O Caminho Escritura do Espiritismo Cristão
Doutrina espírita - 2ª parte.

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Cartas de uma morta — Maria João de Deus


1


No limiar da vida de além-túmulo

(Sumário)

Tema principal

1. Meu caro filho, para mim, as últimas impressões da existência terrena e os primeiros dias transcorridos depois da morte foram muito amargos e dolorosos.

2 Quero crer que a angústia, que avassalou a minhalma, originou-se da mágoa profunda, que me ocasionava a separação do lar, e dos afetos familiares; porque, apesar de crer na imortalidade, enchiam-me de pavor os aparatos da morte, dentro do catolicismo, que eu professava fervorosamente, enchia-me de pavor com a perspectiva de uma eterna ausência.

3 Lutei, enquanto me permitiram as forças físicas, contra a influência aniquiladora do meu corpo; e foi uma luta extraordinária a que sustentei, como soe acontecer aos corações maternos, quando periga a tranquilidade dos seus filhos. Unicamente, esse amor obrigava-me ao apego à vida porque os sofrimentos, que já havia experimentado, faziam-me desprender naturalmente de todo o prazer que pudesse me advir ainda das coisas da Terra.


Últimos instantes do tormento corporal


2. Combati com tenacidade a moléstia, que enfraquecia o meu organismo, porém um dia chegou, assinalando o fim das minhas possibilidades de resistência. As minhas derradeiras horas foram de um excruciante martírio e, depois de um dia repleto de dores violentas e rudes, veio a noite interminável da agonia; reparava que o meu tempo no mundo se escoava dificilmente, almejando o seu termo como um trabalhador sedento e faminto, ávido de repouso

2 O meu estado moral caracterizava-se por uma semi-inconsciência, porque o tormento corporal atuava sobre as minhas ideias, que vagavam desordenadas como se fossem expulsas violentamente do meu cérebro.


A voz de comando desobedecida


3. Desejava orar; todavia, os meus pensamentos não conseguiam obedecer-me, dispersos pela confusão estabelecida em meu mundo interior, em virtude dos padecimentos, que me percorriam os centros da atividade orgânica; e a minha vontade era semelhante a uma voz de comando, totalmente desobedecida por elementos rebeldes e indisciplinados.

2 Hoje sei que, naqueles momentos angustiosos, muitos seres se conservavam, intangíveis embora, ao meu lado, amparando-me com os seus braços tutelares e compassivos; porém eu não os distinguia.

3 Sentia-me sucumbir lentamente… a princípio, gemidos de sofrimento escapavam-se do meu peito torturado, sentindo a ineficácia dos meus esforços para não morrer; mas tão rude era aquela suprema tentativa de resistência, que me abandonei finalmente àquelas forças poderosas e invencíveis, que me subjugavam.


Como numa atmosfera de sonho


4. Amanhecia; e afigurou-se-me alcançar uma trégua a tantos padecimentos, parecia-me prestes a dormir, mas sob as mesmas impressões de dor e de mal-estar, sentindo-me envolta nas influências do sono, contudo presa de indescritíveis pesadelos. 2 Ouvi tudo quanto se pronunciou ao redor de meu leito e vi a ansiedade de quantos dele se abeiravam, mas todas essas impressões eu as recebia como se estivesse mergulhada em um mau sonho. 3 Desejei falar, manifestar desejos e pensamentos; isso, porém, me era impossível. Contemplei pesarosa a imagem do Crucificado, que me puseram nas mãos enlanguescidas e quis sinceramente pensar n’Ele, orar com unção, segundo os meus hábitos; todavia, experimentando-me cheia de vida, não obstante as dores, pairavam os meus sentidos como em uma atmosfera esquisita de sonho…

4 Senti todos os zelos, que dispensaram ao meu corpo, que me eram igualmente dispensados; e ouvi as lamentações de quantos deploravam a minha ausência. Ansiava por movimentar-me sem que membro algum obedecesse aos meus impulsos, e, de outras vezes, fazia inaudito esforço para despertar-me, evadindo-me de tão singular pesadelo; 5 afigurava-se-me que me cobriam de flores e senti a carícia dos braços dos meus filhos, que me enlaçavam com amargurada ternura; e dizia-lhes mentalmente, entre lágrimas: — “Meus filhos, eu não morri!… Aqui estou e sinto-me realmente mais forte para vos proteger e para vos amar. Porque chorais aumentando a minha angústia?…”

6 Mas a minha boca estava hirta e os meus braços gelados para retribuir aquelas expansões de desvelado carinho! Apenas tinha a sensação de prantos ardentes, que rolavam dos meus olhos sobre as faces descoloridas, como a estátua viva da amargura e do silêncio.


Na vertigem da retrospecção


5. O ataúde pareceu-me um novo leito; porém, quando me convenci de que me arrebatavam com ele, entre os lamentos angustiosos de todos vós que ficastes, uma impressão penosa, atrocíssima, subjugou-me integralmente. 2 Achei-me então sob indefinível sentimento de medo, que me aniquilou a totalidade das fibras emotivas. Um choque de dor brusca dominou-me a alma e eu perdi a consciência de mim mesma…

3 Após algum tempo, cuja duração não posso determinar, afigurou-se-me acordar, paulatinamente; contudo, a princípio, achava-me envolvida no mesmo panorama de sonho; 4 comecei a ver, como se a minha memória fosse possuída dum poder admirável de retrospecção, todos os quadros da minha meninice e da minha juventude, relembrando um a um os fatos mínimos da minha existência relativamente curta. Via-os, esses quadros do pretérito, com toda naturalidade, sem admiração e sem surpresa…


O lar terreno entrevisto do Além


6. Todavia, depois, inexplicavelmente, uma amnésia completa invadiu o meu cérebro espiritual e só pude recordar-me dos laços afetivos, que ainda a vós me prendiam, quando se me apresentou aos olhos a visão dos últimos instantes da minha vida terrena.

2 Busquei então o lar que eu deixara; mas, oh! Torturante surpresa! Meus filhos não me reconheceram e debalde formulei os meus sentidos e carinhosos apelos! Senti-me alucinada e em vão procurei as minhas antigas amizades.

3 — “Não me vedes? Não me reconheceis?” — bradava eu, contrariada com a atitude impassível daqueles de quem me aproximava, cheia de esperança numa possível compreensão das minhas palavras; mas a frieza e a indiferença constituíam a resposta de sempre.

4 Então duplicaram-se as minhas ânsias, anelando a minha libertação daquelas impressões penosíssimas; contudo. à medida que me conformava com a minha nova situação, parecia-me que a atmosfera se ia aclarando, como se na minha mente renascesse a memória integral do meu passado, diluindo-se as trevas, que a obscureciam; 5 e, uma noite, quando reunidos oráveis, segundo o costume que eu sempre cultivara, ouvi que o oferecimento das preces a Deus era feito em intenção de minhalma.


Ah! Eu morrera!…


7. Descerrou-se, finalmente, o derradeiro véu, que obumbrava o meu ser pensante… senti-me sã, ativa, ágil, como se despertasse naquele instante… Ah! Eu morrera!…

2 E a morte representava um grande bem, porque eu me sentia bem outra, trazendo as minhas faculdades integrais, cheia de favoráveis disposições para as lutas da vida. 3 Todavia tinha a impressão de estar só, já que ninguém respondia às minhas arguições, embora sentisse que a minha voz nada perdera de seu vigor e tonalidade.

4 Propositalmente procurava fazer-me vista por todos, mas uma perturbadora impassibilidade correspondia aos meus pensamentos. Refugiei-me então nas preces mais sinceras e fervorosas. 5 Foi quando comecei a divisar vultos sutis e ouvir vozes acariciadoras, de que fugia amedrontada e receosa, na ilusão pueril de que me achava com o meu corpo físico, cheia de medo e susceptibilidades…


Maria João de Deus


Texto extraído da 2ª edição desse livro - 1937. Revista e aumentada pelo autor.
Há uma imagem da 1ª edição - 1935.

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