1 Na floresta de Gubbio, um lobo se fizera
Uma espécie de monstro aterrador,
Mais astuto e mais hábil que uma fera
Parecia um terrível salteador,
Matando qualquer homem desarmado,
Espalhando pavor e aniquilando o gado…
2 Mas, Francisco de Assis foi procurá-lo, um dia,
E, em plena solidão,
Ao encontrá-lo, em vasta ramaria,
Começou a chamá-lo por irmão…
Em seguida, falou-lhe da bondade,
Da paz, da caridade, do carinho…
3 Pediu-lhe, por Jesus, alterar o caminho
Em que o pobre animal
Vivera até então
E terminou, rogando ao lobo atento
Fosse morar com ele no convento
E a fera obedeceu,
Sem demonstrar qualquer hesitação.
4 Seguindo o Irmão Francisco, achou-se em novo lar
E, ao mudar de atitude, entregou-se, feliz,
No trabalho do bem, nas tarefas de Assis.
Era um guarda-noturno dos melhores
E, carregando um cesto aos dentes,
Buscava pães nos arredores.
5 Mas o chefe ocupado, muitas vezes,
Por semanas ou meses,
Ausentava-se em serviço,
Quase sempre reunido a Frei Leão,
Saía em sacrifício e peregrinação,
A fim de semear o ensino do Senhor,
Atento a inolvidável compromisso.
6 Nessas ocasiões,
O Irmão Lobo sentia
A carência de amor
E a fome de alegria.
Longe do Irmão Francisco, em todas as estradas
Era seguido a insultos e pedradas…
Mesmo entre os servidores do convento
Sofria ele o impacto violento
De varadas cruéis…
7 Chamavam-no “covarde”, “lobo vil”
“Carniceiro feroz…”
E de tanto aguentar o tratamento hostil,
Vendo-se, um dia, a sós,
O Irmão Lobo voltou para a vida selvagem,
Na antiga sede de carnagem;
Tomando à condição a que dantes se dera
Nos instintos de fera…
8 Voltando o Irmão Francisco
À morada de amor que presidia,
Depois de longa ausência,
Teve notícia da ocorrência
Mas, embora cansado
E prematuramente envelhecido,
A lastimar o acontecido,
Ante as muitas saudades do animal,
Embrenhou-se no verde da floresta…
E reencontrou o Irmão Lobo, como em festa
Na vastidão da natureza,
Perseguindo, sem pausa, uma lebre indefesa.
9 — “Irmão Lobo, o que é isto?”
— Disse o recém-chegado.
— “Já não te lembras mais dos ensinos do Cristo?” n
O lobo veio a ele, abatido e humilhado,
E respondeu, tristonho:
— “Santo amigo, não pude suportar
As dores que sofria em vossa ausência,
Acreditei que o vosso sonho
Fosse uma realidade na existência,
Mas tenho ainda as marcas doloridas
De profundas feridas
Que os homens me fizeram…
10 Toda vez que deixáveis nossa casa
Tratavam-me com vara, pedra e brasa…
Não vi qualquer pessoa a não ser vós
Nos ensinos sagrados
Que trazíeis a nós…
Deixai-me, santo amigo,
Sou lobo, apenas lobo no serrado,
Fera solta nas trilhas em que sigo”.
11 Francisco, então, enfermo e fatigado,
Replicou-lhe, porém:
— “Irmão Lobo, recorda!… O caminho do bem
É aquele de Jesus…
Devemos aceitar a própria cruz…
Recorda as instruções que estudaste comigo,
Sentença por sentença!…
12 Deixe que eu te interprete:
A lei é perdoar setenta vezes sete
Qualquer ofensa recebida. ( † )
A presença do Cristo n é o sol de nossa vida…
Volta, comigo, irmão,
Eu também, já sofri calúnia, provação…
13 Sinto-me fatigado,
Mas a fé no Senhor é uma luz em meu peito,
Continua, Irmão Lobo, de meu lado,
Resguarda-me, com Deus, na pedra em que me deito…
Necessito de ti na casa de onde venho,
As tuas grandes cicatrizes
Dos momentos que julgas infelizes
São feridas irmãs das úlceras que eu tenho!…”
14 O lobo cabisbaixo acompanhou o amigo,
Fez-se-lhe guardião na aspereza do abrigo,
Onde Francisco, dantes forte,
Pôs-se em chaga e oração
Para aguardar a morte…
15 Finda aquela existência engrandecida e bela,
O Irmão Lobo fugiu para um bosque vizinho,
Algo desatinado,
Como alguém que se vê desamparado
Sem rumo e sem caminho,
Em súbita carreira…
16 Ouvido no convento
Notou-se que ele uivara a noite inteira;
E porque se calara, de repente,
Quando o Sol regressou, resplandecente,
Um irmão de Francisco foi à mata,
Decidido a traze-lo,
No máximo de zelo,
Para a vida de paz, de serviço e conforto…
17 Mas, surpreso, encontrou nas pedras do serrado
Um corpo de animal abandonado:
O lobo de Francisco estava morto.
Maria Dolores
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