1. Chegara o dia 2 de Novembro de 1915 e mais dum mês já havia transcorrido sobre o dia de minha desencarnação.
2 Nesse dia, sob o império do grande dissabor, que me advinha daquela incompreensão, em que me encontrava, dirigi-me tristemente à igreja para orar, aproveitando a quietude da sua soledade. 3 Em lá penetrando, porém, compreendi que não me achava só, percebendo que outras almas, padecendo talvez a mesma dor que eu experimentava, conservavam-se extáticas ao pé dos altares, onde tinham ido buscar certamente um pouco de consolação e de esclarecimento.
4 Todavia, assim que me entreguei totalmente aos arrebatamentos da prece, senti uma vibração intraduzível percorrendo todas as fibras do meu ser, como se fosse sofrer um vágado, afigurando-se-me invadida pela influência do sono; mas durou poucos instantes semelhante estado.
2. Despertei-me novamente e vi-me ao lado de uma legião de seres, que se achavam genuflexos como eu; 2 contudo, era outro o templo no qual me encontrava. Era um recinto amplo e majestoso, construído à base de elementos que não me é possível qualificar, por falta de termos equivalentes no dicionário humano. 3 Nesse interior magnificente não havia santuário determinado para orações, mas sim obras de arte sublime e superior, destacando-se uma tribuna formada de matéria luminosa, como se fosse feita de névoas evanescentes. 4 Ouvia-se, como provinda de um coro dulcíssimo de vozes meigas e cristalinas, uma prece ao Criador, repleta de harmonias e de excelsitudes; aquele cântico melodioso era mais um cicio de asas ou um murmúrio de favônios unindo as pétalas das flores.
5 Então, mais que nunca, me lembrei dos afetos, que me ligavam ao lar; e um receio incoercível inundou o meu espírito, amedrontado com a perspectiva de uma separação eterna, porque eu sabia ter sido arrebatada para um local distante, a menos que estivesse possuída por extremas alucinações após as incertezas e as agonias da morte.
6 De onde provinham aquelas cadências harmoniosas de cavatina celeste, que me faziam vibrar de emotividade até às lágrimas?
7 Então, toda a minhalma chorava de amargura e de alegria; havia em meu coração um misto de saudade e júbilo inexprimíveis.
3. Foi quando se desenhou, na tribuna de neve translúcida, uma figura majestosa de parlamentário, parecendo-me que ali se materializara, por um processo misterioso, um anjo celeste, em forma humana, no qual se destacavam todas as perfeições.
2 Irradiava-se do seu olhar benigno e fulgurante toda uma onda de indescritível ternura, que transbordava na sua voz, saturada de suavidade e doçura: — “Irmãos, — começou ele, — a nossa prece, o hino dos nossos corações, mistura-se a todas as harmonias do Infinito, elevando-se para Deus, numa torrente de melodia e de aroma; 3 o laço, que une os nossos espíritos neste momento, misto de luzes da contextura estelar, prende igualmente todos os sistemas planetários do Ilimitado, que se irmanam no amor mais sublime à sua Divina Causa.
4 Vós, que aqui vos encontrais, vindes das plagas remotas das sombras terrenas! Possuídos de angústia e de esperança, que se refletem nas lágrimas dos vossos olhos, guardais ainda no íntimo as recordações acerbas da existência no exílio, como os carvões que sobrevivem no coração da Terra longínqua sob os escombros das florestas incendiadas; 5 constituís uma multidão de almas errantes e sofredoras, perambulando em derredor dos objetos que formaram a paisagem das vossas miragens enganadoras, porque a única vida real é a vida do Espírito de posse da sua liberdade preciosa.
4. Toda a existência terrena está calcada nos instrumentos que servem para as manifestações espirituais e, infelizmente, a vossa excessiva dedicação a esses instrumentos viciou o vosso mundo emotivo, circunscrevendo as suas possibilidades ao ambiente terrestre, onde apenas possuíeis um pálido raio de luz na noite de um fraco raciocínio.
2 Não soubestes, dentro da pequenez da educação, que vos foi parcamente ministrada, descerrar o velário augusto que encobre o santuário infinito da vida, acomodando-se entre as acanhadas concepções, que vos foram impingidas pelas ideias religiosas, que amesquinham a grandeza do Criador do Universo na face do orbe que vindes de abandonar. 3 Criar um local fantástico de gozo beatífico ou de sofrimento eterno e inelutável, centralizar a vida em um globo de sombra, é somente a obra da ignorância desconhecedora da omnipotência e da sabedoria divinas. 4 A vida não palpita apenas no mundo distante, onde abandonastes as vossas derradeiras ilusões; em toda parte pulula triunfante e o veículo das suas manifestações é o que se diversifica na multiplicidade dos seus Planos. 5 Os mundos são a continuidade dos outros mundos e os céus se sucedem ininterruptamente através dos espaços ilimitados.
5. Faz-se necessário que dispais da vossa mente a roupagem dos enganos materiais permitindo que a vossa espiritualidade interior vibre livremente com toda a intensidade da sua divina potência; 2 tendes o intelecto atulhado de lembranças nocivas, as quais precisais alijar para o reencontro da felicidade. Não vos demoreis em fazê-lo.
3 O corpo de vossas impressões persiste, desastrosamente, impelindo-vos a vertiginosas quedas sobre os pauis, de onde regressastes, repletos de saudade e de amargurada tristeza.
4 Considerai o verdadeiro panorama da vida universal: sistema de mundos venturosos enchem o universo de harmonias excelsas; entre as distâncias infindas do éter, descobrem-se terras de encantamentos e divinas grandezas! Sobre as vossas cabeças elevam-se os cânticos das vias-lácteas siderais e, sob os vossos pés, ouvem-se os hinos dos sois resplandecentes.
5 Ponderai sobre essa imensidade sem princípio e sem fim e reconhecei que o Espaço é a pátria comum de todas as almas. 6 Terminadas as lutas majestosas, que os seres levam a efeito pelo seu aprimoramento anímico, aqui se reúnem para elaboração de novos projetos grandiosos em novos surtos de perfeição e de progresso.
7 Nas existências planetárias, como a que acabais de deixar, lutam e sofrem nos grandes padecimentos remissores; às vezes, conhecem de perto a taça das amarguras, mergulhando-se no oceano das lágrimas, que salvam e regeneram. 8 Aí, nessas arenas angustas do aprendizado e da redenção, cauterizam-se feridas cancerosas, curam-se úlceras malignas, aprimoram-se sentimentos desviados da sua pureza, crescem os empreendimentos felizes e conhece-se o grande ensinamento da felicidade, oriunda da solidariedade salvadora.
6. Venturosos são os que se conduzem através de todas as barreiras e percalços, com o estandarte luminoso da fé, distribuindo os inesgotáveis bens da sua piedade e do seu amor. 2 Vivem serenos na paz de suas consciências, em meio das ambições corruptoras que os perseguem ao longo dos caminhos; seus dias representam um inaudito esforço de resistência contra o mal deprimente e oprobrioso. 3 Padecem continuadamente e, tombando nas batalhas morais, sangrando de dor, mas envolvidos no halo bendito da esperança e da crença, despertam jubilosos para a existência verdadeira, onde é o egoísmo uma palavra desconhecida e onde a confraternização universal é a mais legítima das realidades; 4 retemperam as suas forças, trabalhadas pela intensa luta da vida, nos arquipélagos doirados de paz e de repouso no infinito dos Espaços e assim se preparam para outras refregas, para outras iniciativas, na interminável e abençoada atividade espiritual, a fim de que se dilatem as suas potências em todos os domínios da sabedoria e do amor!…
5 Irmãos bem amados, alimentemos o anelo da vida perfeita!
6 Almas fracas e desditosas, cheias de saudades e desenganos, sacudi a poeira das estradas palmilhadas, abri os vossos corações para a luz como sacrários de ouro sob um plenilúnio divino!
7 Esquecei temporariamente o teatro de vossos infortúnios, onde muitas vezes fostes traídas e humilhadas, mas onde também obtivestes o alvará de vossa liberdade preciosa. Elevemos ao Pai a nossa oração de reconhecimento e de amor, da qual se evolem todos os nossos mais puros sentimentos transubstanciados em harmonias celestes!…”
7. Terminada que foi a alocução, pronunciada com a mais sagrada das eloquências e que, de um modo geral, imperfeitamente reproduzo, com os meus olhos nublados de pranto, ouvi os soluços de muitos dos circunstantes, que choravam sob o império da mais forte emoção.
2 Então oramos, acompanhando os inspirados impulsos daquele enviado celeste, que procurava incutir-nos a fé, a esperança e a resignação, com as suas palavras piedosas e compassivas.
3 Um luar indescritível, projetando-se na tribuna, que lhe guardava ainda a luminosa figura, banhou as nossas frontes; e pude observar que a atmosfera se impregnava de um capitoso perfume; 4 percebi que, sobre as naves encantadas do templo, caíam profusamente flores iguais às rosas terrenas, mas que se desfaziam ao tocar em nossas cabeças como taças fluidas de luminosidade e de aroma.
5 Ah! como chorei naquele dia! Minhalma frágil se comovia sob indômita emotividade; mas, desde aquele instante, incorporei-me a uma grande falange de Espíritos benignos, que mourejavam em suas tarefas ao lado da Terra, trabalhando pelo bem dos seus semelhantes, beneficiando-se simultaneamente no mais útil dos aprendizados.
Maria João de Deus