1. Atingira Marina o quinto mês de gestação. Entre o esposo e o pai, acompanhada pelo devotamento de Dona Justa, que a servia por mãe, transpirava regozijo, embora os estorvos naturais.
2 Cláudio seguia o acontecimento, enternecido. No íntimo, detinha a convicção de que Marita se achava junto da família, prestes a ressurgir em novo berço. 3 Cada noite, orações pela tranquilidade do Espírito que voltava, preces pela felicidade dos filhos. Visitas mensais ao médico, prestando assistência à filha. Passes de reconforto à gestante. Mimos para o bebê.
4 Demorávamo-nos, por vezes, a admirar-lhe a paciência e a ternura, lendo para a filha, ao tricô, páginas educativas de ginecologistas e pediatras, instruindo-a, asserenando-a.
De permeio, Gilberto, feliz, na expectativa de um sucessor.
5 Conjeturava-se, quanto ao sexo da criança, planejavam-se realizações, endereçavam-se ao porvir. Dona Justa repetia a história do homem que carregava o cesto de ovos, sonhando com fazendas que lhe adviriam dos pintos improváveis.
Riam-se.
6 De nosso lado, resguardando Marita, quanto possível, no processo reencarnatório, junto da irmã, partilhávamos o enlevo geral.
Tudo esperança, sossego.
7 A criança encomendada figurava-se no grupo familiar um sagrado penhor de reconciliação com a vida. A paz, aparentemente definitiva, entrara no lar do Flamengo, como se todos os pesares transcorridos estivessem para sempre arquivados nas gavetas do tempo. 8 Entretanto, o passado palpitava naquele trato de ventura, como a raiz parcialmente enferma, escondida no solo, sustentando embora o tronco florido.
2. Apareceu a tarde em que ambos os bancários surpreenderam a jovem dona da casa em agoniado abatimento.
2 De princípio, atribuiu-se a alteração ao problema orgânico, mas, agravada a ocorrência, chamou-se o médico, sem que o facultativo atinasse com a origem da queda súbita.
Marina enlanguescia…
3 Finda uma semana, valeu-se Cláudio de ensejo para a conversação a sós e investigou-a. Suspirava por vê-la recuperada, fortalecida. Receava complicações. Exortou-a à confiança e ao otimismo. Orasse, tivesse fé. No conhecimento espírita, não ignorava que a criança, em vias de nascer, lhe reclamava descanso, alegria. 4 Notando que a moça, em determinado ponto do entendimento, pendia a cabeça, de lenço aos olhos, fez-se mais persuasivo, rogando para que se abrisse com ele. Não lhe opusesse reservas. Afligia-se, era pai. Excetuando Gilberto, que passara a bem-querer por filho, não dispunha, na Terra, de outra pessoa, senão dela, para incentivar-se ao trabalho.
5 A interlocutora, comovida, levantou-se, demandou o quarto e trouxe-lhe um papel. Uma carta. Cláudio leu-a, sem dissimular no rosto o assombro e o sofrimento.
6 O escrito vinha de Nemésio. Participava o regresso ao Rio, após seis meses de Europa. Confessava-se, desabrido. Afirmava-se entediado de tudo, menos dela, a quem amava ainda com inusitado calor. Informara-se do casamento; ao retornar, no entanto, jamais a consideraria por nora. O filho não passava de um tonto, de um espantalho, dizia ele, do qual se deveriam afastar para o cultivo da felicidade que ele mesmo, Nemésio, frustrara, abandonando-a sem maior consideração. Pedia escusas e aguardava-a. Conhecera países novos, contemplara maravilhas que lhe afetaram os olhos, mas o coração quedava ermo, jungido a ela através do pensamento.
7 Até à metade do relatório afetivo, reportava-se Torres pai a conceitos de compaixão e carinho, mas, na última parte, incidia na irreverência. Sacudia-lhe a memória. Perguntava-lhe por lugares menos recomendáveis. Acusava-se desajustado, saudoso. Pedia encontro. Dar-lhe-ia instruções para o desquite. Possuía excelentes amigos no Foro. Que ela não o desapontasse, porque, de outro modo, uma bala na cabeça ser-lhe-ia a solução. Não vacilaria entre a felicidade com ela e o suicídio. Que escolhesse. Punha-lhe o destino nas mãos.
8 O missivista não traçava a menor referência quanto a Márcia.
9 Nogueira analisou a gravidade da situação, pensando, pensando… Recordou, calado, o espancamento sofrido no banco, que não mencionara aos filhos, e deduziu que Nemésio era capaz de todas as violências. Anteviu a tormenta que se esboçava, mas tratou de consolar a filha. Desanuviou o semblante e sorriu, paternal. 10 Aquilo tudo não passaria de momento infeliz. Que não se amofinasse. Procuraria o negociante em pessoa, a fim de rogar-lhe serenidade e reconsideração, ao mesmo tempo que lhe participaria a chegada próxima da criancinha que seria para ele também, Nemésio, um sorriso de Deus. Impossível que a notícia não lhe acordasse enternecimento. Que a filha não se afligisse. O sogro investir-se-ia na condição de avô, antecipadamente, e olvidaria o passado, abraçando a reconciliação com a família para a felicidade geral.
11 Nos olhos da interlocutora, seduzida pelo magnetismo daquelas palavras, a esperança brilhou com a paz que o genitor lhe devolvia ao coração.
3. Na manhã seguinte, Cláudio, discreto, pôs-se em campo. 2 Rogou a colaboração de amigos íntimos, a fim de que alguns dos corretores da imobiliária fossem ouvidos, e veio a saber que os turistas haviam regressado, semanas antes. 3 O chefe, contudo, vira-se defrontado por notícias desagradáveis e mostrara-se irritadiço. O afastamento do filho desequilibrara a balança dos negócios, não somente porque isso golpeara os créditos morais de Nemésio, mas também pelo fato de a circunstância encorajar abusos da parte de subordinados que não se revelaram à altura da autoridade recebida. 4 A longa viagem, numa época de crise na organização, à face da ausência de Gilberto, atraíra desastres financeiros, abrindo brechas dificilmente recuperáveis. Amigos da firma haviam retirado, à pressa, capitais importantes, desistindo dos depósitos com que lhe garantiam a segurança. 5 Prejudicado o movimento, onerara-se a imobiliária com dois vultosos empréstimos, para cujo resgate entregara Nemésio duas terças partes dos próprios bens. Não detinha agora senão possibilidades estreitas para lastrear as operações imediatas e evitar a falência. 6 E fosse por vê-lo destituído das propriedades que a fascinavam ou porque houvesse esgotado as reservas afetivas para com ele, Dona Márcia abandonara-o e residia com Selma, planeando a formação de um restaurante.
4. Nogueira recolheu todos os informes, apreensivo. Mesmo assim, após o almoço, vencendo a própria repugnância com os recursos da oração, demandou a moradia dos Torres.
2 Levava o espírito pressago, triste…
Fez soar a campainha no vestíbulo ajardinado; no entanto, o pai de Gilberto vira-o, de longe, quando apeava do ônibus, e do terraço em que fumava, à sesta, expediu aviso. Um empregado, em nome dele, veio dizer a Cláudio fizesse a gentileza de se considerar indesejável. Não lhe receberia a visita naquela hora, nem noutras.
3 Nogueira retirou-se, compreensivo.
Inútil o tentame.
Voltou ao trabalho e rogou entendimento com o chefe que se lhe tornara mais amigo. Mostrou-lhe a carta que o conhecido agressor lhe dirigira à filha e ponderou, quanto à necessidade de protegê-la, sem parecer ao genro que assim procedia defendendo-a do sogro.
4 O gerente, prestativo e humano, associou-se-lhe aos cuidados e sugeriu-lhe uma licença de seis meses. Nenhum impedimento para ele, antigo funcionário com excelente folha de serviço. Nessa fórmula, apoiaria a moça e resguardá-la-ia, desde a caixa do correio, impedindo que novas cartas lhe chegassem às mãos, até a assistência contínua em casa, hora a hora, para que se lhe garantisse a tranquilidade na gravidez. 5 Incumbir-se-ia de comunicar a Gilberto e colegas que ouvira de médicos amigos a recomendação de impor-lhe descanso indeterminado, e se entenderia, ele próprio, com os clínicos, que não lhe sonegariam a concessão. Que repousasse e atendesse a filha.
6 Cláudio agradeceu, confortado.
Vinda a noite, entrou em conversação com a filha, sossegando-a. Afirmou possuir razões para acreditar que Nemésio não mais a molestaria. Esclareceu ter estado na residência dos Torres; contudo, não avançou além de semelhante informe, dando a impressão de que o problema fora liquidado na origem. 7 E interessados quais se achavam em apagar o pretérito, pai e filha se entretiveram no assunto da licença. Marina rejubilava-se. Ambos se devotariam a trabalhos diversos. Juntos, construiriam o berço do nenê. Dariam nova disposição ao apartamento. Diferentes decorações. 8 Cláudio fez humor. Salientou que Gilberto e ele se empenhavam em apostas. O genro aguardava um príncipe. Ele contava com uma princesa. De qualquer forma, era preciso organizar o palácio. Dizia-lhe o coração que a neta se achava em caminho… Por isso, concordava em renovar os móveis e pintar as paredes, mas exigia que todo o serviço fosse feito com predominância de rosa. Gracejaram. 9 Aprovando os planos, Marina solicitou-lhe o concurso na organização de um álbum que andava formando para o bebê, enquanto esperavam por Gilberto, que prosseguia estudando à noite, com vistas à melhoria.
10 Demandando, por fim, o leito, Cláudio sensibilizava-nos com oportunas reflexões, permeadas de preces ardentes. Previa, inquieto, que doravante seria compelido a novos encargos. Acautelaria Marina e, consequentemente, Marita, de cuja reencarnação guardava a certeza. 11 A carta de Nemésio, ressumando inconformidade, e a rudeza com que lhe havia cerrado a porta, não lhe conferiam margem a dúvidas. Teria conflitos e injúrias à frente; no entanto, nada razoável desanimar. 12 Orava, implorando recursos aos Espíritos amigos. Que o não deixassem confiado a si mesmo, que lhe impedissem as manifestações de fraqueza, que lhe frustrassem qualquer propósito de revide. 13 Identificava-se num teste. Indiscutivelmente prejudicara Nemésio Torres em outras existências. Devia pagar. Somente ao clarão da lógica espírita destrinçava a meada dolorosa. 14 Aquele homem castigara-o na alma e na carne, transformara-se para ele em cobrador do destino. A consciência determinava-lhe aceitar os desafios com humildade. Se bem não se sentisse em condições de se acomodar com a virtude, anelava solver os débitos contraídos, ainda que isso lhe custasse a existência. Por essa razão, suplicava o apoio do Cristo, a fim de esquecer-se, de maneira a seguir caminho afora, segundo as Leis Divinas…
5. Efetivamente, conhecendo o horário aproximado de recepção do Correio, no prédio, Nogueira desceu, no dia seguinte, com a desculpa de obter pão mais fresco e recolheu nova carta de Nemésio, endereçada a Marina, cuja identidade estabeleceu para logo, através da letra. 2 Abriu-a. Era coleção de recados, sabendo a fel. Misturava declarações e libelos, alegava dificuldades, crises. Dizia precisar dela para recompor as finanças. Restaurar-se-ia em reduzido tempo, se o atendesse. Não obstante os prejuízos que experimentara, ainda era suficientemente abastado para fazê-la feliz. Reclamava resposta. Ameaçava.
3 Nogueira, reservado, queimou o papel.
A ocorrência, no entanto, se repetiu diariamente, por dois meses.
4 Minuciosa ou sintética, a missiva chegava, pontualmente. Cada texto mais inconveniente que o outro. Por vezes, relatava as andanças a que se entregava no Flamengo, tentando revê-la. Noutras ocasiões, depois de frases melífluas, exigia pronunciamentos descabidos, sob pena de estourar o crânio, deixando queixa à Policia contra ela, com o fim de arruiná-la. Em bilhetes comprometedores, proibia-lhe dar filhos a Gilberto. Preferia matá-la ou matar-se a receber netos do lar que haviam formado. Referia-se ao revólver, qual se lhe fosse companheiro incessante.
5 Dia a dia [Nemésio], o negociante, se figurava ao leitor paciente mais contraditório e menos lúcido. Cada vez que entregava os manuscritos ao fogo, Cláudio percebia que o redator de tantos aleives se atascava, sempre mais, em loucura e obsessão, sem que lhe fosse facultado assumir qualquer providência, entre o genro feliz e a filha gestante. 6 Cumpria-lhe tudo amargar, sem dividir com pessoa alguma a dor que o espicaçava. E para que a filha não pudesse penetrar os motivos de tamanha solicitude, ele se lhe convertera no pajem de todo instante.
7 No encontro último de consultório, indicara o médico ligeiros exercícios físicos. Nenhuma ginástica. Algo suave. Bastariam marchas diminutas a pé. Realizasse à noitinha curto passeio até à praia, em esforço diário, enquanto lhe fosse possível. Nada mais que isso. 8 A gestante obedeceu e, como era de esperar, Nogueira se lhe erigiu em guarda-costas, sustentando o coração repassado de inquietude. Não se lhe oferecia ensejo de opor embargos à prescrição. Para a filha, aquela primeira manifestação de Nemésio, pelo serviço postal, fora varrida do pensamento.
9 Marina, enlaçada ao pai, largava o prédio, efetuando breve percurso, para sentar-se, junto dele, nunca por mais de meia hora, ao pé do mar. Aí se entretinham habitualmente nos temas caseiros, quando não se internavam em assuntos do espírito.
10 Escorridos seis dias sobre as excursões aconselhadas, o registo de Torres pai veio diferente.
Acompanhando Nogueira, analisamos a alteração. A letra modificada, configurando insultos, revelava superexcitação fronteira à demência. Comunicava à esposa de Gilberto tê-la visto, por fim, na praia, em companhia daquele pai, que crivava de pejorativos e ofensas, e verificara que ela, afinal, se engravidara contra as ordens que lhe ditara em observações anteriores. 11 Acreditava-se o mais desmoralizado de todos os homens desmoralizados. Enojava-se da paixão que nutrira por ela, preferia morrer. Confessava-se falido. Escasseava-lhe tudo. Acabara-se o dinheiro, desertavam amigos. Restava-lhe de seu, tão só, a moradia, assim mesmo hipotecada. 12 Esperara por ela, pelas decisões dela. Se juntos, contaria com a possibilidade de se reerguer. Entretanto, a gravidez apontada desiludira-o. Plantaria uma bala na cabeça. Despedia-se dela e do mundo com repugnância. Que visse nos borrões frequentes daquelas páginas com que encerrava a existência as marcas das lágrimas que chorava. Lágrimas de revolta, desprezo, repulsão. Finalizava, alinhando obscenidades e informando estar assinando o nome pela última vez.
6. Nogueira, assustado, leu e releu o documento e, antes de reduzi-lo a cinzas, insulou-se no quarto e orou por aquele homem que, pelo jeito, se afundava em pavoroso desespero. 2 Compadeceu-se. Impraticável, todavia, colocar o genro ao corrente da situação. Nemésio delirava. Mais justo que o filho aguardasse notícias do tresloucado genitor por outras fontes. 3 Impressionou-se, contudo, de tal forma com a mensagem recolhida que, após o almoço, demandou, com discrição, algumas das organizações policiais e hospitalares que lhe pareciam suscetíveis de fornecer alguma pista, com referência ao suicídio anunciado, mas em vão. Nenhum vestígio. 4 Depois da caminhada, junto da filha, repousou mais cedo. Sentia fome de meditação mais prolongada. Concentrando-se em pensamentos de benevolência e de fé, rogava a Jesus pelo adversário. Que os mensageiros do Cristo se apiedassem de Nemésio, amparando-o. Se ainda estivesse no corpo carnal, que se lhe estendesse o socorro preciso para que não resvalasse em deserção; se houvesse forçado irrefletidamente as portas da vida espiritual, que fosse bafejado pela proteção dos Emissários Divinos…
5 Enquanto Moreira e eu lhe acompanhávamos a súplica, Percília entrou.
Esperou o momento oportuno e comunicou-nos que vinha da parte do irmão Félix, a fim de colaborar conosco. 6 Os apelos de Cláudio, durante todo o dia, transmitidos para o “Almas Irmãs”, tinham impelido vários amigos a rogar auxílio em benefício dele. Chegara no objetivo de ser útil. 7 E nós, que lhe admirávamos a bondade silenciosa, enternecemo-nos ao observar a devoção com que se instalou no aposento, qual enfermeira afetuosamente consagrada a doente querido.
7. Mais quatro dias transcorreram sem episódios especiais, a não ser a extrema dedicação de Percília que, diante de Cláudio, era análoga ao amor de Cláudio para com a filha.
2 Entre sete e oito da noite, descemos do prédio e demandamos os sítios conhecidos…
Os Nogueiras conversavam tranquilamente, em torno de assuntos triviais, à frente das águas mansas, tão mansas que refletiam prateadas faixas do firmamento, a constelar-se de luz.
A aragem soprava, aliviando a tensão do dia.
Novembro seguia, cálido. Aqui e ali, na paisagem, transeuntes encarnados e desencarnados, sem novidades que chamassem atenção…
3 Após o descanso, a volta.
Pai e filha, à beira da pista asfaltada, esperavam vez, notando os carros que desfilavam, velozes.
Locomovia-se Marina, pesadamente; em razão disso, reconhecido o sinal de passagem livre, iniciaram a travessia com vagar; no entanto, o imprevisto aconteceu.
4 Automóvel a deslocar-se de longe, com lentidão, adquiriu estranho movimento, qual se perdesse todos os controles e, quebrando as regras do trânsito, precipitou-se sobre pai e filha, em tremenda impulsão. Nogueira, rápido, dispôs simplesmente de um segundo para arredar a filha e foi arremessado a distância, depois de sofrer o impacto da máquina à altura do tronco…
5 Percília, Moreira e eu, assombrados, vimos Nemésio ao volante, com a fisionomia de louco, mantendo o auto, qual avião em decolagem, desnorteando guardas e populares, que, debalde, se dispunham a segui-lo.
6 Marina, em gritos, foi imediatamente escorada por senhoras que acudiram, emocionadas. Sobreveio a agitação. Motociclistas dispararam no encalço do agressor. Funcionaram telefones próximos para o socorro urgente. O bolo crescia, em torno de Nogueira, que tombara em decúbito ventral. Bradava-se contra choferes desalmados, contra jovens inconscientes…
7 Cláudio, tonto a princípio, recuperou os sentidos e virou-se com dificuldade. Superando a resistência do corpo que se tornara rígido, conseguiu sentar-se, apoiando-se nos dois braços a se retesarem, forçando as mãos espalmadas no solo.
8 A filha!… Ansiava enxergá-la, sabê-la viva, salva!… O sangue pingava-lhe da boca, mas, sobrepondo-se à curiosidade dos circunstantes, perguntou por ela. Marina, firmando-se em benfeitoras anônimas, arrastou-se até ele. Não sofrera sequer um arranhão; todavia, aturdira-se. Receava desfalecer. No entanto, fitando o genitor a dominar-se para insuflar-lhe segurança, cobrou forças. 9 Cláudio ensaiou um sorriso quase alegre, que o sangue entristecia, e rogou-lhe calma. Ferira-se um pouco. Apenas isso, explicava. Problema simples que a hospitalização de algumas horas viria resolver. Afligia-se tão somente por ela. Ficasse boazinha, suplicou. Confiasse em Deus. Tudo terminaria bem. 10 Solicitou a presença do genro, que um dos cavalheiros presentes se prontificou a buscar, no endereço da Glória, que ele mesmo forneceu. Intentou prosseguir conversando, para consolo da filha, mas notou que as energias lhe escapavam…
11 Percília, acomodada no chão, resguardava-o em lágrimas. Desencarnados amigos que procediam das vizinhanças, satisfazendo-nos o apelo, protegiam a gestante, dispensando-lhe auxílio. Moreira e eu diligenciávamos fortificá-lo, conjugando recursos magnéticos.
12 Em derredor, a balbúrdia…
O acidentado, contudo, alheou-se, em reflexão.
Novembro… Lembrava-se de que dois anos jaziam transcorridos sobre o desastre no qual supunha haver Marita procurado a morte. Ela tombara perto do mar, ele também… Ambos atropelados por automóvel. Contemplou o céu e recordou que a filha caíra quando as estrelas se apagavam, ele, quando as estrelas se acendiam… 13 Fixou Marina que chorava, baixinho, e verificou que as lágrimas represadas lhe constringiam a garganta. Queria tanto viver para aquela filha, aguardava com tanta ternura a criancinha por nascer!… 14 Nisso, sentiu que se lhe reconstituía na mente a visão em que se reconhecera visitado por Marita, e as palavras da prece que formulara lhe vieram, uma a uma, ao ádito da memória. “Senhor, tu sabes que ela perdeu os sonhos de criança por minha causa… Se é possível, amado Jesus, permite agora que lhe dê minha vida!… Senhor, deixa que eu ofereça, à filha de minha alma, tudo o que eu tenho!…” 15 Quando esses trechos da oração se lhe rearticularam no pensamento, sorriu e compreendeu. Sim, considerou intimamente, devia regozijar-se. Acreditava que Marina e Marita ali se achavam juntas… juntas… Por que não dar alegremente a vida para que a filhinha prematuramente desencarnada, por culpa dele, viesse a refazer a existência? Por que não agradecer ao Senhor o bendito instante em que pudera acautelar Marina contra o carro homicida? Não seria aquela hora, para ele, Espírito endividado, a maior manifestação da bondade de Deus? 16 Impelira a filha para a morte, incriminara-se sem que a justiça da Terra lhe infligisse punições. Nas preces costumeiras, rogava aos amigos espirituais o ajudassem no resgate da falta cometida. Se lhe competia encetar o pagamento do débito assumido, apenas no curso de existências porvindouras, por que não iniciá-lo, mesmo ali, entre os rostos desconhecidos que Marita, igualmente, fora constrangida a defrontar?!…
17 Soberana tranquilidade se lhe instalou no espírito.
Diante da ambulância que chegara, pediu a própria internação no Hospital dos Acidentados. Que o serviço policial o favorecesse. 18 Carregado por braços generosos, despediu-se da filha, a recomendar-lhe otimismo, serenidade. Esperasse por Gilberto e lhe participasse o acontecido, sem exagerar as impressões. Nada de alarmes. Se necessário, pediria o concurso de alguém para dar notícias ao telefone. Que não se apoquentasse por sustos.
8. Dentro do carro, enquanto Nogueira pensava em Marita, ao viajar num carro igual àquele, nas mesmas circunstâncias, Percília, que o aconchegava de encontro ao colo, se desfazia em pranto copioso. 2 Concluindo, porém, que Moreira e eu nos desassossegávamos, ao vê-la assim, aquela criatura, comumente silenciosa, falou, submissa:
3 — Irmãos, perdoai-me a comoção excessiva!… Cláudio é meu filho… Não choro de dor ao ver-lhe o corpo caído, mas sim de alegria por abraçar-lhe o espírito levantado!… 4 Choro, irmãos, ao reconhecer que eu, mulher prostituída no mundo, hoje em serviço de minha regeneração depois de provas árduas, posso aproximar-me do filho que Deus me confiou, a fim de pedir-lhe perdão pelos maus exemplos que lhe dei…
5 Diante daquele testemunho de humildade, Moreira e eu baixamos a fronte, envergonhados…
Quem deveria ali penitenciar-se por maus exemplos senão eu? Que não teria padecido aquela corajosa mulher, cujos laços de parentesco terrestre com Nogueira eu desconhecia até então, para expressar-se assim? 6 Que martírios amargara na Terra e depois da desencarnação para senhorear a serenidade com que se acusava, ela, que eu aprendera a venerar, como sendo minha própria mãe, em dois anos de trabalho constante, invariavelmente interessada em compreender e servir? 7 Não podia auscultar os sentimentos de Moreira. A emotividade sufocava-me. Sei apenas que ele e eu, num movimento instintivo de respeitosa afeição, inclinamos as cabeças, ao mesmo tempo, sobre a destra maternal que afagava o ferido, osculando-a com reverência…
9. Mais alguns minutos de expectativa e dávamos entrada no estabelecimento que nos era familiar.
2 O médico que se responsabilizara, de mais perto, pela assistência a Marita, a pedido de Nogueira foi chamado pelo fio. Atendeu sem delonga.
3 Expedíamos mensagem para irmão Félix; entretanto, não acabávamos a transmissão n e o benfeitor, com a naturalidade de quem já sabia de tudo, surgiu rente a nós.
4 Informou que chegara ao Rio, minutos antes, mas, não desconhecendo que Nemésio se mantinha relegado ao próprio infortúnio, decidira-se a examiná-lo, de imediato, para considerar que espécie de socorro seria capaz de receber.
5 De minha parte, quis perguntar se Torres pai enlouquecera; entretanto, o olhar do instrutor, naquela hora, não encorajava indagações.
6 Ativou-se-nos o trabalho socorrista, em colaboração com a medicina terrestre. Apesar disso, Félix inteirou-nos de que Nogueira se achava prestes a desligar-se do corpo. Nenhuma providência humana conseguiria sustar a hemorragia interna em efusão crescente. O médico dedicado improvisava medidas de salvação, que redundavam infrutíferas.
7 Nogueira esmorecia. Diligenciava mentalizar a figura de Marita, reconhecer lugares, mas a cabeça não se aprumava. Aguçou-se-lhe a atenção para o desequilíbrio e, inteligente, sondou o ânimo do facultativo, perguntando-lhe se julgava oportuno algum chamamento aos filhos. O interpelado concordou e, pelo olhar profundo que lhe dirigiu, adivinhou que o fim da atividade orgânica se aproximava… 8 Rememorou as noites de vigília, nas quais se agasalhava no apoio de Agostinho e Salomão. Reportou-se de leve a isso. Agostinho demandara o mundo espiritual, semanas antes, mas, se possível, estimaria abraçar o amigo de Copacabana…
O médico entendeu e comunicou-se com Gilberto e Salomão, pelo fio. Viessem com urgência.
10. Sensibilizando-nos, Cláudio, em prece, rogava forças. 2 Desejava apelar para o genro e para a filha, invocar-lhes a benevolência para Márcia e Nemésio…
3 Félix redobrou esforços para sustar o fluxo hemorrágico, ainda que por minutos, e, colaborando intensamente com o médico, obteve o que procurava.
4 O ferido ganhou inesperada melhora. Raciocinava com firmeza, conseguia comandar-se.
Lúcido, viu quando Gilberto e Marina entraram, compungidos. Daí a momentos, verificou a chegada de Salomão. Declarou-se reanimado e alegre, cunhando as palavras com a serenidade possível. Olhou, de maneira acariciante, para a filha ansiosa e avisou, com um sorriso forçado, que talvez fosse compelido a efetuar grande viagem para tratamento mais amplo.
5 Marina compreendeu a significação do gracejo e caiu em choro. O genitor, no entanto, advertiu-a com doçura. Onde a fé que cultivavam? Como não confiar em Deus que renova o Sol cada manhã, para que a vida permaneça triunfante? Tencionava falar-lhes de assunto sério…
6 Marejaram-se-lhe os olhos de pranto e, com inflexão de súplica, rogou-lhes bondade e entendimento para Nemésio e Márcia. Desconhecia o paradeiro de um e outro; contudo, quando a oportunidade aparecesse, que o lar do Flamengo se mantivesse repleto de carinho para eles, tanto quanto fora farto de amor para ele, Cláudio, que se aproveitava do momento para agradecer-lhes a abnegação incessante… 7 Confessou que Márcia era excelente companheira, que ele, tão somente, devia ser culpado pela separação… Acentuou que não detinha qualquer motivo para malquerer Nemésio, que o considerava um irmão, pessoa da família, com credenciais para ser acatado e compreendido em qualquer circunstância…
8 Entrementes, passou a respirar com dificuldade.
— Mas, meu sogro, — tartamudeou Gilberto, sopitando as lágrimas, — como quer o senhor largar-nos assim?!…
Ajustando o punho ao tórax, como para conter-se, aditou:
— E seu neto?
9 O agonizante esboçou uma expressão quase risonha e ponderou:
— Minha neta…
E acrescentou, reticencioso:
— Um espírita não aposta… Mas… se eu tiver vantagem… na teima… peço uma coisa. Peço… para que a menina… tenha o nome de Marita… prometam…
10 Agravaram-se-lhe a palidez, o cansaço. Desfazia-se, por fim, o efeito das forças magnéticas concentradas. Nogueira ainda pôde solicitar ao amigo uma prece, um passe… O farmacêutico orou, trêmulo, e administrou-lhe o benefício. 11 Logo após, o agonizante recordou o adeus de Marita e teve a impressão de que alguém lhe tocava os dedos. Era Percília que o acariciava, maternalmente. 12 Alongou a destra, na direção da filha, fixando nela o derradeiro olhar. Guiada por Félix, Marina estendeu-lhe a mão pequena que ele apertou, fortemente, até que, em se lhe relaxando a tensão, deu a perceber que repousara.
13 Cláudio entrou em coma, qual se dormisse, e durante quatro horas o coração vigoroso pulsou no tronco inerte, apesar do nosso empenho em libertá-lo.
14 Manhãzinha, sempre assistido pelos filhos e por Salomão, que velavam conosco, Félix ergueu-se em prece e, com o amparo de outros amigos da Esfera Superior, a cujos préstimos recorrêramos, afastou-o finalmente do veículo fatigado, depondo-lhe a cabeça nos braços de Percília, para a caminhada que nos cabia empreender…
15 O Sol fulgia, renascente, e, contemplando-lhe os raios, coroando aquela mãe amorosa, que conchegava o filho ao colo, tive a ideia de que o Pai de Infinita Bondade, ao vê-los renovados, queria mandar buscá-los da Terra para os Céus, num carro de ouro.
André Luiz
[1] [Vide: Algumas referências ao uso de itens materiais no Mundo Invisível do Plano Espiritual, como edificações providas dos mais diversos objetos, aparelhos, veículos de transporte, etc.]