1 Demasiado interessante é a crítica de alguém ao “Parnaso de além-túmulo”, que as inteligências de cá, condenadas à maldição da poesia, entenderam de atirar por teu intermédio ao mundo, sem mais nem menos, eximindo-se de formalidades como as dos contratos e pagamentos aos editores.
Lamentam os vivos, “pro domo sua”, o inconcebível atrevimento dos mortos que lhes fazem concorrência às gamelas quebradas onde resfolga a literatura daí, maldizendo a predestinação que, como nódoa indelével, acompanha os Espíritos para os misteriosos recantos do além-túmulo e mormente os pobres Espíritos dos poetas.
Inqualificável ousadia a nossa, regressando ao pântano deste mundo, onde, atendendo-se à nudez da verdade, sem o manto diáfano da fantasia, sentimos sobre o aroma das flores o mau-cheiro do pus que distila. E infelizes daqueles que nasceram para conviver com as musas, que são pessoas que não conheço, nem cujos favores solicitei na vida transitória daí. Porém, como somos obrigados a aderir às teorias deterministas, posso ter nascido na Terra predestinado à ironia e ao chiste, interessando-me, por uma questão de afinidade, as chocarrices dos nossos colegas deste cantinho que em boa hora deixamos, conforme asseveram, para o nosso e o seu bem. Todavia, como já não continuo escrevendo as “Cartas da Inglaterra” datadas de Portugal, nem trazendo ao público “A Ilustre Casa de Ramires”, ou em desentendimentos com as casas editoras da minha heroica pátria portuguesa, ou mesmo da França, pouco se me dá que a ironia e o pessimismo sejam os característicos das minhas opiniões póstumas. n
2 Depois de realizarmos a travessia do Charonte, mais cheia de peripécias que as conhecidas nos voos solitários transoceânicos, já não nos impressiona a fantasia que resolveu inverter todas as coisas, classificando a macheação de amor e a pornografia de realismo, em literatura. Aqui em tudo experimenta-se a verdade que empolga, comove e arrasta; mas como esse vale de lágrimas e de tolices nem sempre se encontra de olhos abertos para divisá-la, resguardamos as nossas impressões em boas capas mundanas, a fim de que os sentidos dos homens possam percebê-las. Alguns rotulam-nas como rimas, como os desventurados autores do “Parnaso de além-túmulo”; quanto a mim, prefiro engarrafá-las em mofas e sandices. E de acordo com nossos ilustres confrades de letras a nossa lembrança é, positivamente, inoportuna, apavorando os nossos semelhantes com a ideia da sobrevivência além da morte.
3 Quando quase todas as organizações sociais e políticas se ressentem do desmantelo em que vivem; quando a febre dos partidos se intensifica, consumando a separação no seio das coletividades e dos lares, realizarem os mortos “raids” interplanetários, quais aeroplanos invisíveis para recordar aos vivos a imortalidade do Espírito, é uma imprudência tão grande que necessário se faz penitenciarem-se os que cometem o grave erro de dar-lhes acolhimento e guarida. E clamoroso perigo é o fato verificado de que esses mortos são, em geral, os mesmos seres da Terra, conscientes, pensantes e conservando identidade, muitas vezes, de gosto e opiniões, o que se afigura aos homens uma condenação, um eterno círculo vicioso, onde se agitarão dentro da eternidade dos evos os desgraçados que partiram.
4 Faz-se mister que a morte seja o sobrenatural, o fantástico, o Lethes onde se opere a imersão da alma, um maravilhoso banho mitológico, de onde se escape o Espírito mais rude e ignorante, como um sábio, transudando lições e virtudes.
Auscultando a verdade, tremem ou sorriem os vivos diante da existência das almas e inquirem se Anchieta ainda estará cantando por aqui as excelsitudes do Espírito da Virgem Maria, em língua tupi, ou se Luís de Camões se conserva celebrando ainda os brilhantes feitos da gente lusitana, como um legítimo propagandista, no “outro mundo”, da terra portuguesa, arrebanhando “touristes” e captando loas para Vasco da Gama, junto à imprensa de Marte e de Júpiter. É possível.
5 O que seria naturalíssimo e nada interessante é que o grande Sêneca deliberasse volver ao mundo para ensinar o processo de fabricar louças, e que Napoleão regressasse aos inválidos com o objetivo de compor um madrigal. Dessa forma, o fenômeno seria tão corriqueiro que se tornaria indigno de apreço. É preciso que o menino camponês emigre para a Sorbonne da sua aldeia miserável, lá se conserve por decênios consecutivos e, regressando depois ao rincão natal, se dirija aos seus conterrâneos habituados a trincar peixes podres, com um vocabulário de cem palavras, e se esfalfe no trabalho de esclarecê-los no tocante às teorias de Spencer e de Kant, para que os seus patrícios esbocem, à sua maneira, um sorriso de incredulidade. Eu é que não me sinto disposto a semelhante inclinação. É mais razoável que os párocos nos expulsem como demônios para o Marão.
6 Penaliza-me, todavia, é o nosso trabalho que cortou o teu futuro de literato e estragou a tua reputação. Acreditar em almas é de quem viveu na época medieval, quando os lobisomens corriam nas ruas sob os exorcismos do povo. És um parvo e os teimosos crentes que te compreenderem serão parvinhos como tu, excetuando-se aqueles conhecedores da ação do subconsciente nos fenômenos psicológicos. Julgo melhor, portanto, apoiares, sem tergiversações, a hipótese do subliminal; e agradece a propaganda dos doutos que criticam, contestando ou sem contestar, finos e leves em suas sutilezas.
7 Durante as discussões dos crentes e dos descrentes, considera-te na alta investidura de repórter do além-túmulo. Prossegue nas tuas entrevistas e “furos” com as personalidades que já se foram ou que já vieram, pois o potro da difamação e do ridículo foi sempre prerrogativa dos obreiros da verdade. Vai continuando, até que te receitem a enxovia ou o manicômio. No cárcere ou no sanatório, alcançarás um período de repouso. Não te apavores.
Eça de Queirós
Reformador — 1º de abril de 1933.
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As Cartas de Inglaterra foram publicadas pela Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro, de 1880 a 1886, depois reunidas em livro pela Lello e Irmão Editores, Livraria Chardron, Porto, em 1905. A obra A ilustre casa de Ramires foi publicada pela mesma editora no ano anterior ou seja, em 1904. [No livro impresso: “em 1900.”]