1 Pede-me você uma palavra para o intróito do «Parnaso de Além-Túmulo», que aparecerá brevemente em nova edição. n
2 A tarefa é difícil. Nas minhas atuais condições de vida, tenho de destoar da opinião que já expendi nas contingências da carne.
3 Os vivos do Além e os vivos da Terra não podem enxergar as coisas através de prismas idênticos. Imagine se o aparelho visual do homem fosse acomodado, segundo a potencialidade dos raios X: as cidades estariam povoadas de esqueletos, os campos se apresentariam como desertos, o mundo constituiria um conjunto de aspectos inverossímeis e inesperados.
4 Cada Esfera da vida está subordinada a certo determinismo, no domínio do conhecimento e da sensação.
5 Decerto, os que receberem novamente o «Parnaso de Além-Túmulo» dirão mais ou menos o que eu disse. n Hão-de estranhar que os mortos prossigam com as mesmas tendências, tangendo os mesmos assuntos que aí constituíam a série de suas preocupações. 6 Existem até os que reclamam contra a nossa liberdade. Desejariam que estivéssemos algemados nos tormentos do inferno, em recompensa dos nossos desequilíbrios no mundo, como se os nossos amargores, daí, não bastassem para nos inclinar à verdade compassiva.
7 Individualmente, é indubitável que possuímos no Além o reflexo das nossas virtudes ou das nossas misérias.
8 Mas é razoável que apareçamos no mundo, gritando como alucinados? Os habitantes dos reinos da Morte ainda apreciam o decoro e a decência, e o nosso presente é sempre a experiência do passado e a esperança no futuro.
9 «Parnaso de Além-Túmulo» sairá de novo, como a mensagem harmoniosa dos poetas que amaram e sofreram. Carmen Cinira aí está com os seus sonhos desfeitos, de mulher e de menina, Casimiro com a sua sensibilidade infantil, Junqueiro com a sua ironia, Antero com a sua rima austera e dolorosa.
10 Todos aí estão, dentro das suas características. Os mortos falam e a Humanidade está ansiosa, aguardando a sua palavra.
11 Conta-se que na guerra russo-japonesa, terminada a batalha de Tsushima, o grande Togo reuniu os seus soldados no cemitério de Oogama, e na tristeza majestosa do ambiente, em nome da nacionalidade, dirigiu-se aos mortos em termos comovedores; concitou-os a auxiliar as manobras militares, a visitar os cruzadores de guerra, levantando o ânimo dos companheiros que haviam ficado nas pelejas. Uma claridade nova cantou as energias espirituais do valente adversário da pátria de Stoessel e os filhos de Yoritomo venceram.
12 Na atualidade, afigura-se-nos que os brados de todos os sofredores e infelizes da Terra se concentram numa súplica grandiosa que invade as vastidões como o grito do valoroso almirante.
— De pé, os mortos!… — exclama-se — porque os vivos da Terra se perdem nos abismos tenebrosos.
13 Os institutos da Civilização têm sido impotentes para resolver o problema do nosso ser e dos nossos destinos.
14 As filosofias e as religiões estenderam sobre nós o manto carinhoso das suas concepções, mas esses mantos estão rotos!… Temos frio, temos fome, temos sede!
15 E os considerados mortos falam ao mundo na sua linguagem de estranha purificação. A Ciência, zelosa de suas conquistas, ainda não ouviu a sua vibração misteriosa, mas os filhos do infortúnio sentem-se envolvidos na onda divina de um novo Glória in excelsis, e a Humanidade sofredora sente-se no caminho consolador da sublime esperança.
Humberto de Campos n
(Irmão X)
[1] [Esse mesmo título serviu à 7ª lição do
livro “Histórias e anotações” de Irmão X.]
[2] Refere-se à 2ª edição, publicada em 1935. — (Nota da Editora.)
[3] Alude às crônicas que ele, quando encarnado, escrevera no Diário Carioca, em julho de 1932, ao surgir a 1ª edição do Parnaso. — (Nota da Editora.)
[4] Espírito — (Nota da Editora)