O Caminho Escritura do Espiritismo Cristão
Doutrina espírita - 2ª parte.

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Chico Xavier: O Primeiro Livro — Autores diversos

Parte III — Chico Xavier: Psicografia

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Um quadro da Quaresma

1 Entre lamentações e estrídulas matracas,
Num cenário infantil, feito de gesso e lacas,
Representa-se a peça antiga da quaresma…


2 O pobre Senhor-Morto, um pálido abantesma,
Talhado de encomenda, em tinta espessa e forte,
Dorme grotescamente o sono dessa morte
De teatro burlesco, anual, que se repete,
Como as grandes funções do entrudo e do confete.


3 Imóvel, sob a luz esdrúxula das tochas
Que ilumina esse caos de tintas rubro-roxas,
É o ator da paixão, a vítima e comparsa
Do Papa, o explorador santíssimo da farsa,
Paródia de uma dor sublime e incomparável,
Filha da estupidez bisonha e condenável,
Que a Igreja representa, arrecadando esmolas,
Com latim, cantochãos, bandeiras e sacolas.


4 A função quaresmal prossegue. A multidão
Espera com ansiedade o clássico sermão.
Numa fantasmagoria esplêndida de aroma
Dos incensos do altar, sobre o púlpito assoma
Uma figura heril de abade gordo e enorme
Coquelin tonsurado, obeso, desconforme,
Que grita com estentor:


5 «Caríssimos irmãos!
Nós somos sobre a Terra os únicos cristãos. n
Fora das concepções altíssimas da Igreja,
Existe tão somente o Inferno que despeja
O mal e as tentações no espírito perdido;
Rezai! que atualmente o mundo pervertido
Pretende esfacelar os dogmas romanos,
Sentinelas da fé, há quase dois mil anos!


6 Não busqueis progredir nas coisas transcendentes,
Porque o Papa é senhor de céus e continentes
E o Sílabus proíbe a evolução de tudo!


7 Eu só vos peço a fé, porquanto a fé é o escudo
Que vos há-de livrar dos gênios tentadores.
Evitai conviver com os livres pensadores!
A análise conduz à escuridão do Averno,
Voltaire e Galileu são ministros do Inferno,
Calvino, Comte, Wesley, seus embaixadores;
Das chamas infernais, criaturas inferiores
Dirigem, certamente, o espírito moderno.


8 Precisais cultivar o nosso dogma eterno,
De eterna submissão ao Papa que é infalível.
Toda ordem de Roma é boa e indiscutível.
É preciso antepor, a toda a Humanidade,
Sentimentos de fé e catolicidade.


9 Necessário se faz prender quem raciocine.
Reformistas quaisquer?… Satanás que os fulmine.
A falta de fervor tem feito heresiarcas,
Tem até corrompido os padres e os monarcas.
Obedecei a Igreja em sua Santidade,
Que é o traço de união do arcano da Trindade.


10 O dogma é uma lei benigna e sublime,
Sofismá-lo, enformá-lo, é cometer um crime.


11 A Humanidade está sob o império do demo;
Oremos pelo mundo em desconforto extremo.


12 Vivei, caros irmãos, em santa penitência;
As mortificações recebem da indulgência
Os prêmios celestiais na Eterna Beatitude.
Sede firmes na fé, contentes na virtude,
Amando a caridade, a humilde singeleza,
Como Jesus amou a glória da pobreza!»


13 Condenando a Ciência, a Luz, a Liberdade,
E abominando o Cristo, o Senhor que ele esquece,
Terminou a oração, rogando que se desse
Uma estola ao Progresso e um véu à Humanidade.


14 Com um aceno abençoou, segundo o gesto em uso,
Resmungando um latim exótico e confuso;
E depois de exercer seu santo ministério,
Procurou lestamente o calmo presbitério.
Aguardava-o o jantar de finas iguarias:
Pratos de ostentação, recheios, ambrosias,
Licores, moscatéis, confeitos, doces raros,
Opíparo jantar regado a vinhos caros.


15 E após se abastecer pantagruelicamente,
Em paz sacramental, seu cérebro indolente
Desejou meditar nas cenas do Calvário…


16 Mas o sono roubou-lhe as preces e o breviário.
Terminada que foi a sacra pantomima,
Esquecido Jesus, olvidou-lhe a doutrina.


17 Sereno, adormeceu sem pensar que pusera
Em cada coração um coração de fera,
Com o seu rubro sermão, cavando um negro abismo,
Propagando a cegueira, a guerra e o fanatismo.


18 Olvidou o que Jesus obrara com o exemplo,
Dos atos a lição, da caridade o templo,
Sem artigos de fé, sem bispo e vaticano.
Não se lembrou que houvera o bom samaritano,
Porque a verdade pura, o lídimo evangelho,
Era um livro escurril, inadequado e velho.


19 Da doutrina cristã, a sacrossanta essência
Ficou em pregação de mágica eloquência.
Jesus apenas fora a máscara piedosa,
Para tanta extorsão impune e criminosa.


20 Por isso, ó meus irmãos do altar e da batina,
A Igreja que foi pura e que já foi divina,
Morre sem remissão de horrível carcinoma,
Nos pântanos letais e lúgubres de Roma,
Lá onde a cupidez fatídica se entrapa
E morre às próprias mãos sacrílegas do Papa!


Guerra Junqueiro



Produção do dia 20-03-1934.

[1] Nesse livro manuscrito a poesia termina nesse verso, pois a folha subsequente extraviou-se, mas no Parnaso ela está completa, por isso acrescentamo-la aqui.

Essa mensagem foi também publicada pela FEB e é o 6ª poema do 30º capítulo do livro “Parnaso de Além-Túmulo


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