1 Na Casa da Morte, em Trenton, † Bruno Richard Hauptmann † desfolha pela última vez o seu calendário de recordações. É de tarde. O condenado sente esvanecer-se-lhe a derradeira esperança. Já não há mais possibilidade de adiamento da execução, depois das decisões do Grande Júri de Mercer, † e o caso Wendel [Paul] representava o único elemento que modificaria o epílogo doloroso da tragédia de Hopewell. † O Governador do Estado de Nova Jersey já havia desempenhado a sua imitação de Pilatos, e o Sr. Kimberling nada mais poderia fazer que o cumprimento austero das leis que condenaram o carpinteiro alemão à cadeira elétrica.
2 Hauptmann sente-se perdido diante do irremediável e chora, protestando a sua inocência. Recapitula a série de circunstâncias que o conduziram à situação de indigitado matador do Baby Lindbergh, † e espera ainda que a justiça dos homens reconheça o seu erro, salvando-o, à última hora, das mãos do carrasco. Mas, a justiça dos homens está cega; tateando na noite escura de suas vacilações, não viu senão a ele, no amontoado das sombras.
A polícia norte-americana precisava que alguém viesse à barra do tribunal responder-lhe por um crime nefando, satisfazendo assim às exigências da civilização, salvaguardando o seu renome e a sua integridade.
3 E o carpinteiro de Bronx, † o olhar mareado de lágrimas, recorda os pequenos episódios da sua existência: a sua velha casa humilde de Kamenetz; n o ideal da fortuna nas terras americanas, a esposa aflita e desventurada e a imagem do filhinho, brincando nas suas pupilas cheias de pranto. Hauptmann esquece-se então dos seus nervos de aço e de sua serenidade, perante as determinações da justiça, e chora convulsivamente, temendo enfrentar os mistérios silenciosos da Morte. Paira no seu cérebro a desilusão de todo o esforço diante da fatalidade e, sentindo o escoamento dos seus derradeiros minutos, foge espiritualmente do torvelinho das coisas humanas, para se engolfar nas meditações das coisas de Deus. 4 Suas mãos cansadas tomam a Bíblia do padre Werner e o seu espírito excursiona no labirinto das lembranças. Ao seu cérebro atormentado voltam as orações aprendidas na infância, quando sua mãe lhe punha na boca os Salmos de David e o nome santo de Deus. Depois disso, ele viera para o mundo largo, onde os homens se devoram uns aos outros, no círculo nefasto das ambições. Suas preces de menino perderam-se, como resto de um naufrágio em noite de procela. Ele não conhecera nenhum apóstolo e jamais lhe mostraram, no turbilhão das lutas humanas, uma figura que se assemelhasse ao Homem Suave dos Evangelhos. Entretanto, nunca, como naquela hora, sentiu tanto o desejo de ouvir-lhe a palavra sedutora do Sermão da Montanha. Aos seus ouvidos ecoavam as derradeiras notas daquele cântico de glorificação aos bem-aventurados do mundo, pronunciado num crepúsculo, há dois mil anos, para aqueles que a vida condenou à miséria e ao infortúnio, e uma voz misteriosa lhe segredava, aos ouvidos, da grandeza da cruz, cheia de belezas ocultas e ignoradas.
5 Hauptmann toma o Salmo XXIII, repetindo com o Profeta: — “O Senhor é o meu Pastor, nada me faltará.”
O relógio da penitenciária prosseguia decifrando os enigmas do tempo e o carrasco já havia chegado para o seu terrível mister. Cinquenta testemunhas ali se conservam, para presenciarem a cena de supremo desrespeito pelas vidas humanas. Médicos, observadores das atividades judiciárias, autoridades e guardas ali se reúnem para encerrar tragicamente um drama sinistro, que emocionou o mundo inteiro.
6 O condenado, á hora precisa, cabelos raspados à máquina, e a calça fendida para que a execução não falhasse, entra, calado e sereno, na Câmara da Morte. Havia no seu rosto um suor pastoso, como o dos agonizantes. Nenhuma sílaba se lhe escapou da garganta silenciosa.
Contemplou calmamente o olhar curioso e angustiado dos que o rodeavam, representando ironicamente o testemunho das leis humanas.
No seu peito não havia o perdão do Cristo para os seus verdugos, mas um vulcão de prantos amargos torturavam-lhe o íntimo, nos instantes derradeiros. Considerando toda a inutilidade de sua ação diante do Destino e da Dor, deixou-se amarrar à poltrona da Morte, enquanto seus olhos tangíveis não viam mais os benefícios alegres da claridade, mergulhando-se nas trevas em que iam entrar.
7 Elliot imprime o primeiro movimento à roda fatídica, correntes elétricas anestesiam o cérebro do condenado e, dentro de quatro minutos, pelo preço mesquinho de alguns centavos, os Estados Unidos da América do Norte exercem a sua justiça, não obstante as dúvidas tremendas que pairam sobre a culpabilidade do homem, em cuja cabeça recaiu o rigor de sua sentença.
8 Muito se tem escrito sobre o doloroso drama de Hopwell.
Os jornais de todo o mundo focalizaram o assunto e as estações de rádio encheram as atmosferas com as repercussões dessa história emocionante. Não é demais, portanto, que “um morto” se interesse por esse processo, que apaixonou a opinião pública mundial, não para exercer a função de revisor dos erros judiciários, mas para extrair a lição da experiência e o benefício do ensinamento.
9 As leis penais da América do Norte não possuíam elementos comprobatórios da culpa de Richard Hauptmann, como autor do nefando infanticídio. Para conduzi-lo à cadeira da Morte não prevaleceram senão argumentos dubitativos, inadmissíveis dentro da cultura jurídica dos tempos modernos. Muitas circunstâncias preponderavam no desenrolar dos acontecimentos e que não foram tomadas na consideração que lhes era devida: a história de Isidoro Fisch, a ação de Betty Cow e de Violette Scharp, a leviandade das acusações de Jafsie Condon e a dúvida profunda empolgando todos os corações que acompanharam em suas etapas dolorosas o desdobramento do processo sinistro.
10 Mas, em tudo isso, nessa tragédia que feriu cruelmente a sensibilidade cristã, há uma justiça pairando mais alto que todas as decisões dos tribunais humanos, somente acessível aos que penetraram o escuro mistério da Vida, no ressurgimento das reencarnações.
11 Hauptmann sacrificado na sua inocência, Harold Hoffman † com o desprestígio político perante a opinião pública do seu paiz e Lindbergh, herói do século, ídolo de sua pátria e um dos homens mais afortunados do mundo, fugindo de sua terra a bordo do “American Importer”, onde quase lhe faltava o conforto mais comezinho, como se fora um criminoso vulgar, são personalidades interpeladas na Terra pela Justiça Suprema.
12 Nos mundos e nos espaços, há uma figura de Argos observando todas as coisas. No seu tribunal do direito incorruptível, a Têmis Divina arquiteta a trama dos destinos de todas as criaturas. E só nessa justiça pode o homem guardar a sua esperança, porque o direito humano, quase sempre filho da supremacia da força, é às vezes falho de verdade e de sabedoria.
13 Dia virá em que a justiça humana compreenderá a extensão do seu erro condenando um inocente. As autoridades judiciárias hão de se preparar para a enunciação de uma sentença nova, mas o processo terá subido integralmente para a alçada suprema da equidade absoluta. Debalde os juízes da Terra tentarão restabelecer a realidade dos fatos, com os recursos de sua tardia argumentação, porque nesse dia, quando Bruno Richard Hauptmann for convocado para o último depoimento, em favor do resgate de sua memória, o carpinteiro de Bronx, que os homens eletrocutaram, não passará de um punhado de cinzas.
Humberto de Campos
(Irmão X)
6 de abril de 1936.
[1] Carpinteiro alemão, originário da cidade de Kamenz? †
Essa mensagem foi publicada primeiramente em 1935 pela LAKE e é a 9ª da 1ª Parte do
livro “Palavras do Infinito.”