O Caminho Escritura do Espiritismo Cristão
Doutrina espírita - 2ª parte.

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Sexo e destino — André Luiz — F. C. Xavier / Waldo Vieira — 2ª Parte


Capítulo 3

(Sumário)

1. Nogueira, reinstalado no aposento, ensimesmou-se, refletindo, refletindo…

2 Lá fora, a noite de chumbo e, com ele, o silêncio, apenas entremeado pela respiração sibilante da filha…

3 Se fosse unicamente Salomão o interventor inesperado! — Pensava, cismarento, — e talvez não se permitiria maior detenção no assunto. Aquele vendedor de remédios que lhe confidenciara os sucessos da noite, inspirando-lhe, aliás, gratidão e simpatia, parecera-lhe excelente pessoa; entretanto, na simplicidade bonachona com que se apresentava, poderia não passar do crente de boa-fé, lamentavelmente embiocado na superstição… 4 Agostinho, no entanto, agitava-lhe o espírito. Comerciante abastado e instruído, não se deixaria enrolar em tapeações. Conhecia-lhe a agudeza de raciocínio, a honestidade. Além disso, possuiria ocupações mais vantajosas em que aplicar atenção e tempo.

5 Que doutrina aquela, capaz de induzir um cavalheiro dinheiroso, a entrar em prece, num quarto de hospital, chorando de compaixão por arrasada menina, à beira da sepultura? Que princípios impeliam, assim, um homem educado e rico a esquecer-se, no socorro aos infelizes, a ponto de tocar-lhes as matérias fecais, imbuído daquele amor, que somente os pais conhecem nas entranhas do coração?

6 Fitou Marita que dormia, calma, e recordou os dois homens abnegados que lhe haviam trazido alívio, sem nada perguntar… Ele que jamais se aproximara de ensinamentos religiosos, habitualmente tratados por ele com manifesta desconsideração, acolhia-se agora a vasta série de porquês.

7 Abafado, agoniava-se com a sede de algo… Sem o apoio fluídico de Moreira, que dedicava todas as energias à moça em decúbito, lembrou o cigarro, mas dizia de si para consigo que não era mais o cigarro o objeto que desejava.

8 Aspirava a sair, correr ao encontro de Agostinho e Salomão, a fim de perguntar-lhes pela fé em Deus. Anelava inteirar-se de como conseguiam entesourar tanta crença. Ambos haviam suavizado a opressão que lhe supliciava a filha… 9 Naquele instante, indagava a si mesmo se não era igualmente digno de piedade. Marita repousava no sono das vítimas, que a justiça resguarda na paz inviolável da consciência, enquanto que ele se atormentava na vigília dos réus!… 10 Reconhecia-se enfermo da alma, náufrago que afundava no redemoinho do desespero… Queria agarrar-se a alguém, a alguma coisa. Singela raiz de confiança mantê-lo-ia à margem da queda total!… A solidão asfixiava-o. Tinha fome de companhia.


2. Sugeri-lhe a leitura. Que ele abrisse o volume com que fora brindado. O livro conversaria em silêncio, ser-lhe-ia companheiro. Não se comprometesse a digerir-lhe, de vez, todas as instruções. Consultasse trechos, aqui e ali. Respigasse ideias, selecionasse conceitos.

2 Assimilou-me a indução e tomou a brochura, compulsando-a. Ainda assim, tentou reagir. Acusava-se incapaz, inquieto. Não retinha a menor parcela de serenidade para ler com aplicação ao assunto.

3 Insisti, porém.

Os dedos nervosos tatearam o índice. Relanceou o olhar, através das legendas. No capítulo XIn esbarrou com um item sob o título: “Caridade para com os criminosos”. Aquelas sílabas invadiram-lhe o cérebro atribulado quais gazuas de fogo. Sentia-se descoberto por tribunal invisível. 4 Sim! — Monologou, desconsolado, — é imprescindível examinar-se. Na própria conceituação, qualificava-se por malfeitor, foragido da grade. Durante o dia inteiro fora visto e acatado, ali, sob aquele teto, como sendo pai carinhoso, mas sabia-se estuprador, filicida… Carregava a dor irremediável de haver impelido a filha querida à loucura e à morte!… Que condenações enfileiraria aquele volume contra ele? Merecia escutar a própria sentença, junto daquela que lhe caíra sob o golpe aniquilador…

5 Procurou a folha indicada e oh! Surpresa!… O livro não lhe amaldiçoava a presença. Leu e releu, chorando, aquelas frases que ressumavam brandura e entendimento. Identificou-se à frente de um apelo à fraternidade e à compaixão, que não pintava os delinquentes por seres infernais, ausentes da órbita do Amor Divino. A pequena mensagem concitava à tolerância e terminava rogando preces, a benefício dos que sucumbem na voragem do mal.

6 As lágrimas borbotaram-lhe mais profusamente dos olhos!… Aquelas palavras chamavam-no à razão. Percebia que o mundo e a vida deviam estar banhados de profunda misericórdia. Classificava-se por matador e achava-se ali, reconsiderando o próprio caminho, com suficiente lucidez para analisar-se e pensar… 7 Aquele primeiro contacto com as verdades do espírito fendia-lhe, de alto a baixo, a cidadela do ateísmo. Com a sofreguidão do sedento que atravessa longo deserto, mortificado de sede, atirou-se aos textos, de cujos caracteres ideias esclarecedoras e balsâmicas vertiam, sublimes, lembrando torrentes de água pura. 8 Esquadrinhou vários temas… Adquiriu conhecimentos rápidos acerca da reencarnação e da pluralidade dos mundos, meditou nas maravilhas da caridade e nos prodígios da fé, através das chamas imortais do Cristianismo que ali renasciam para ele, reaquecendo-lhe o coração!…

9 Quando olhou o relógio, os ponteiros marcavam duas da madrugada.

Varara quatro horas, mergulhado no livro, sem perceber. Sentia-se outro. O cérebro clareara-se, crivado de pensamentos renovadores que lhe suscitavam ardentes inquirições. Aquela era uma doutrina que lhe permitia sentir e indagar livremente, qual filho no regaço de mãe… 10 Em verdade, conjeturava, se Deus não existisse, se não houvesse uma vida, além da Terra, por que se entregava, daquele modo, a tão funda compunção? Se tudo na existência acabaria em animalidade e lodo, que razões lhe ditariam o suplício moral, diante da filha, que lhe inspirava contraditórios sentimentos? 11 Amava tanto aquela menina desventurada!… Por que não lograra sustentar-se, na posição de pai, infenso aos impulsos do sexo? Que forças o haviam arrastado até à condição do verdugo em que se aviltara? 12 A ideia da reencarnação relampejou-lhe na cabeça. Ele e ela remanesciam de experiências anteriores… Indubitavelmente, algemada a dominadoras alucinações afetivas, teriam vivido no passado, padecido e chorado juntos!… 13 Aquela devoção por Marita era para ele comparável ao iceberg que mostra reduzido fragmento, ocultando o peso enorme na vastidão das águas… Naquele momento, algo lhe dizia, na acústica do espírito; que ele, Cláudio, a trouxera, de novo, para o mundo, através da paternidade, a fim de orientá-la com limpeza e abnegação!…  14 A sabedoria da vida restituíra-lhe o carinho, no sorriso filial, por algum tempo, para que retificasse os erros do tirano amoroso que deveria ter sido em épocas passadas e as paixões cujos rescaldos lhe calcinavam agora o coração… 15 As realidades do destino se lhe alteavam do pensamento, belas e difusas, como o brilho dos raios de luz ao fundirem a névoa…


3. Ainda assim, não se desculpava. Reconhecia ter agravado os próprios débitos.

2 Entrevendo as realidades da vida Além-Túmulo, apelava para os amigos que vira partir!… Que se apiedassem dele e de Marita! 3 Que suplicassem a Deus para trocar-lhe a existência pela dela… Ele que se classificava pai criminoso expiaria, no mundo espiritual, as próprias faltas, para, em seguida, renascer na Terra, mutilado, ressarcindo os débitos contraídos. Que ele se afligisse, expungindo as nódoas da alma; entretanto, que a filha vivesse e fosse feliz!… 4 E, se lhe cabia continuar, ainda, no mundo, transportando no peito a angústia daquela hora, que a deixassem mesmo assim, abatida e muda, em seus braços! Teria forças para carregá-la!… Ser-lhe-ia apoio, refúgio!… Que ela ficasse! Que se lhe desse oportunidade de transfigurar, junto dela, todos os caprichos de homem rude em manifestações de amor puro… Aconchegá-la-ia, de algum modo, ao coração. Obteria uma cadeira de rodas, conduzi-la-ia a qualquer parte. Acolheria sem reclamar quaisquer obstáculos; entretanto, implorava à Providência Divina poupasse Marita ao gládio da morte para que não faltasse a ele o ensejo de reajuste e reparação!…

5 Abracei-o, sugerindo-lhe esperança. Que não esmorecesse. Confiasse. Quem estaria na Terra, sem problemas? Quantos, naquela mesma hora, em outros lugares, se achariam em lutas semelhantes? 6 Aquele volume, que lhe sacudia o pensamento, se mantinha, ali, qual sinal de trânsito, na estrada do destino. Valia interpretar o remorso por marca vermelha, suscitando parada. Conviria frear o carro dos próprios desejos e pensar, pensar!… 7 Todos atingimos um dia de reconciliação com a própria consciência; que não desertasse da luz que lhe acendiam na marcha. Compreendesse que a lei de Deus não se afirma em condenação, mas sim em justiça e que a justiça de Deus nunca se expressa sem piedade. 8 Que ele meditasse, concluindo que se nós outros, os homens imperfeitos, já conseguíamos adicionar compaixão à justiça, por que motivo Deus, que é o Amor Infinito, haveria de exercê-la, implacável? 9 Ali, transpúnhamos a escuridão da noite… A alvorada não tardaria e, com ela, o sol diurno que chegava sempre novo!… Que levantássemos todos os sentimentos para a renovação que começava!…

10 Moreira, que me avistava enlaçado a ele, endereçou-me ansioso olhar, como a inquirir pelas ideias que eu lhe insuflava. Antes, porém, que me viesse substituir, cioso do lugar de conselheiro que me permitia ocupar, apelei para Cláudio, inclinando-o a iniciar, ali mesmo, a obra reparadora.

11 O bancário não vacilou.

Fundamente enternecido, levantou-se, caminhou na direção da cama e ajoelhou-se à cabeceira.

Confessava a si próprio que, pela primeira vez, depois de muito tempo, fitava o semblante da filha, sem que a mais leve tisna de fascinação sexual lhe alterasse os sentimentos.

12 Tremeu-lhe o coração, atormentado.

Acariciou-a com uma espécie de ternura que jamais experimentara, deixou que as próprias lágrimas lhe orvalhassem o rosto e suplicou, em surdina:

— Perdão, minha filha!… Perdão para seu pai!…

13 A rogativa desfaleceu na garganta que os soluços embargavam…

Marita evidentemente não respondeu; no entanto, o afago paternal instilou-lhe energia diferente e tanto Moreira quanto eu próprio registamos, espantados, o gemido que ela desferiu, denotando sinais de retorno a si mesma.


4. Cláudio, esperançado, desligou-se. 2 O carinho impregnara-se nele de súbito respeito. Intimamente comparou aquele afeto imaculado que lhe nascia ao lírio alvo que desponta num charco.

3 Outros gemidos repetiram-se imprecisos, dolorosos…

O genitor escutava-os, ralado de angústia. Daria o que tivesse para traduzir aqueles vagidos de criança inconsciente… Conjeturou, porém, que eles exprimiam padecimentos físicos inenarráveis e agoniou-se em choro convulsivo. 4 O ex-vampirizador, n transfigurado em servo diligente, ergueu-se, presto, e veio abraçá-lo, no intuito de propiciar-lhe reconforto, mas notei que os dois amigos jaziam, agora, perto e longe um do outro. Juntos por fora e distantes por dentro. Ombros unidos e pensamentos opostos. 5 Moreira fora atingido pelos acontecimentos, mas não tanto. Patenteava enorme afeição por Marita, lutava por ela, mas, no fundo, não escondia o propósito de seguir controlando Cláudio, no resguardo de seu próprio interesse.  6 Identificando o parceiro tocado no coração pelos sentimentos edificantes que a leitura lhe sugerira, revelava o desapontamento semelhante ao de um pianista que surpreendesse o instrumento favorito com as teclas mudas. 7 Alarmado, desfechou-me perguntas. Sosseguei-o, afirmando que o cérebro de Nogueira se anulava, naquele instante, por arrasadoras comoções; 8 entanto, no íntimo, certificara-me de que ele havia dado um passo adiante e de que o companheiro menos feliz deveria elevar-se no mesmo diapasão para desfrutar-lhe a convivência, se não quisesse perder-lhe a companhia.

9 A mente do bancário emergia daquelas horas reduzidas de estudo compulsório, sob a tormenta moral, ao jeito de paisagem, quando varrida de terremoto. Nenhuma analogia com o que era antes. 10 Em razão disso, enfadava-se o outro, melindrado, triste.

Mesmo assim, Moreira retomou o trabalho de manutenção da jovem prostrada.


5. Nisso, porém, chegaram dois auxiliares, Arnulfo e Telmo, que vinham, da parte do irmão Félix, colaborar no auxílio à menina.

2 Ambos simpáticos, espontâneos.

Apresentei-os ao mantenedor magnético, surpreso, cuja posição espiritual reconheceram, de pronto; contudo, na gentileza característica dos corações generosos, envidaram todos os esforços para não constrangê-lo com qualquer linha divisória de tratamento. Rodearam-no de otimismo e bondade, qualificando-o na categoria de colega estimável.

3 Na antevéspera, aquele irmão, que se avalentoava no Flamengo, não aceitaria tal camaradagem; todavia, Marita ali respirava, entre dois mundos… Fatigada, dispnéica…

Por Marita, suportava as alterações, sofreava os impulsos.

4 A madrugada abeirava-se do dia.

Acercamo-nos de Cláudio.

Indispensável fazê-lo descansar, dormir.

5 Moreira, com iniludível desgosto a se lhe estampar na fisionomia, observou-nos o cuidado, na administração dos passes balsâmicos, aos quais o paciente aquiesceu sem qualquer contradita.

6 Aliás é de mencionar-se a sensação de alívio com que Cláudio nos respondeu ao toque sugestivo. Acabava de viver minutos de martírio inominável. Aspirava ao repouso, mendigava esmola de paz.

7 Todavia, enquanto se lhe relaxavam os nervos tensos à pressão do sono que lhe impúnhamos, brandamente, Moreira a tudo assistia, no crescente desagrado da pessoa que contempla a agitação e a mudança de sua casa, conturbada em serviços de reforma que não pediu. Lançava ondas de azedia e amargura no sorriso amarelo. Tudo para ele surgia deslocado, revirado… Entre o amigo que lhe fugia ao comando e a jovem, cujo corpo físico se decidia a preservar, sentia-se atônito, desenxabido…


6. Compreendendo que não lhe seria lícito incompatibilizar-se conosco, simplesmente à face da assistência que o esposo de Dona Márcia recolhia de nós, aplicou-se com mais veemência às atenções para com a moça, cujos pensamentos mais profundos empenhava-se agora por auscultar. 2 Marita, a seu turno, porque assimilasse mais amplo montante de força, acabou reassumindo o leme dos centros cerebrais, que ainda se lhe mantinham à disposição. Recuperou a sensibilidade olfativa, percebia, raciocinava e ouvia com relativa segurança; contudo, estava hemiplégica, nada enxergava e extinguira-se-lhe a fala, de modo irreversível. 3 A princípio, admitiu-se acordando no sepulcro. Ouvira muitas narrações, alusivas a mortos que despertavam no túmulo, lera depoimentos relacionando sucessos dessa ordem e assistira a vários filmes de horror. De alma opressa, supunha-se num transe desses, estendida ali no leito que tomava por ataúde, no silêncio de aflições inapeláveis… 4 Forcejava por gritar, reclamando socorro; no entanto, veio-lhe a ideia de haver esquecido o processo de articular as palavras. Sabia-se pensando com a própria cabeça, mas ignorava agora os movimentos coordenadores da voz.  5 Apesar de tudo, reconhecia-se consciente. Sentia, memorizava. Recordou os acontecimentos que lhe haviam inspirado o propósito de morrer. Arrependia-se. Se a vida continuava, para que provocar o fim do corpo? — Considerava, desditosa. 6 Lembrou as ocorrências da Lapa, a entrevista com Gilberto pelo telefone de Dona Cora, os comprimidos de Salomão, o sono à frente do mar, o desconhecido prestes a assaltá-la, a corrida para o asfalto, a queda sob o automóvel em movimento… 7 Depois, aquilo ali… O corpo estatelado que lhe parecia de pedra, a consciência ativa, as percepções aguçadas e a incapacidade de expressão… Intimamente, o esforço desesperado para fazer-se notar; no entanto, sentia-se entalada por gargalheira de chumbo. 8 Irritou-se, debalde. Fremia de impaciência, de espanto, de dor… Mágoa e revolta, petitórios e indagações esmaeciam-se-lhe, imanifestos, no âmago do ser. Por mais se empenhasse a chorar, desoprimindo-se, as lágrimas se lhe represavam no peito, sem nenhum canal que lhe extravasasse as agonias. Os olhos, tanto quanto a língua, se lhe figuravam desligados do corpo…

9 Estaria morta! — Perquiria a jovem num misto de perplexidade e sofrimento, — ou quase a morrer?

Escutou os passos da enfermeira de plantão e registou a respiração sibilante do pai, sem a possibilidade de identificar-lhes a presença e, em vão, tentou pedir explicação para o cheiro nauseante que a cercava.


7. Transcorridas duas horas de angústia recôndita, que Moreira assinalava com acuidade e precisão, a moça como que se aquietou, mentalmente, e perscrutando-lhe, por minha vez, o campo íntimo, notei que se fixava lamentavelmente em Marina.

2 O companheiro desencarnado que, até então, se fazia suporte psíquico de Cláudio e que necessitava de base moral para garantir o próprio reequilíbrio, encontrou pasto robusto a nova desorientação.

3 Descobri o perigo, sem poder conjurá-lo.

Percebendo-se demitido da complacência do amigo que se lhe transformara em joguete, procurava-lhe na filha motivos outros em que se lhe facultasse permanecer atrelado à demência.

4 De nossa parte, não era possível pressionar a menina acidentada, no sentido de lhe sustar as lamentações. Qualquer dispêndio de energias, além das estritamente necessárias ao seu sustento, poderia precipitar-lhe a desencarnação.

5 Insciente das complicações que gerava com semelhante procedimento, a filha de Aracélia reconstituiu na imaginação as aperturas da existência. Acusava a irmã por todos os infortúnios. Exibia-lhe a figura na tela da memória como sendo a inimiga imperdoável… Marina a furtar-lhe as carícias maternas, Marina a surripiar-lhe as oportunidades, Marina a roubar-lhe as afeições. Marina a subtrair-lhe o eleito dos sonhos juvenis…

6 Não valeram ponderações que lhe endereçávamos, inquietos.

A influência de Moreira, que lhe amimalhava as incriminações, surgia naturalmente muito mais vigorosa para ela, que diligenciava encontrar simpatia e adesão.

7 Aquela desventurada menina desconhecia os poderes do pensamento. Não sabia que, fora da indulgência e da brandura, invocava desagravo e, assim procedendo, não apenas enredava a família em duras provações, mas igualmente punha a perder o valioso trabalho de recuperação daquele amigo necessitado de afeição e de luz.

8 O ex-assessor de Cláudio, ao absorver-lhe as confidências mudas, em que relacionava os pesares mais íntimos, dos quais não tivera ele conhecimento, retomava, a pouco e pouco, a brutalidade que, anteriormente, lhe marcava a expressão.

9 Esvaeciam-se-lhe as melhoras de espírito.

A pretexto de auxiliar a protegida, reavivava os instintos de vingador.

O olhar que se adoçara de compaixão, readquiriu a lividez dos alienados. Sumiram-se todos os indícios de retorno à sensatez e à humanidade que patenteava, desde o momento em que renteara com a moça abatida.

10 Inútil seria qualquer tentame para reconduzi-lo à serenidade. Embebendo-se nos queixumes daquela que classificava como sendo para ele a mulher querida, restaurava em si mesmo a selvageria da fera sequiosa de sangue. 11 Respondendo-nos às petições de calma e tolerância, clamava que não, que não… Ninguém o faria renunciar à guerra pela tranquilidade daquela que amava; alegava desconhecer, até então, o martírio que a irmã lhe aplicara durante a vida inteira e insistiria no desforço…

12 Ao vê-lo abandonar o serviço a que voluntariamente se impusera, incapaz de refletir nas consequências da própria deserção, compreendi que o ex-obsessor, convertido em amigo, fora assaltado por crise de loucura, e inclinei-me a considerar se o irmão Félix não errara solicitando a permanência de Marita no corpo desarticulado, tal a extensão dos males que o ex-vampirizador seria capaz de estender, a partir daquela hora; no entanto, reprimi-me… 13 Não! Eu não detinha o direito de julgar o companheiro destrambelhado que se afastava de nós, enquanto o sol da manhã se aprumava no céu. O irmão Félix sabia o que fizera e, com certeza, em outro tempo, não me desequilibrara e nem desacertara em ponto menor?…

Competia-me simplesmente trabalhar, socorrer.

14 Transferi nossos encargos às atenções de Arnulfo e Telmo e demandei a residência dos Torres, o único lugar para onde Moreira, a nosso ver, decerto rumaria.

Entrei…

15 Na casa silente, cochichava-se a medo. Lágrimas no semblante dos servidores humildes.

Dona Beatriz, em coma, esperava a morte.

Neves e outros afeiçoados do mundo espiritual rodeavam o leito. Dedicada enfermeira observava a senhora, prestes a mergulhar no grande repouso, diante de Nemésio, Gilberto e Marina, que se acomodavam a pequena distância.

16 Aturdido, porém, verifiquei que Moreira não se achava ainda aí. A surpresa, entretanto, se desfez para logo, de vez que, transcorridos alguns momentos, o ex-acompanhante de Cláudio, seguido por quatro camaradas truculentos e carrancudos, penetrou, desrespeitosamente, o recinto… E, sem a menor comiseração pela agonizante, acercou-se da filha de Dona Márcia e gritou, encolerizado:

— Assassina!… Assassina!…


André Luiz



[1] [No original impresso: “capítulo XII”]

[2] [Nota: Observar no trecho do item 4, entre os indicadores 4 e 10, que a rápida renovação íntima de Cláudio, pelas leituras edificantes efetuadas horas antes, proporcionaram-lhe a elevação de seu padrão mental, influindo nitidamente em sua sintonia natural com Moreira, que não alcançara a mesma melhoria; a mente de Cláudio passou a emitir pensamentos de ondas mais curtas, que afetaram sua constituição perispirítica, tornando-a mais sutil em relação à de Moreira que, sentiu, alarmado, os efeitos de tal renovação de seu hospedeiro.]


Texto extraído da 1ª edição desse livro.

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