1. Num ambiente de paz e de serenidade transcorreram os meus primeiros dias no Além-Túmulo.
2 Não obstante a minha tranquilidade, impressionavam-me ainda as sensações corporais, em razão das profundas raízes de sentimentos, que me ligavam ao orbe terráqueo. 3 Bastaria que eu me colocasse em contato com as recordações da vida, que deixara, para que revivessem, em meu mundo interior, incidentes, que presumia inumados para sempre no olvido, junto das mais acerbas lembranças. 4 Avivaram-se, então, as próprias dores físicas que eu experimentara nos meus últimos tempos na Terra; e sentia-me alquebrada pela dor e pelos desgostos.
2. São essas manifestações de vontade fraca e indecisa que mais torturam os trespassados, no início de sua existência extraterrestre.
2 Na vida livre, o pensamento é quase tudo.
Não há nela formas determinadas como no mundo da matéria; e tudo se subordina aos ditames de uma vontade potente.
3. Meus parcos conhecimentos a respeito do Espírito e de suas possibilidades dificultavam-me a concentração do poder mental num objetivo definido, o que auxilia sobremaneira os seres recém-libertos da carne a compreenderem a vida que os rodeia.
4. Francelina, — o Espírito boníssimo que me servira de mãe, no mundo, — obtivera permissão para me acompanhar na iniciação da existência espiritual; e foi guiada por sua meiguice, que ingressei nas regiões misteriosas, que a morte nos descerra em outros Planos.
5. Do local, em que me encontrava a seu lado, direi, para que possas fazer uma ideia, que era igual a um dos majestosos edifícios daí, cheio de confortáveis apartamentos. 2 Era, como se pode dizer, uma grande casa de socorros espirituais, um ninho acolhedor de almas errantes e enfraquecidas.
3 Havia aí solicitude, zelo e amor fraternais.
Muita coisa aí existe que não se parece com os objetos da Terra; porém, algo aí vive que pode servir de formas intermediárias entre um e outro Plano.
6. Num espaçoso recinto, cujo teto era a abobada estrelejada do infinito, nos reuníamos para orar; 2 e era ali que, em sagrado recolhimento, ouvíamos, enlevados, as mais sublimes lições dos mestres, os elevados Espíritos que nos visitavam e que, como consoladores e guias, orientavam o nosso pensamento para concepções grandiosas do universo, confortando-nos em nossa fraqueza e ensinando-nos a vida excelsa da verdade.
3 Muitas vezes, nos instantes em que nos entregávamos, em conjunto, às mais fervorosas orações, víamos descer, das vastidões etéreas que nos cobriam a cabeça, uma profusão de pétalas de flores, que desapareciam quando aspirávamos os seus perfumes balsâmicos.
4 Explicou-me um Espírito evoluído que essas chuvas de aroma eram as manifestações do benefício da prece, que elevávamos aos páramos da perfeição e que, a eles remontando, voltava aos nossos corações saturada do amor das almas benditas que, por seu saber e suas virtudes, se tornavam colaboradoras diretas da omnipotência divina.
7. Em outras ocasiões, afigurava-se-nos ouvir músicas estranhas e de ritmos desconhecidos, que nos embalavam na sua harmoniosa carícia. 2 Às vezes, me parecia deslocada na sua vibração, acompanhando-a no seu interminável caminho, vendo então, no céu, um coração doirado e resplandescente de luz, cujas pulsações enchiam de melodias todo o universo, como um símbolo radioso e sagrado da Alma Divina.
8. Salmos!… Hosanas!…
Hinos de felicidade intraduzível, escutávamos, comovidos, transportados de esperanças e de inenarráveis alegrias.
2 Muitos dos sábios mentores, que aí nos acompanhavam, aproveitavam esses ensejos para materializarem os seus nobilíssimos pensamentos, transmitindo-nos mensagens que ficavam por instantes maravilhosamente grafadas na tela eterizada do Infinito e eram generosos apelos ou profundas exortações, que calavam no mais íntimo dos nossos Espíritos.
9. Foi-me dito, então, que tais ocasiões propiciavam esses fenômenos singularmente belos, porquanto se aproveitava a vibração-síntese de todos os nossos pensamentos reunidos em prece, como grande coeficiente de força plasmadora.
2 Espetáculos indescritíveis, contemplados na vida errática, e as mais proveitosas lições são aí colhidas; 3 desse meio é que muitas almas regressam ao mundo terreno, cheias de conhecimentos extraordinários para acender os archotes guiadores da humanidade.
4 Aí a educação intelectual e o aprimoramento das possibilidades sensitivas são o principal escopo de todas as atividades da criatura.
5 Assim como tendes os vossos livros, que representam o repositório de vossa cultura, há lá também uma substância, que retém os grandes pensamentos das almas nobres. Nenhuma lição fica, pois, perdida e todos os Espíritos procuram assimilar a essência desses profundos ensinamentos.
10. Esse ambiente constitui uma grande Esfera fluídica, onde todas as nossas impressões tomam corpo de realidade.
2 Aí existe ainda a nutrição; contudo, o Espírito, geralmente, absorve os elementos, que regeneram sua vitalidade, no próprio oxigênio que respira, em inimagináveis condições de pureza e nas mais delicadas composições químicas da atmosfera.
3 Alguns seres, em aí aportando, necessitam, por força dos hábitos arraigados, de alimentos análogos aos da Terra, o que obtêm por algum tempo, mas apenas na aparência de realidade, ilusão esta que é consentânea com as superficialidades do corpo somático, até que se acostumem com as novas modalidades de sua existência.
11. Altamente instrutivas são aí as conversações e assembleias dos Espíritos. 2 Personalidades eminentes aí se encontram elaborando projetos grandiosos para as suas atividades porvindouras. 3 Não há lacunas para as futilidades de que a vida terrena está cheia. Tudo aí é a súmula de aspirações edificantes, o que é, aliás, natural porque, estando indene da fadiga, que lhe advém da luta pelo pão diário, pode a alma entregar-se às mais santificadas expansões.
12. Influxos abençoados, inspirações salvadoras promanam daí para a humanidade: mensagens enviadas pelas almas que, sob qualquer bandeira, aí viveram como condutores diretos ou indiretos das coletividades.
2 A vida, pois, aí decorre como se fosse numa abençoada estação de repouso, onde se descansa de muitas lides e se aprendem as mais proveitosas lições para o progresso nas lutas futuras.
13. O tempo não se conta aí como nos cronômetros terrenos, e o fenômeno do dia e da noite é diversificado, verificando-se, em lugar da treva noturna, uma leve diminuição da intensidade da luz solar, a qual se torna esbatida como num dos vossos lindos crepúsculos repletos de colorações e nuances admiráveis, como se a luz interpenetrasse todas as coisas .
2 A vegetação é extremamente interessante e bizarra, em comparação com a da Terra.
Imaginai um craveiro florescendo com suas raízes entrelaçadas na própria atmosfera do mundo, para fazerdes uma ideia do que estou descrevendo.
3 Poucas flores são mais ou menos semelhantes às dos vossos jardins e a maioria delas vos pareceriam extravagantes à primeira contemplação; caracterizam-se, porém, por sua indescritível e invulgar delicadeza.
14. Alguns Espíritos me disseram que as almas sumamente perfeitas e que já se tornaram em executores dos decretos do Altíssimo, auxiliam os seres rudimentares do reino mineral e vegetal, ajudando-os na organização de suas formas; de modo que muitos cristais e flores são formas dos seus pensamentos formosos e sábios, que elas saturam de elementos de astralidade, auxiliando assim o embrião espiritual em suas manifestações iniciais.
15. Como poderia descrever a serenidade, a paz que se desfruta num ambiente feliz da Erraticidade? Não há vocábulos ou arroubos de imaginação para faze-lo com fidelidade.
2 Foi aí que encontrei afetos acrisolados e reconheci as amizades que desafiam o tempo e a morte, nesses locais onde existem ainda os reflexos da vida planetária e onde o Espírito adquire forças novas para a luta interminável no progresso universal.
16. Após adaptar-me mais ou menos a essa minha nova vida, ocorreu-me como vos poderia rever abi e solicitei de um instrutor informação a respeito.
— “Sabes em que direção está a Terra? — perguntou ele com bondade.
2 Diante da minha natural ignorância, apontou-me com a destra um ponto obscuro que se perdia na imensidade, recomendando-me fita-lo atentamente. 3 Afigurou-se-me vê-lo crescer dentro de um turbilhão de sirocos indescritíveis. Parecia-me contemplar a impetuosidade de um furacão a envolver uma grande massa compacta de cinzas enegrecidas.
4 Tomada de inusitado receio, desviei meu olhar; porem o meu guia solícito exclamou com brandura:
— “Lá está a Terra com os seus contrastes destruidores; os ventos da iniquidade varrem-na de polo a polo, entre os brados angustiosos dos seres que lá se debatem na aflição e no morticínio. 5 O que viste é o efeito das vibrações antagônicas, emitidas pela humanidade atormentada nas calamidades da guerra!… Lá, alimentam-se as almas com a substância amargosa das dores e, sobre a sua superfície, a vida é um direito do mais forte. Triste existência, a dessas criaturas que se trucidam mutuamente para viver! 6 Conhecem-se, lá, as chacinas, a fome, as epidemias, a viuvez, a orfandade que aqui não conhecemos… Obscuro planeta de exílio e de sombras!… Entretanto, poucos lugares, no universo, abrigarão tanto orgulho e tanto egoísmo!
Por este motivo é que esse mundo amargo necessita de golpes violentos e rudes.
7 Busca ver naquelas regiões ensanguentadas o local em que viveste. Pensa nos que lá deixaste, cheios de amargurosa saudade! Deus permite e eu te auxilio.”
17. Delineei então, na mente, tudo quanto se relacionava com a minha derradeira existência.
Primeiramente, vi-me à margem de uma encantadora paisagem marítima, avistando um caminho longo, através do qual fui impelida a seguir.
2 Sentia-me na posse das faculdades volitivas, que obtivera com o meu desprendimento da vida carnal, e, numa fração infinitésima de tempo, estava ao vosso lado.
3 Ah! Como vos abracei a todos, emocionada e recolhida! Como achei pequenino o nosso antigo lar e como me penalizou o quadro das vossas dores e dificuldades!
4 Chorei amargamente vendo a miséria do mundo que vos compele ao sofrimento e a uma batalha sem tréguas!…
5 Então, misturei, com a prece dos encarnados, sofredores e aflitos, a oração de minhalma amedrontada, rogando ao Pai de Misericórdia que vos fortificasse na luta redentora, onde, ao lado dos prantos inúmeros e das alegrias mascaradas, esvoaça o bando das mil tentações que assediam os Espíritos no ambiente obscuro da vida carnal, obrigando-os ao esquecimento de seus deveres e de suas austeras obrigações morais.
Maria João de Deus