a curta visão, de que dispõem, apreciar o conjunto, não compreendem que um bem real possa decorrer de um mal aparente. 6 Só o conhecimento do princípio espiritual, considerado em sua verdadeira essência, e o da grande lei de unidade, que constitui a harmonia da Criação, pode dar ao homem a chave desse mistério e mostrar-lhe a sabedoria providencial e a harmonia, exatamente onde apenas vê uma anomalia e uma contradição.
21. — A verdadeira vida, tanto do animal como do homem, não está no invólucro corporal, do mesmo modo que não está no vestuário. Está no princípio inteligente que preexiste e sobrevive ao corpo. 2 Esse princípio necessita do corpo, para se desenvolver pelo trabalho que lhe cumpre realizar sobre a matéria bruta; 3 o corpo se consome nesse trabalho, mas o Espírito não se gasta; ao contrário, sai dele cada vez mais forte, mais lúcido e mais apto. 4 Que importa, pois, que o Espírito mude mais ou menos frequentemente de envoltório?! Não deixa por isso de ser Espírito. É precisamente como se um homem mudasse cem vezes no ano as suas vestes. Não deixaria por isso de ser homem.
5 Por meio do incessante espetáculo da destruição, ensina Deus aos homens o pouco caso que devem fazer do envoltório material e lhes suscita a ideia da vida espiritual, fazendo que a desejem como uma compensação.
6 Objetar-se-á: não podia Deus chegar ao mesmo resultado por outros meios, sem constranger os seres vivos a se entredestruírem? 7 Desde que na sua obra tudo é sabedoria, devemos supor que esta não existirá mais num ponto do que noutros; se não o compreendemos assim, devemos atribuí-lo à nossa falta de adiantamento. 8 Contudo, podemos tentar a pesquisa da razão do que nos pareça defeituoso, tomando por bússola este princípio: Deus há de ser infinitamente justo e sábio. Procuremos, portanto, em tudo, a sua justiça e a sua sabedoria e curvemo-nos diante do que ultrapasse o nosso entendimento.
22. — Uma primeira utilidade, que se apresenta de tal destruição, utilidade, sem dúvida, puramente física, é esta: os corpos orgânicos só se conservam com o auxílio das matérias orgânicas, matérias que só elas contêm os elementos nutritivos necessários à transformação deles. 2 Como instrumentos de ação para o princípio inteligente, precisando os corpos ser constantemente renovados, a Providência faz que sirvam ao seu mútuo entretenimento; eis por que os seres se nutrem uns dos outros; mas, então, é o corpo que se nutre do corpo, sem que o Espírito se aniquile ou altere; fica apenas despojado do seu envoltório. n
23. — Há também considerações morais de ordem elevada.
2 É necessária a luta para o desenvolvimento do Espírito; na luta é que ele exercita suas faculdades. 3 O que ataca em busca do alimento e o que se defende para conservar a vida usam de habilidade e inteligência, aumentando, em consequência, suas forças intelectuais. 4 Um dos dois sucumbe; mas, em realidade, que foi o que o mais forte ou o mais destro tirou ao mais fraco? A veste de carne, nada mais; ulteriormente, o Espírito, que não morreu, tomará outra.
24. — Nos seres inferiores da criação, naqueles a quem ainda falta o senso moral, em os quais a inteligência ainda não substituiu o instinto, a luta não pode ter por móvel senão a satisfação de uma necessidade material; 2 ora, uma das mais imperiosas dessas necessidades é a da alimentação; eles, pois, lutam unicamente para viver, isto é, para fazer ou defender uma presa, visto que nenhum móvel mais elevado os poderia estimular. 3 É nesse primeiro período que a alma se elabora e ensaia para a vida.
4 No homem, há um período de transição em que ele mal se distingue do bruto; 5 nas primeiras idades, domina o instinto animal e a luta ainda tem por móvel a satisfação das necessidades materiais; 6 mais tarde, contrabalançam-se o instinto animal e o sentimento moral; luta então o homem, não mais para se alimentar, porém, para satisfazer à sua ambição, ao seu orgulho, à necessidade, que experimenta, de dominar; 7 para isso, ainda lhe é preciso destruir. 8 Todavia, à medida que o senso moral prepondera, desenvolve-se a sensibilidade, diminui a necessidade de destruir, acaba mesmo por desaparecer, por se tornar odiosa; então, o homem tem horror ao sangue.
9 Contudo, a luta é sempre necessária ao desenvolvimento do Espírito, pois, mesmo chegando a esse ponto, que parece culminante, ele ainda está longe de ser perfeito; 10 só à custa de muita atividade adquire conhecimento, experiência e se despoja dos últimos vestígios da animalidade; 11 mas, nessa ocasião, a luta, de sangrenta e brutal que era, se torna puramente intelectual; 12 o homem luta contra as dificuldades, não mais contra os seus semelhantes. n
[1]
O erro está em pretender-se que a alma haja saído perfeita das mãos
do Criador; quando Este, ao contrário, quis que a perfeição resulte
da depuração gradual do Espírito e seja obra sua. Houve Deus por bem
que a alma, dotada de livre arbítrio, pudesse optar entre o bem e o
mal e chegasse a suas finalidades últimas de forma militante e resistindo
ao mal. Se houvera criado a alma tão perfeita quanto ele e, ao sair-lhe
ela das mãos, a houvesse associado a sua beatitude eterna, Deus tê-la-ia
feito, não à sua imagem, mas semelhante a si próprio. (Bonnamy: A razão
do Espiritismo, capítulo VI.) [La
Raison du Spiritisme - Google Books.]
[2] Veja-se: Revista Espírita, agosto de 1864: Destruição dos aborígenes do México.
[3] Sem prejulgar das consequências que se possam tirar desse princípio, apenas quisemos demonstrar, mediante essa explicação, que a destruição de uns seres vivos por outros em nada infirma a sabedoria divina e que, nas leis da Natureza, tudo se encadeia. Esse encadeamento forçosamente se quebra, desde que se abstraia do princípio espiritual. Muitas questões permanecem insolúveis, por só se levar em conta a matéria.
As doutrinas materialistas trazem em si o princípio de sua própria destruição. Têm contra si não só o antagonismo em que se acham com as aspirações da universalidade dos homens e suas consequências morais, que farão sejam elas repelidas como dissolventes da sociedade, mas também a necessidade que o homem experimenta de se inteirar de tudo o que resulta do progresso. O desenvolvimento intelectual conduz o homem à pesquisa das causas. Ora, por pouco que ele reflita, não tardará a reconhecer a impotência do materialismo para tudo explicar. Como é possível que doutrinas que não satisfazem ao coração, nem à razão, nem à inteligência, que deixam problemáticas as mais vitais questões, venham a prevalecer? O progresso das ideias matará o materialismo, como matou o fanatismo.