1.
Agora, tínhamos sob os olhos o caso Cavalcante em processo final.
2 O pobre amigo permanecia
agarrado ao corpo pela vigorosa vontade de prosseguir jungido à carne.
A intervenção no apêndice inflamado, ao mesmo tempo que se buscava remediar
a situação do duodeno, fizera-se tardia. Estendera-se a supuração ao
peritônio e debalde se combatia a rápida e espantosa infecção.
3 O enfermo perdia
forças, e porque não conseguia alimentar-se, como devia, não encontrava
recursos para compensar as perdas vultosas.
4 O intestino inspirava
repugnância e compaixão. Qual estranho vaso destinado a fermentação,
continha o ceco trilhões de bacilos de variadas espécies. Profundo desequilíbrio
afetava as funções dos vasos sanguíneos e linfáticos no intestino delgado.
O cólon transverso e o descendente semelhavam-se a pequenos túneis,
repletos das mais diversas coletividades microbianas. As vilosidades
permaneciam cheias de sangue purulento, e, de quando em quando, abriam-se
veias mais frágeis, provocando abundante hemorragia. Em todo o aparelho
intestinal, verificava-se o gradual desaparecimento do tônus das fibras.
5 O pâncreas não mais
tolerava qualquer trabalho, na desintegração dos alimentos, e o estômago
deixava perceber avançada incapacidade. As glândulas gástricas jaziam
quase inertes. Distúrbios destrutivos campeavam no fígado, onde animálculos
vorazes se valiam da progressiva ausência de controle psíquico, manifestando-se
ao léu, como microscópicos salteadores em sanha festiva.
6 O doente, por fim, já não
suportava nenhuma alimentação. O estômago expulsava até a própria água
simples, deixando-o exausto, em vista do tremendo esforço despendido
nos reiterados acessos de vômito.
O sistema nervoso central e o abdominal, bem como os sistemas autônomos, acusavam desarmonia crescente.
7 Reconhecia, entretanto,
ali, naquele agonizante que teimava em viver de qualquer modo no corpo
físico, o gigantesco poder da mente, que, em admirável decreto da vontade,
estabelecia todo o domínio possível nos órgãos e centros vitais em decadência
franca.
8 Decorridos mais de quatro
dias, em que atentávamos para o moribundo, cuidadosamente, Jerônimo
deliberou fossem desatados os laços que o retinham à Esfera grosseira.
Bonifácio, prestimoso e gentil, coadjuvava-nos o trabalho.
9 Informando-se de nossa resolução,
de modo vago, através dos canais intuitivos, o doente, pela manhãzinha,
chamou o capelão, a fim de ouvi-lo, e, após breve confissão, que o sacerdote
reduziu ao mínimo de tempo, em virtude das emanações
desagradáveis que se desprenderam da organização
fisiológica em declínio, o pobre Cavalcante,
mal suspeitando a paz que o aguardaria na morte, procurou reter o eclesiástico,
em contristadora conversação:
10 — Padre, — dizia ele, em
voz súplice, — sei que morro, sei que estou no fim…
— Entregue-se a Deus, meu amigo. Só Ele pode saber em definitivo o que surgirá.
Quem sabe se ainda tem longos anos à sua frente? Tudo pode acontecer…
11 O capelão falava apressado,
abreviando a palestra e tentando dissimular suas penosas impressões
olfativas, mas o moribundo continuou, ingênuo:
— Tenho medo, muito medo de morrer…
— Bem, — obtemperou o religioso, não ocultando um gesto de enfado que passou
despercebido aos olhos do crente, — precisamos preparar o espírito para
o que der e vier.
12 — Ouça, padre!… Acredita
que me salvarei?
— Sem dúvida. Você foi sempre bom católico…
— Mas… escute! — E a voz do enfermo fez-se triste, mais chorosa e sufocada,
— eu desejaria morrer noutras condições. 13
Segundo lhe confessei, fui abandonado pela mulher, há muitos anos… Sabe
que ela me trocou por outro homem e fugiu para nunca mais… Sempre admiti
que experimentei semelhante prova por incapacidade de compreensão da
parte dela, mas, agora, padre… encarando a morte, frente a frente, reflito
melhor… 14 Quem sabe
se não fui o culpado direto? Talvez tivesse levado longe demais meu
propósito de viver para a religião, faltando-lhe com a assistência necessária…
Lembro-me de que, às vezes, chamava-me “padre sem batina”. Possivelmente
minha atitude impensada teria dado origem ao desvio da minha companheira…
15 Após fitar o clérigo demoradamente,
implorou:
— Poderá sua caridade continuar indagando por mim? Necessito vê-la,
a fim de apaziguar a consciência… Há onze anos, perdi-a de vista…
16 O sacerdote, no entanto,
não parecia intimamente interessado em satisfaze-lo e repetia com impaciência:
— Descanse, descanse… Prosseguirei nas diligências. Tenha coragem, Cavalcante! É provável que tudo venha ao encontro de nossos desejos.
O moribundo, voz entrecortada pelo cansaço, murmurou:
— Obrigado, padre, obrigado!…
17 O religioso intentou sair,
mas Cavalcante, amedrontado, perguntou, ainda:
— Acha que me demorarei muito tempo no purgatório?
— Que ideia! — Resmungou o interlocutor, entediado, — falta-lhe suficiente
confiança no poder de Deus?
Enunciou as últimas palavras com tamanha irritação que o enfermo lhe percebeu o descontentamento, sorriu humilde e calou-se.
18 O sacerdote, ao se afastar,
aliviado, encontrou certo médico e indagou:
— Afinal, que acontece ao Cavalcante? Morre ou não morre? Estou cansado de
tantos casos compridos.
— Tem sido gigante na reação, — informou o clínico, bem humorado. — Considerando-lhe,
porém, os males sem cura, venho examinando a possibilidade da eutanásia.
— Parece-me caridade, — redarguiu o religioso, — porque o infeliz apodrece
em vida…
19 O esculápio abafou o riso
franco e despediram-se.
A cena chocava-me pelo desrespeito. Ambos os profissionais, o da Religião e o da Ciência, notavam situações meramente superficiais, incapazes de penetração nos sagrados mistérios da alma. Entretanto, para compensar tão descaridosa incompreensão, Cavalcante era objeto de nosso melhor carinho. Por mim, não saberia ministrar-lhe benefícios, dada a insipiência de minha singela colaboração, mas Jerônimo e Bonifácio cercavam-no de singular cuidado, amparando-o como se fora bem-amada criança.
20 Quando o eclesiástico pisava
mais longe, o meu Assistente considerou:
— O pobre sacerdote ainda não possui “olhos de ver”. Cavalcante foi, antes de tudo, perseverante trabalhador do bem.
21 Enquanto isso,
o enfermo buscava enxugar as lágrimas copiosas. A atitude do capelão
advertira-o do deplorável estado de seu corpo físico. Passou a sentir
o cheiro desagradável das próprias vísceras, agravando-se-lhe o mal-estar.
22 Sob incoercível
angústia, pediu o comparecimento de determinada religiosa, dentre as
diversas que atendiam a casa. Experimentava funda sede de consolo, necessitava
coragem que lhe viesse do exterior. Provavelmente encontraria no coração
feminino o reconforto que o confessor não lhe soubera prodigalizar.
23 Porém, a “irmã de
caridade” não trazia consigo melhor humor. Fez questão de escutá-lo,
alçando desinfetante enérgico ao nariz, a infundir-lhe surpresa ainda
mais dolorosa. Cavalcante chorou, queixou-se. Precisava viver mais alguns
dias, declarou, humilhado. Não desejava partir sem a reconciliação conjugal.
Rogava providências médicas mais eficientes e prometia pagar todas as
despesas, logo pudesse tornar ao serviço comum. Pretendia recorrer a
parentes endinheirados que residiam a distância. Resgataria o débito
até o derradeiro centavo.
24 A “irmã de caridade”, depois
de ouvi-lo, com impassível frieza, foi mais sucinta:
— Meu amigo, — disse, áspera, — tenha fé. A casa está repleta de enfermos,
alguns em piores condições.
Como o doente insistisse nas solicitações, concluiu ríspida e secamente:
— Não tenho tempo.
25 O agonizante
deu curso ao pranto silencioso. Recordou, de alma oprimida por angustiosa
saudade, a infância e a juventude. Percorrera as estradas terrenas,
de coração aberto à prática do bem. Não compreendia Jesus cerrado
nos templos de pedra, a distância dos famintos e sofredores que choravam
por fora. 26 A doutrina
que abraçara não lhe oferecia ensejo de mais vasta aplicação ao exemplo
evangélico. Era compelido a satisfazer obrigações convencionais e a
perder grande tempo através de manifestações do culto externo; entretanto,
valera-se de toda oportunidade para testemunhar entendimento cristão.
27 Porque amara o
exercício do bem, constante e fiel, era aborrecido aos sacerdotes e
familiares em geral. A parentela, inclusive a esposa, considerava-o
fanático, desequilibrado, imprestável. Perseverava mesmo assim. 28
Embora as condições elevadas em que desenvolvera a fé, ignorava as lições
do Além-Túmulo e receava a morte. Estimaria obter a certeza do destino
a seguir. A visão mental do inferno, segundo as concepções católicas,
punha-lhe arrepios no espírito exausto. A probabilidade dos sofrimentos
purgatoriais enchia-o de temor. 29
Desejava algo de melhor, de mais belo que o velho mundo em que vivera
até então… Suspirava por ingressar em coletividade diferente, em que
pudesse encontrar corações a pulsarem sintonizados com o dele; sentia
fome e sede de compreensão, de profunda compreensão, mas, prejudicado
pelos princípios dogmáticos da escola religiosa a que se filiara, repelia-nos
a ação.
30 O Assistente,
pondo em prática recursos magnéticos, tentou propiciar-lhe sono brando,
de maneira a subtrair-lhe os temores em socorro direto, fora do corpo
físico. Contudo, o moribundo lutou por manter-se vigilante. Temia dormir
e não despertar, pensava, ansioso. Queria ver a esposa, antes do fim,
dizia de si para consigo. Não era, efetivamente, provável? não seria
justo morrer tranquilo? Oh! Se ela surgisse! — Acariciava a possibilidade,
— penitenciar-se-ia dos erros passados, pedir-lhe-ia perdão. 31
Tamanha humildade assomava-lhe ao ser, naquela hora de grande abatimento,
que não se magoaria em receber-lhe a visita junto do “outro”. Porque
odiar? Porventura, não lhe ensinava a lição de Jesus que a fraternidade
constitui sempre a bênção do Altíssimo? 32
Quem seria mais culpado? Ele, que mantinha dobrada indiferença para
com as exigências afetivas da companheira, pelo arraigado devotamento
à fé, ou aquele homem, despreocupado de qualquer responsabilidade, que
a recolhera, talvez em desesperação? 33
Se pugnara sempre pela prática da caridade, por que motivo ele, Cavalcante,
faltara com a necessária demonstração, portas a dentro do próprio lar?
Em verdade, as sugestões sublimes da fé religiosa inflamaram-lhe o espírito
de amor universal. Não tolerava a sufocação do idealismo ardente. Ninguém
poderia reprová-lo. 34
Mas, se era esse o caminho escolhido, que razões o levaram a desposar
pobre criatura, incapaz de apreender-lhe a fome de luz? Por que fizera
firmes promessas a um coração feminino, ciente de que ele não poderia
atendê-las? 35 A dor
desenha a tela da lógica no fundo da consciência, com muito mais nitidez
que todos os compêndios do mundo. A morte próxima enchia aquela alma
formosa de sublimes reflexões. Entretanto, o medo alojara-se dentro
dela como sicário invisível.
2.
Cavalcante, que via tão bem na paisagem dos sentimentos humanos, permanecia
cego para o “outro lado da vida”, de onde tentávamos auxiliá-lo, em
vão.
2 Jerônimo poderia aplicar-lhe
recursos extremos, mas absteve-se. Inquirido por mim acerca de seus
infindos cuidados, explicou, muito calmo:
— Ninguém corte, onde possa desatar…
3 A resposta calou-me fundo.
Debalde, porém, procurou-se prodigalizar ao doente a trégua do sono preparatório e reconfortador. Cavalcante reagia, insistente. Sentindo-nos a aproximação e interferência, de leve, fazia apressados movimentos labiais, recitando orações em que implorava a graça de ver a companheira, antes de morrer.
4 — Desventurado irmão!
— Comentou Bonifácio, comovido, — não sabe que a consorte desencarnou
há mais de ano, num catre, vítima de uma infecção luética.
5 Jerônimo não se moveu, mas
lutei contra mim para não disparar interrogações, a torto e a direito,
em busca de pormenores. Coibi-me, felizmente. A hora não comportava
perguntas inúteis. Meu Assistente, como se houvera recebido a mais natural
das informações, dirigiu a palavra ao companheiro, recomendando:
6 — Bonifácio, nosso
amigo não pode suportar por mais tempo a existência do corpo carnal.
A máquina rendeu-se. Dentro de algumas horas, a necrose ganhará terreno
e precisamos libertá-lo. Teima em agarrar-se à carne apodrecida e pede,
comovedoramente, a presença da esposa. 7
Já tentamos auxiliá-lo a desprender-se, afrouxando os laços da encarnação
no plexo solar, mas ele reage com espantoso poder. Resolvi, em vista
disso, abrir pequenos vasos do intestino para que a hemorragia se faça
ininterrupta, até à noite, quando efetuaremos a liberação. 8
Peço a você trazer-lhe a companheira desencarnada, por instante, até
aqui. O enfraquecimento físico acentuar-se-á vertiginosamente, de ora
em diante, e, com espaço de algumas horas, as percepções espirituais
de Cavalcante se farão sentir. Verá, desse modo, a esposa, antes do
decesso que se aproxima e dormirá menos inquieto.
9 Bonifácio pôs-se pronto
para cumprir a ordem e assegurou integral cooperação.
Logo após, o Assistente operou, cauteloso, sobre a região intestinal, rompendo certas veias de menor importância, atenuando-lhe a capacidade de resistência.
3.
Ausentar-nos-íamos, por breves horas, considerando que o relógio assinalava
poucos minutos além do meio-dia. 2
Antes, porém, de nos afastarmos, observando o quadro emocionante da
enfermaria gratuita, a que o moribundo se recolhera, perguntei a Jerônimo,
admirado:
— Já que o nosso tutelado se enfraquecerá, a ponto de fazer observações no Plano invisível aos olhos mortais, chegará a ver também as paisagens de vampirismo que me impressionam no recinto?
3 — Sim. — Informou o orientador
com espontaneidade.
— Oh! Mas terá energia suficiente para tudo ver sem perturbar-se?
4 — Não posso garantir,
— respondeu, sorrindo. — Naturalmente qualquer Espírito encarnado, diante
de um quadro desses, poderia ser vítima de loucura e, possivelmente,
atravessaria algumas poucas horas em franco desequilíbrio, dada a novidade
do espetáculo. 5 Quando
a luz aparece, em determinado Plano, onde a criatura esteja “apta para
ver”, tanto se enxerga o pântano como o céu. Questão de claridade e
sintonia, simplesmente.
A notícia pôs-me frêmitos de piedade.
6 A enfermaria estava repleta
de cenas deploráveis. Entidades inferiores, retidas pelos próprios enfermos,
em grande viciação da mente, postavam-se em leitos diversos, infligindo-lhes
padecimentos atrozes, sugando-lhes vampirescamente preciosas forças,
bem como atormentando-os e perseguindo-os.
7 Desde o serviço
inicial do tratamento de Cavalcante, desagradaram-me tais demonstrações
naquele departamento de assistência caridosa e cheguei mesmo a consultar
o Assistente quanto à possibilidade de melhorar a situação, mas Jerônimo
informou, sem estranheza, que era inútil qualquer esforço extraordinário,
pois os próprios enfermos, em face da ausência de educação mental, se
incumbiriam de chamar novamente os verdugos, atraindo-os para as suas
mazelas orgânicas; só nos competindo irradiar boa vontade e praticar
o bem, tanto quanto fosse possível, sem, contudo, violar as posições
de cada um.
8 Confesso que experimentava
enorme dificuldade para desempenhar os deveres que ali me retinham,
porquanto as interpelações de infelizes desencarnados atingiam-me insistentemente.
Pediam toda a sorte de benefícios, reclamavam melhoras, explodiam em
lamúrias sem fim. Sereno e forte, o meu orientador conseguia trabalhar
de mente centralizada na tarefa, inacessível às perturbações exteriores.
Quanto a mim, entretanto, não alcançara ainda semelhante poder. Os pedidos,
os lamentos, os impropérios, feriam-me a observação, impedindo-me de
conservar a paz íntima.
9 Por isso mesmo, ao me retirar,
pensei na surpresa amargurosa do moribundo, ao se lhe abrir a cortina
que lhe velava a visão espiritual.
Aguardei, curioso, o cair da noite, quando, em companhia do orientador, atravessei, de volta, o pórtico do hospital.
10 Cavalcante avizinhava-se
do coma. O sangue alagava lençóis, que eram substituídos repetidamente.
O enfraquecimento geral progredia, rápido.
11 O agonizante
inspirava dó. Abriram-se-lhe certos centros psíquicos, no avançado abatimento
do corpo, e o infeliz passou a enxergar os desencarnados que ali se
encontravam, não longe dele, na mesma esfera evolutiva. Não nos identificava,
ainda, a presença, como seria de desejar, mas observava, estarrecido,
a paisagem interior. Outros enfermos encaravam-no, agora, amedrontados.
Para todos eles, o colega de sofrimento delirava, inconsciente.
12 — Estarei no
inferno ou vivemos em casa de loucos? — Bradava sob horrível tormento
moral. — Oh! Os demônios! Os demônios!… Vejam o “espírito mau” roendo
chagas!…
13 E, de facies contraída,
apontava mísero ancião de pernas varicosas.
— Oh! Que diz ele? — Prosseguia com visível espanto, — diz que não
é o diabo, afirma que o doente lhe deve…
14 Ouvidos à escuta, silenciava,
ansioso por registrar as palavras impensadas e criminosas do algoz desencarnado,
mas, não conseguindo, desabafava-se em gritos lamentosos, infundindo
compaixão.
15 Não fora a fraqueza invencível,
ter-se-ia levantado com impulsos de louco. Doentes e enfermeiros, alarmados,
optavam pela remoção do moribundo. Tinham medo. Cavalcante desvairava.
Consolavam-se, todavia, na expectativa de que a hemorragia abundante
prenunciasse termo próximo.
16 Jerônimo ministrou-lhe,
então, piedosamente, recursos de reconforto, e o agonizante aquietou-se,
devagarinho…
17 Não se passou muito tempo
e Bonifácio entrou conduzindo verdadeiro fantasma. A ex-consorte, convocada
à cena, semelhava-se, em tudo, a sombra espectral. Não via o nosso cooperador,
mas obedecia-lhe à ordem. Penetrou o recinto, arrastando-se, quase.
Satisfazendo o guia, automaticamente, veio ter ao leito de Cavalcante,
fitou-o com intraduzível impressão de horror e gritou, longamente, perturbando-lhe
a hora de alívio.
18 O moribundo voltou-se e
viu-a. Alegre sorriso estampou-se-lhe no escaveirado rosto.
— Pois és tu, Bela? Graças a Deus, não morrerei sem pedir-te desculpas!…
A ternura com que se dirigia a tão miserável figura causava compaixão.
19 A esposa abeirou-se do leito,
tentando ajoelhar-se. Ouvindo-o, assombrada, retrucou, aflita:
— Joaquim, perdoa-me, perdoa-me!…
— Perdoar-te de quê? — Replicou ele, buscando inutilmente afagá-la.
Eu, sim, fui injusto contigo, abandonando-te ao léu da sorte… 20
Por favor, não me queiras mal. Não te pude compreender noutro tempo
e facilitei-te o passo em falso, colaborando, impensadamente, para que
te precipitasses em escuro despenhadeiro. Não entendi o problema doméstico
tanto quanto devia… Hoje, porém, que a morte me busca, desejo a paz
da consciência. Confesso minha culpa e rogo-te perdão… Desculpa-me…
21 Falava vencendo
enormes obstáculos. No entanto, notava-se que aquele entendimento lhe
fazia imenso bem. A mente apaziguara-se-lhe. Contemplava a esposa, reconhecido,
quase feliz.
— Ó Joaquim! — Suplicou a mísera, — perdoa-me! Nada tenho contra ti.
O tempo ensinou-me a verdade. Sempre foste meu leal amigo e dedicado
irmão!
22 O moribundo escutou-a, esboçando
expressão fisionômica de intensa alegria. Fitou-a, em êxtase, totalmente
modificado e murmurou:
— Agora, estou satisfeito, graças a Deus!…
23 Nesse instante, o mesmo
médico que víramos, pela manhã, avizinhou-se do leito para a inspeção
noturna, acompanhado de diligente enfermeira.
Chamado por ele, voltou-se Cavalcante e, pondo na boca todas as forças que lhe restavam, notificou, feliz:
— Veja, doutor, minha esposa chegou, enfim!
24 E, interessado
em conquistar a atenção do interlocutor, prosseguia:
— Estou contente, conformado… Mas minha pobre Bela parece enferma, abatida… Ajude-a por amor de Deus!
25 Relanceando,
em seguida, o olhar pela extensa enfermaria e fixando os quadros tristes,
entre encarnados e desencarnados, inquiriu:
— Por que motivo tantos loucos foram internados aqui? Olhem, olhem aquele! Parece sufocar o infeliz…
Indicava particularidade dolorosa, em que certa entidade assediava pobre doente atacado de asma cardíaca.
26 O médico, no
entanto, contemplou-o, compadecido, e disse à servente:
— É o delírio, precedendo o fim.
27 Entrementes,
Jerônimo recomendou a Bonifácio retirasse a sombria figura da ex-consorte
de Cavalcante, acentuando:
— Não nos convém doravante a permanência de semelhante criatura. Já cumpriu as obrigações que a trouxeram aqui e ainda possui numerosos credores à espera.
28 A desventurada
reagiu, procurando ficar, mas Bonifácio empregou força magnética mais
ativa para alcançar o objetivo necessário.
Reparando, porém, que a ex-companheira se afastava aos gritos, o agonizante pôs-se a bradar, alucinado:
— Volta, Bela! Volta!
29 Esforçou-se o
clínico por traze-lo à esfera de observações que lhe era própria, mas
debalde. Cavalcante continuava invocando a presença da esposa, em voz
rouquenha, opressa, sumida.
30 O médico abanou
a cabeça e exclamou quase num sussurro:
— É impossível continuar assim. Será aliviado.
4.
Jerônimo penetrou-lhe o íntimo, porque passou a mostrar extrema preocupação,
comunicando-me, gravemente:
— Beneficiemos o moribundo, por nossa vez, empregando medidas drásticas. O doutor pretende impor-lhe fatal anestésico.
2 Atendendo-lhe a ordem, segurei
a fronte do agonizante, ao passo que ele lhe aplicava passes longitudinais,
preparando o desenlace. Mas o teimoso amigo continuava reagindo.
— Não! — Exclamava, mentalmente, — não posso morrer! Tenho medo! Tenho medo!
3 O clínico, todavia, não
se demorou muito, e como o enfermo lutava, desesperado, em oposição
ao nosso auxílio, não nos foi possível aplicar-lhe golpe extremo. Sem
qualquer conhecimento das dificuldades espirituais, o médico ministrou
a chamada “injeção compassiva”, ante o gesto de profunda desaprovação
do meu orientador.
4 Em poucos instantes, o moribundo
calou-se. Inteiriçaram-se-lhe os membros, vagarosamente. Imobilizou-se
a máscara facial. Fizeram-se vítreos os olhos móveis.
Cavalcante, para o espectador comum, estava morto. Não para nós, entretanto. A personalidade desencarnante estava presa ao corpo inerte, em plena inconsciência e incapaz de qualquer reação.
5 Sem perder a serenidade
otimista, o orientador explicou-me:
— A carga fulminante da medicação de descanso, por atuar diretamente em todo o sistema nervoso, interessa os centros do organismo perispiritual. Cavalcante permanece, agora, colado a trilhões de células neutralizadas, dormentes, invadido, ele mesmo, de estranho torpor que o impossibilita de dar qualquer resposta ao nosso esforço. Provavelmente, só poderemos libertá-lo depois de decorridas mais de doze horas.
6 Regressando Bonifácio, o
meu dirigente prestou-lhe informações exatas e confiou-lhe o pobre amigo,
que foi imediatamente transportado ao necrotério.
7 E, conforme a primeira suposição
de Jerônimo, somente nos foi possível a libertação do recém-desencarnado
quando já haviam transcorrido vinte horas, após serviço muito laborioso
para nós. Ainda assim, Cavalcante não se retirou em condições favoráveis
e animadoras. Apático, sonolento, desmemoriado, foi por nós conduzido
ao asilo de Fabiano, demonstrando necessitar maiores cuidados.
André Luiz